A criação é uma ação política, e um escritor é uma pessoa politizada
Este Boletim de Arte reflete sobre as contribuições revolucionárias da escritora chinesa Ding Ling, misturando literatura e política e celebrando seu impacto nos movimentos socialista e feminista da China.
Ouça a canção “The White-Haired Girl”, composta para a ópera revolucionária de mesmo nome da era do Fórum de Yan’an.
No dia 1 de outubro, a República Popular da China celebrou seu 75º aniversário. O diretor de nosso instituto, Vijay Prashad, e eu escrevemos juntos um artigo que faz uma retrospectiva dessas décadas revolucionárias. Ding Ling (1904–1986) era uma escritora, feminista, e uma das inúmeras comunistas que contribuíram com a Revolução Chinesa, especialmente na batalha de ideias. Este boletim de arte, originalmente publicado no People’s Dispatch e traduzido pelo Capire, resgata sua vida e obra no 120º aniversário de seu nascimento.
Se o século XX na China foi um século de revoluções, a lendária escritora chinesa Ding Ling é um produto destes processos. No dia 12 de outubro de 1904, Ding Ling (pseudônimo de Jiang Bingzhi) nasceu em uma família nobre em Linli, na província de Hunan, no final da Dinastia Qing. Por sua origem relativamente próspera, ela teve acesso à educação formal, e foi na escola que começou a se politizar. Na Segunda Escola Normal para Meninas de Hunan, teve contato com o despertar nacional e anti-imperialista do Movimento de 4 de Maio. Mais tarde, em Xangai, frequentou uma Escola Popular para Meninas do jovem Partido Comunista da China (PCCh), que havia se constituído um ano antes, em 1921.
Na década de 1920, Ding Ling, rodeada por escritores comunistas, como Qu Qiubai, dá início a sua carreira literária. Publicou O Diário da Senhorita Sofia, uma de suas obras mais celebradas, em 1928. O conto apresentava um raro e provocativo olhar sobre a intimidade de uma mulher urbana moderna na China, com foco em suas batalhas pessoais, casos românticos e desejos sexuais. Na época, muitos escritores do Movimento da Nova Cultura olhavam para as estruturas políticas e sociais ocidentais para desenhar um caminho de libertação da nação chinesa das garras do imperialismo e do atraso econômico. A libertação nacional também estava intimamente entrelaçada com a libertação das mulheres chinesas. Sofia, na busca por suas liberdades individuais, representava uma ruptura com as tradições patriarcais e feudais da Velha China, mas ainda estava longe da visão de uma mulher livre da Nova China socialista.
Cada período histórico exige seu próprio tipo de protagonista, e seu próprio tipo de escritora. Ding Ling foi uma dessas autoras que continuou a se reinventar e a enfrentar os desafios de seu tempo. Duas décadas mais tarde, olhando para sua personagem Sofia, Ding Ling reconheceu que, com as transformações fundamentais do processo revolucionário, “o mundo espiritual das pessoas também se transformou fundamentalmente” e as personagens que ela conhecia, como Sofia, já haviam sido ultrapassadas. Era necessário “escrever pessoas completamente novas”. Como escrever essas pessoas, e como escrevê-las bem, não seria um caminho simples.
No início dos anos 1930, já tendo se tornado uma autora de esquerda de destaque, ela mergulhou na política, mas esse foi um período sombrio, inclusive no âmbito pessoal. Em 1930, Hu Yepin, seu marido e também escritor, foi preso e assassinado, no mesmo ano em que o filho dos dois nasceu. Em 1931, a própria Ding Ling foi presa e ficou mais de dois anos sob custódia dos Nacionalistas. Ainda assim, ela se filiou ao PCCh e assumiu a tarefa de editar a revista da Liga de Escritores de Esquerda. Em novembro de 1936, após a histórica Grande Marcha que estabeleceu uma nova base comunista em Yan’an, Ding Ling chegou no norte de Shaanxi e pediu diretamente a Mao Tsé-Tung para se unir ao Exército Vermelho.
Em janeiro de 1937, Ding Ling chegou em Yan’an, entre um número estimado de 40 mil intelectuais que se deslocaram para lá até 1943. Muitos desses intelectuais deixaram seus confortos urbanos para atravessar centenas ou até milhares de quilômetros sob vento, areia, chuva e neve. Cada um deles, no entanto, também levou suas próprias ideias sobre a direção que o trabalho criativo deveria tomar para a causa comunista. Ding Ling, como editora do jornal do Partido, Jiefang Ribao (Diário da Libertação), estava entre um grupo de autores que criticavam o que percebiam como uma falta de independência artística e como restrições impostas pelo Partido sobre a produção artística. Seria o papel da arte e da literatura o de “louvar a luz” — glorificar os feitos do Partido e do povo — ou “expor a escuridão” e apontar os problemas da sociedade chinesa e do movimento comunista?
Em maio de 1942, foi realizado o Fórum de Literatura e Arte de Yan’nan, com duração de três semanas, para elucidar essa relação fundamental entre trabalho cultural e político. Para um público de mais de 100 dos maiores escritores, artistas, lideranças do Partido e generais militares do país, Mao Tsé-Tung apresentou cinco “problemas” artísticos e literários que deveriam ser tratados: posição, atitude, público, trabalho e estudo. Mao argumentou que os trabalhadores da cultura deveriam tomar “uma posição de classe” firme ao lado do povo, na qual os artistas também se vissem como trabalhadores em luta. Para isso, os intelectuais precisariam passar por sua própria “remodelação” de uma classe para outra. Enquanto isso, a forma e o conteúdo das obras culturais também teriam de passar por um processo de reinvenção.
Assim como as formas tradicionais da cultura receberam um novo conteúdo revolucionário, os “antigos frascos” de intelectuais tradicionais se transformavam em “novos” intelectuais que serviam ao povo. Poucos escritores incorporaram mais esse processo que Ding Ling. Quando deixou a cosmopolita Xangai pelos campos empoeirados de Yan’an, Ding Ling já era uma autora célebre e consolidada. Ao chegar em Yan’an, no entanto, ela teve dificuldade de escrever descrições autênticas da vida camponesa, que ela ainda não conhecia na época, e para superar os próprios preconceitos, o individualismo e a distância em relação ao povo.
Em suas reflexões, ela afirmou: “Pensei muito nisso, mas é muito difícil de escrever. Não posso retratar os ideais do povo como sendo elevados demais, tão elevados que deixam de se assemelhar aos de um agricultor camponês. Mas também não posso retratá-los como sendo diminutos demais; senão, como inspirarão as pessoas?” As dificuldades que Ding e outros autores tinham ao retratar as pessoas camponesas no contexto da luta de classes não tinham suas bases apenas naquilo que lhes faltava, mas também porque as condições históricas ainda não haviam criado uma consciência revolucionária e níveis de alfabetização entre o povo. Os contos e romances de Ding Ling são um testemunho desse processo dialético e transformador e dos anos de desaprender e reaprender, para se tornar intelectual e politicamente integrada com as massas, o que, por sua vez, aprofunda a consciência de classe.
O caminho atravessado por Ding Ling reflete o processo da “integração” popular que Mao identificou em sua fala de encerramento no Fórum de Yan’an: “Os intelectuais que querem se integrar com as massas, que querem servir às massas, devem passar por um processo em que eles e as massas venham a se conhecer bem”. Após anos vivendo e trabalhando com mulheres, camponeses, trabalhadores, veteranos e quadros em alguns dos povoados rurais mais isolados da China, Ding Ling escreveu seu primeiro e aclamado romance sobre reforma agrária, Sol sobre o Rio Sangkan (1948).
A fundação da República Popular da China marcou uma nova era na vida de Ding Ling, como escritora e quadro político. A literatura e, sobretudo, “a nova literatura popular”, tomou um papel central na construção do novo Estado popular. No nível internacional, o intercâmbio cultural e literário se tornou fundamental na estratégia da “diplomacia popular” de combater as sanções diplomáticas e econômicas impostas contra o novo país comunista. Em seu papel como vice-presidenta da Associação de Escritores Chineses, Ding Ling muitas vezes recebeu autores internacionais em visita ao país, como Jorge Amado e sua esposa, a escritora Zélia Gattai, entre outros.
Sua primeira viagem, em 1952, convenceu Amado a publicar O sol brilha sobre o rio Sangaan no Brasil quando retornasse ao país. Em suas memórias, Gattai relembra: “Dessa viagem alegre e frutífera, nós e nossos companheiros voltamos com o coração leve e cheio de esperança. Vislumbramos um futuro de paz e prosperidade para a China, um exemplo do que o socialismo deve ser, passando das teorias e do papel para a prática e a realidade.”
Sua segunda visita, em 1957, acompanhados do poeta chileno Pablo Neruda e de sua esposa, Matilde Urrutia, ocorreu na véspera da campanha anti-direitista, e Ding Ling estava entre as autoras mais conhecidos a serem tachados de contrarrevolucionários de direita. Em suas memórias, Navegação de cabotagem, Jorge Amado descreve uma conversa com Ding Ling naquela viagem: “Quando lhe falei das dúvidas que me esmagavam o coração, ela me respondeu: ‘tu duvidas só porque constatas erros ou injustiças?’ Ding Ling não duvidava. Ou não admitia duvidar? Me disse: ‘se piso na lama, limpo os pés, sigo adiante’.”
Como muitos intelectuais, Ding Ling de fato sofreu muito durante a década tumultuada da Revolução Cultural (1966-1976). Ela foi enviada para o campo, e teve interrompido seu trabalho literário e seus intercâmbios internacionais. Ela acabou conseguindo, no entanto, encontrar uma forma de “limpar os pés e seguir adiante”. Um ano depois de ser reabilitada em 1979, Ding afirmou: “Foi difícil, e eu sofri, mas também ganhei muito… Não posso escrever sobre generais, porque não tenho esse tipo de experiência. Mas posso escrever sobre camponeses, sobre trabalhadores, sobre as pessoas comuns, pois as conheço bem.”
O turbulento século XX conta muitas histórias. É uma história de despertar e resistência, de sofrimento e retrocessos, de transformação pessoal e compromisso político. Uma história de superação e mudança. A vida e a obra de Ding Ling são testemunho de tudo isso. Como uma sociedade estava sendo radicalmente transformada, as mudanças nas relações de produção exigiam uma mudança de consciência, o que, por sua vez, necessitava de uma nova cultura socialista. Era uma tarefa imensa, as transformações eram muitas e muito complexas, mas Ding Ling continuou assumindo a tarefa de tentar produzir uma nova literatura para e em nome do povo. Em um discurso de 1980, ela afirmou: “A criação por si só é uma ação política, e uma escritora é uma pessoa politizada”, afirmando seu compromisso permanente como autora e como revolucionária até o fim da vida. Ding Ling faleceu em Pequim em 1986 aos 81 anos de idade.
Em Outras Notícias…
O pôster do Dia do Livro Vermelho deste mês, de Abhinav (Young Socialist Artists/Instituto Tricontinental de Pesquisa Social), é inspirado em Thomas Sankara Speaks: The Burkina Faso Revolution 1983–1987 [Thomas Sankara fala: A Revolução de Burkina Faso 1983-1987], publicado pela Inkani Books. No início deste mês, o Young Socialist Artists [Jovens Artistas Socialistas], juntamente com estudantes de belas artes da Universidade de Andhra Pradesh, coorganizaram a Palestine Solidarity Art Exhibition [Exibição de Arte em Solidariedade com a Palestina], na Índia.
“Devemos lutar contra o imperialismo e tudo relacionado a ele”, disse Sankara dois anos antes de seu assassinato, há 37 anos. Ele continuou: “Do ponto de vista do imperialismo, é mais importante nos dominar culturalmente do que militarmente. A dominação cultural é mais flexível, mais eficaz, menos custosa”. É por esta razão que a cultura, como aprendemos da China a Burkina Faso, da Índia à Palestina, tem sido – e continua a ser – um dos principais pilares e armas na luta pela libertação nacional e emancipação humana.
Cordialmente,
Tings Chak
Diretora de Arte, Instituto Tricontinental de Pesquisa Social