Ensaio sobre a pandemia | Estamos cegos e precisamos respirar
Por Delana Corazza e Rebecca Gendler
Em 1995, o escritor português José Saramago publica Ensaio Sobre a Cegueira, uma obra surpreendentemente atual. Não são raras as vezes que escritores, de alguma forma, anunciam uma nova perspectiva trazendo elementos daquilo que poderia ser, que será. A literatura, como arte, é uma forma de conhecimento do mundo e também cumpre o papel de antecipar as tendências da realidade. Em 2008 o livro foi adaptado para o cinema num filme de sucesso, sob direção de Fernando Meirelles.
A obra convida o público a olhar para um futuro distópico, usando a cegueira como metáfora para um movimento da própria humanidade e seus rumos, buscando refletir como as regras e relações de poder mudam e as personalidades se revelam ao serem colocadas numa situação excepcional. As metáforas em sua obra se transformaram em algo tão concreto que é difícil acreditar que o escritor não viveu a experiência na qual estamos imersos, só que, em vez da visão, o que nos falta é ar; não estamos conseguindo respirar. “I can’t breathe!” sussurra de forma ensurdecedora George Floyd.
Esse artigo não se propõe a fazer um paralelo direto entre a obra e a pandemia provocada pelo novo coronavírus, mas apontar algumas possíveis reflexões sobre nossa realidade e as cegueiras evidenciadas por Saramago.
A década de 90 foi marcada pelo avanço do neoliberalismo e da consolidação de um modelo político e econômico que moldou um comportamento centrado no indivíduo como único responsável pelas suas próprias mazelas. A competitividade neoliberal abrange todas as esferas da sociedade e não deixa espaços para a solidariedade. Marcada pela diminuição dos direitos sociais, pelo aprofundamento da violência e pela culpabilização do miserável pela própria miséria, a década serve de pano de fundo para a crítica de Saramago: estamos cegos.
No início da obra, o personagem “primeiro cego” está dirigindo seu carro e de repente para de enxergar, mas o que “vê” pela frente não é a ausência de cor, a escuridão, a treva, e sim o branco total, a luz: “De repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta”. Subitamente, o mal se espalha. Altamente contagiosa, a cegueira vai atingindo um a um e os infectados são enclausurados como forma de “prevenção” e terão que, isolados, se reorganizar nessa nova condição. Nesse contexto, a trama se desenvolve e diversas situações bastante ilustrativas da nossa sociedade passam a ocorrer.
O mundo está cego, à exceção da personagem da “mulher do médico”, que vai com seu marido ao isolamento, semelhante a um “manicômio”, e nessa experiência testemunha os horrores de uma humanidade posta à prova: egoísmo, ganância, autoritarismo e violência sexual em meio ao caos. A violência, em todas as suas esferas, é uma constante na obra.
A pandemia atual explicitou a cegueira, concretizada no egoísmo e na satisfação individual moldada por um sistema que nos fez olhar para um caminho único, estreito. Estamos presos a valores considerados naturais em um modo de produção e organização da vida que, mesmo que claramente destruidor, se forjou como inquestionável, como único possível. A iminência da morte por uma doença desconhecida evidenciou o quanto estamos doentes, como nos alertou Saramago: “penso que não cegamos, penso que estamos cegos”. O isolamento nos mostrou o quanto é profunda a nossa solidão, o quanto estamos mergulhados em um egoísmo suicida fruto da sociedade capitalista neoliberal na qual a doença física chega para avultar nossa doença moral. A claridade excessiva se mostra como possibilidade de enxergarmos, de nos curarmos; e cuidar do outro virou a possibilidade única de nos salvarmos.
O resultado da pandemia em nosso país tem sido devastador principalmente para os pretos e pobres. A emenda constitucional n. 95 aprovada em dezembro de 2016, limitando os gastos públicos, afetou principalmente a saúde e a educação da população mais vulnerável. Na obra, a cegueira branca se dissemina por todos e seu contágio é absolutamente democrático, assim como supostamente seria a transmissão do vírus atual. No entanto, nessas terras, a impossibilidade de prevenção e isolamento, as péssimas condições de moradia, a falta de saneamento básico e a incapacidade do sistema público de lidar com o aumento exponencial de necessidade de leitos hospitalares – sob um governo absurdo que negou desde sempre a gravidade do problema e desdenha as mais de mil mortes diárias – fez com que a classe trabalhadora preta e pobre fosse a principal atingida pelo vírus. São os homens e mulheres pretas e pobres, vítimas das desigualdades estruturais que constituem nosso país, que estão morrendo.
Nesse contexto, as possibilidades de reparar, para além de ver, como sugeriu Saramago, seguem se apresentando. No Brasil, a pandemia trouxe o desafio de conceber, em situações totalmente adversas, a luta antirracista, antifascista e antineoliberal por meio da batalha de ideias e de atos nas ruas das grandes cidades. Ações de solidariedade estão sendo construídas por diversos movimentos populares nos diversos territórios onde o “fique em casa” não é uma opção possível, com o objetivo de garantir o mínimo de condições para que a população empobrecida tenha possibilidade de se cuidar – ficar em casa para a maioria da classe trabalhadora pode significar a impossibilidade de sobrevivência, seja pela falta de alternativas econômicas, seja pela violência do Estado que se insere nos territórios periféricos assassinando a população, seja por conta da violência doméstica sofrida pelas mulheres que, sem alternativas de proteção, passaram a conviver 24 horas do dia com seu agressor.
Na obra de Saramago, a responsabilidade de reorganizar a vida dos contaminados é dada inicialmente ao “médico dos olhos”, autoridade “natural”, o que possui o saber formal. No entanto, sendo a única que vê, a mulher do médico se constrói no processo como a liderança do grupo, enquanto alegoricamente cria-se uma disputa entre a solidariedade e o egoísmo, sendo a primeira representada pelas mulheres e o segundo por um grupo de homens que se apropria da comida e oferece esta mesma comida que seria de todos em troca de dinheiro e depois de sexo. Apesar de enxergar todas as mazelas humanas dos que não veem, a liderança avança, junto a outras mulheres, por meio de uma noção de coletivo como possibilidade de resistência e das brechas possíveis contra a cegueira que estão imersos.
A mulher que vê, que enxerga, que repara, em um dado momento precisa usar da violência: analisa – dado que vê – as possibilidades de superação da situação que vivem, na qual o discurso moral contra a barbárie não funciona. Ela mata o líder opositor, libertando a todos – que já eram livres, mas, por estarem cegos, não viram que as portas do “manicômio” estavam abertas para o mundo exterior e nada mais os prendia além da cegueira. Lá fora percebem a destruição provocada pela doença que contaminou a todos, e esse novo mundo destruído deverá ser reconstruído a partir de um novo olhar, de uma nova possibilidade de enxergar.
A luta antirracista dos Estados Unidos tem sido fundamental contra a cegueira em tempos de pandemia. As revoltas provocadas pelo assassinato de George Floyd em Minneapolis têm colocado a necessidade de avançarmos no enfrentamento contra nossos opositores. A jovem militante negra Tamika Mallory explicita essa realidade em seu discurso durante as manifestações: “Não nos fale sobre saques. Vocês são os saqueadores. Os Estados Unidos saquearam o povo negro. Os Estados Unidos saquearam os nativos americanos quando chegaram aqui. Então, saquear é o que vocês fazem. Nós aprendemos isso com vocês. Nós aprendemos violência com vocês. A violência foi o que aprendemos de vocês. Se vocês querem que façamos melhor, façam vocês melhor, porra!”
Em entrevista para o Opera Mundi, o diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Vijay Prashad, oberva que “esperar que a classe capitalista seja benevolente em uma crise é entender mal a natureza do capitalismo”. O capitalismo não vai nos salvar, portanto é fundamental compreendermos, estudarmos e pesquisarmos as alternativas socialistas e dos diversos grupos de resistência contra a pandemia, que se revelam como alternativas para uma nova sociedade. O Instituto Tricontinental se lança nesse desafio de refletir sobre os possíveis caminhos daqui para frente e convida todos a contribuírem nessa reflexão. Nada será como antes. O que será, então?