Pandemia e as desigualdades: Nordeste e seus aspectos interseccionais
Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.
Por Shirley de Lima Samico e Sheila de Lima Samico
“O óbvio é a realidade mais difícil de enxergar”
Clarice Lispector
Resumo: Este trabalho tem como objetivo manifesto denunciar os efeitos sociais de uma pandemia e como o cenário de retirada de direitos afeta desigualmente os territórios e a população. O Nordeste se presentifica como a Região mais afetada pela pandemia da COVID-19, assim como a experiencia recente da SCZV. Os motivos não são obra do acaso e sim fruto das desigualdades regionais. Para isso, esta produção traz discussões sobre o trabalho, quem são esses trabalhadores/as, a economia do cuidado e a limitação do acesso ao auxílio emergencial na Região do Nordeste. Destaca-se também as condições de acesso a infraestrutura, água e condições de moradia. Os tons de considerações vão em uma proposta de pacto social que estabeleça um contrato de unidade e soberania popular.
Introdução
A pandemia da COVID-19 resgata a última experiência epidêmica provocada Síndrome Congênita do Zika Vírus e chama atenção o quanto situações que se emergem inicialmente de ordem sanitárias se conectam com as dimensões sistêmicas que envolvem debates sobre economia, gênero, raça, justiça, saneamento, habitação, desigualdades.
Passados 5 anos do grande surto que mobilizou médico(a)s, gestores públicos, pesquisadores do mundo, a epidemia do zika vírus se “despede” deixando mais de 64% dos casos confirmados na Região do Nordeste. Não à toa, pandemia da COVID-19 se perpetua com seu vírus multiplicador concentrado na Região do Nordeste que detém 35% dos casos confirmados1, dado que supera a Região do Sudeste (34%) que possui população 55% superior à da Região do Nordeste.
Tal relação tem como objetivo manifesto destacar que o impacto social epidêmico resgata as estruturas históricas do modus operandi das desigualdades em que marca algumas regiões e alguns corpos que têm acesso a proteção e outros que sobrevivem precarizados pela pandemia.
Segurança de renda: Trabalho, informalidade e auxilio emergencial
O isolamento social foi a alternativa fornecida pelas orientações sanitárias para as pessoas preservarem suas vidas e da coletividade até que o acúmulo da ciência e tecnologia identifique outras formas de controlar e/ou eliminar a COVID-19. Entretanto, para segurança da vida é necessário assegurar a população trabalhadora a segurança de sobrevivência e renda.
O Brasil possui mais de 92 milhões de trabalhadores/as (IBGE/2018) e destes mais de 41% são trabalhadores/as desprotegidos/as com vínculos informais. Adiciona-se a estes números mais de 12 milhões de pessoas desocupadas e mais de 27 milhões de subutilizadas. Essa situação tem sido agravada pelos cenários de ajuste fiscal e aumento do desemprego e somado a isto, uma política de redução de direitos sociais e trabalhistas.
O papel do trabalho remoto segundo professor Ricardo Antunes: “é a porta de entrada do privilégio da servidão”. A pandemia trouxe o tema do teletrabalho à tona; significa dizer que é o trabalho realizado fora do espaço onde serviço se presta, mas utilizando o sistema informacional. A empresa não controla a jornada e tem como contrapartida redução de custos, invisibiliza o trabalho e individualiza-o; ou seja, o trabalhador perde o vital para a coletividade que é falar entre os iguais e sobre as dificuldades do trabalho coletivo obtendo ausência de capacidade de organização e perdas de direitos.
Desde 2016 há uma intensificação da corrosão de direitos e os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros vivem precariedade nas formas de contratação como: informalidade, flexibilidade, intermitência e uberização, que propõe jornadas de trabalho de 12hs a 14hs por dia. A população Jovem periférica sofre ainda mais por não ter trabalho e nem como sobreviver.
Assim, para assegurar condições concretas para as pessoas ficarem em casa é imprescindível medidas que garantam a estatização da folha de pagamento dos /as trabalhadores/as formais e segurança de renda aos trabalhadores/as informais. Cabe aqui destacar que a primeira medida adotada pelo governo atual foi a suspensão de contrato de trabalho sem pagamento de salário. Por resistência da sociedade civil organizada essa medida não durou 24h.
Para os trabalhadores/as informais resgata-se a discussão sobre renda básica. Debate este que não é novo no Brasil, tem pelo menos 16 anos a partir do projeto de lei de 2004 de Eduardo Suplicy. Aliado a isto, também foi uma proposta indicada por órgãos internacionais, como a ONU e reivindicada pelos governadores/a e pela sociedade civil organizada ao executivo federal. Entretanto, essa conquista só se efetivou pelas mãos dos deputados federais que organizou a proposta junto com sociedade civil, sobretudo membros da Campanha Renda Básica que Queremos, e encaminhou a aprovação da proposta do auxílio emergencial ao executivo federal. Destaca-se também que o governo federal evidenciou uma proposta de auxílio no valor de R$ 200,00. A ampliação para R$600,00 foi uma conquista da sociedade brasileira.
Apesar destes avanços, destaca-se a diferença entre renda básica e o auxílio emergencial. Este segundo é mais restritivo e segue operacionalmente afetando desigualmente os desiguais. As exigências tecnológicas e burocráticas aliados a outras situações agravantes como falta de comunicação e/ou informações suficientes a população, utilização de bases de dados equivocadas, filas e aglomerações estão impedindo que a população mais vulnerável acesse este auxílio.
Dados do Boletim da Vigilância Socioassistencial do Consórcio Nordeste estima a partir da análise da PNADC de 2018 que na Região do Nordeste há cerca de 25.862.830 de pessoas Desocupadas, subutilizadas e ocupadas em trabalho informal. Esse número, apesar de representativo não reflete os efeitos da pandemia na qual certamente aumentou o número de pessoas em situação de insegurança e vulnerabilidade social. Quando ao número de pessoas que receberam auxílio emergencial no Nordeste no mês de abril computam 18.386.580 pessoas que foram contempladas com a primeira parcela deste auxílio. Número que por si só se revela insuficiente para atendimento e proteção da população deste território.
Tais ausências de cobertura podem ser uma das justificativas para o agravamento da curva ascendente dos casos confirmados no Nordeste de forma a igualar com o percentual da Região do Sudeste como pode ser visualizada no gráfico abaixo:
Gráfico 1
Percentual de casos confirmados da COVID-19 nas regiões do Brasil
Segundo dados (PNAD, 2019), lares sem renda do trabalho bateu recorde, superando o pior momento da recessão 2014-2016. Com a pandemia, esses dados tendem a se agravar e provocar efeitos perversos sobre as populações mais desprotegidas. São lacunas grandes e o auxílio emergencial é importante para enfrentar a insegurança de sobrevivência das pessoas mantendo as condições para o isolamento social. Estudos mostram que nas regiões do Nordeste e Norte as políticas sociais apresentam maior importância relativa na renda (SILVEIRA e AZZONI, 2013). Tais dados também reforçam que os efeitos econômicos e de retorno das políticas de distribuição de renda aos mais pobres haja vista seu efeito sobre o consumo.
As desigualdades regionais estão intimamente relacionadas a desigualdades de renda e que associadas a dimensões interseccionais emergem a herança colonial da espoliação dos corpos. O aumento da concentração de casos confirmados no Nordeste está associado a concentração de territórios vulneráveis.
O legado da desproteção, seja pela não garantia do auxílio emergencial, seja por ter que escolher entre o desemprego e ou o risco da vida é um dilema cotidiano da maioria da população adulta. A frase “Eu quero minha mãe” foram as últimas palavras de Miguel, uma criança que estaria viva se fosse garantido o direito da sua mãe, Mirtes Renata Santana, empregada doméstica, ficar em casa. Uma mulher, negra, pobre e Nordestina é entrelaçamento forte de corpos que são precarizados pela pandemia.
Um outro exemplo emblemático, mas que certamente ofuscado pelas estatísticas, foi o primeiro caso de vítima de óbito no Rio de Janeiro. Uma mulher negra, empregada doméstica em que sendo tolhido o direito ao isolamento social pegou a COVID-19 com seus patrões que sobreviveram ao vírus, mas deixou o legado colonial que deixa evidente a ausência de qualquer caráter democrático pandemia.
Apesar da luta pelo reconhecimento trabalhista das empregadas domésticas, os dados da PNAD C 2018 destacam que há no Brasil 6.233.470 empregadas domésticas e destas, 72% estão desprotegidas sem carteira assinada e 1.738 com carteira assinada. No Nordeste são 1.186.753 empregadas domésticas que trabalham sem carteira assinada. Uma categoria em que a invisibilidade e a desumanização são sintomáticas. Um exemplo claro foi o decreto do Governador do Pará e do Prefeito de Belém do Pará que considerou o trabalho doméstico um trabalho “essencial” na pandemia. Após a reação negativa o texto foi redigido.
Esse fogo cruzado também afetarão as diaristas como também outros grupos, como trabalhadoras/es do sexo em que o tipo de trabalho que exercem afetará a sua forma de subsistência.
Adicionado a isto, destaca-se que as Mulheres são consideravelmente mais afetadas em situações de pandemia. A elas é reservado o papel de cuidar. Dados revelam que as mulheres do mundo se dedicam 12.500 milhões de horas de trabalho não remunerado todos os dias (OXFAM Brasil, 2020).
Com a necessidade de isolamento social, as aulas e creches canceladas soma-se o aumento da demanda reprodutiva e uma carga emocional, física e psíquica. Relato das vivências das mulheres nas comunidades pobres da região metropolitana do Recife destaca as dificuldades financeiras e emocionais do cotidiano do cuidado com as crianças na pandemia, seja pelo aumento da alimentação, seja para a reinvenção de novas estratégias metodológicas e educativas uma vez que a ausência de posse de equipamentos tecnológicos e o acesso à internet cria barreiras para as aulas virtuais. Sobre estas novas estratégias, as mulheres relatam a indução de filhos acordarem mais tarde para a criança entrar na refeição do almoço economizando o café da manhã.
Ainda mais vulneráveis estão as mulheres mães adolescentes 16 ou 17 anos cuja atividade tenha sido suspensa durante a quarentena. Este perfil não terá direito ao auxílio emergencial, haja vista a restrição normativa o que desprotege ainda mais estas mulheres.
De acordo com pesquisa da antropóloga Denise Pimenta (2020), em tempos de epidemia há aumento nos índices de gravidez na adolescência, bem como violência contra mulher. Tal pesquisa foi fundamentada na crise do ebola em Serra Leoa, África. No contexto da pandemia da COVID-19 o isolamento social torna-se um indicador de proteção sanitária, mas de alerta a violência e violações haja vista a casa nem sempre ser o lugar seguro para todas as mulheres.
Esta esfera do cuidar, como bem chama atenção a antropóloga, coloca em situação de maior vulnerabilidade a infecção ao vírus, “o mesmo cuidado que salva, mata”. (O cuidado perigoso: tramas de afeto e risco na Serra Leoa). Para as mulheres urbanas, rurais, indígenas e quilombolas, a pandemia não terá prazo, pois o vírus não se manifesta apenas como uma questão de higiene, embora há uma forte correlação entre pobreza monetária e precariedades e vulnerabilidades nas condições de moradia, habitação, coleta de lixo e acesso a água.
Estudos sobre indicadores de pobreza multidimensional ou restrições de acessos a múltiplas dimensões (IBGE/2019; ALKIRE – OPHI) sinalizam as dimensões de saúde, alimentação, educação, padrões e direitos estabelecidos, acessos a serviços básicos, moradia adequada, saneamento básico, acesso à internet como aspectos importantes para o bem estar de uma população. Entretanto a Região do Nordeste possui dados superiores às médias nacionais em termos de restrições destes acessos a ativos sociais e de bem estar a população. Tais dados evidenciam o reforço dos programas sociais e políticas sociais para estas regiões em que a marca das desigualdades é mais gritante.
Infraestrutura e acessos a Água e Saneamento
Contraditoriamente no momento de pandemia que torna-se evidente a necessidade do acesso democrático a água e saneamento básico que, em nosso país, o Senado aprova em 24 de junho o projeto do novo marco regulatório do saneamento básico que tem por objetivo iniciativa privada no setor de saneamento básico representando também um sinal claro para a privatização da água no Brasil.
As regiões do Norte e Nordeste são as mais deficientes com relação ao tratamento de esgoto. Este cenário contribui tanto para aumento da proliferação de doenças, demandando mais investimentos em saúde pública, como acentuação das desigualdades sociais. Com a aprovação do marco regulatório haverá um aumento no valor da conta de água e da tarifa de esgoto, o que vai inviabilizar ainda mais a população deste acesso essencial e imprescindível a vida.
Outro fator que sofre impacto direto da falta de acesso a água é a desigualdade de gênero, as mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados familiares e da casa, portanto possuem necessidade preeminente de acesso à água potável e esgotamento sanitário. A escassez e má distribuição leva a mulheres a percorrerem longas e íngremes distâncias para obter água.
Dentre as justificativas a privatização, é que há uma atuação deficitária na produção e na distribuição gerando perdas de água, havendo necessidade de racionalização do consumo. A crescente urbanização e a necessidade de limpeza urbana e manejo correto dos resíduos sólidos é uma das causas principais dessa questão. O setor privado não tem competência para acompanhar esses processos urbanos. Dessa forma, está claro que para o setor privado o saneamento é um negócio, dessa forma, como garantir a distribuição de água a população que não pode pagar por ela?
Várias cidades no mundo, a exemplo de Paris, Berlim, Buenos Aires, que cederam a iniciativa privada depois voltaram atrás. Aqui no Brasil temos o exemplo de Manaus, segundo o ranking de saneamento 2020 do Instituto Trata Brasil, somente 12,5% da população da capital do Amazonas é atendida pela coleta de esgoto. O setor privado atua há 20 anos na região. Este fato evidencia que o setor privado não soluciona a situação.
Há incompatibilidades entre o papel social de uma companhia de água e saneamento com as necessidades de um grupo privado. Há outros interesses para o controle da água do setor privado, inclusive aumentar o controle da água, considerando que se trata da matéria prima essencial para fabricação de muitos produtos de empresas transnacionais. Destaca-se o cenário na américa Latina e Caribe (TRICONTINENTAL, DOSSIÊ N. 24/2020) da “Intensificação da apropriação privada transnacional dos bens da natureza e uma maior intervenção e subordinação aos interesses dos EUA”.
O acesso aos serviços de utilidade pública é um importante indicativo para proteção social e desmercantilização da vida, assim o acesso a água e saneamento é um bem público. O setor do saneamento básico é fonte de problemas ambientais, sociais e de saúde, os investimentos públicos tem necessidade de ser prioridade.
Condições de Moradia
O Coronavírus não se destaca por sua taxa de mortalidade e sim pela velocidade de contágio e sua expansão universal. A questão das moradias nas áreas mais pobres diz muito sobre as condições adequadas de isolamento e o traço das percepções das desigualdades sociais nessa pandemia.
Grande parte da classe trabalhadora não consegue manter o isolamento e o distanciamento social, seja por manterem suas atividades laborais como também pelas condições de moradia, muitas famílias residem em habitações precarizadas, sendo impossível isolar algum membro da família quando infectado, isso explica inúmeros casos de contaminação de todos os membros de um núcleo familiar.
Em relação a quantidade de pessoas em um mesmo domicílio, dados do CadÚnico sinalizam que no Brasil há 2.842.881 famílias residem em domicílio igual ou superior a 5 pessoas na mesma residência. A Região Nordeste corresponde ao maior número desse registro nacional com 1.169.689 famílias o que representa 41% dessa população conforme pode ser observado no gráfico abaixo.
Estes dados ainda sinalizam que as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família possuem maior proporção com domicílios acima de 5 pessoas. Para estas pessoas o isolamento domiciliar se presentifica um desafio, sobretudo quando é acompanhado de poucos cômodos e espaços restritos. Adicionado a esta preocupação a presença de grupos vulneráveis como pessoas com doenças crônicas ou autoimune, imunossuprimidas (fizeram transplante), pessoas com HIV, mulheres grávidas, pessoas idosas e pessoas com deficiência, intensifica ainda mais a letalidade da pandemia para estas famílias.
Outro fator relevante é que com empobrecimento das famílias muitas não conseguem pagar seus aluguéis e isso acarreta de migração para casa de parentes e espaços menores de convivência porque são tudo o que têm ou o que podem pagar, tornando o distanciamento social ainda mais impossível.
Há outros componentes que a densidade habitacional agrava dentre eles o aumento dos trabalhos domésticos e de cuidados como também da violência contra mulher. Especialistas apontam que os maiores problemas com a exposição ao coronavírus acontecerão quando os casos se multiplicarem nos bairros mais pobres e densos (DAVIS et al., 2020). Embora os primeiros cenários foram registrados pela classe média, essa concentração de casos tem diminuído, porque a maioria dessas pessoas tem plano de saúde e condições de realizar o isolamento domiciliar. No entanto, é preocupante o aparecimento desses novos contágios, que se espalham mais fortemente pelas regiões mais periféricas.
Epidemias e cidades são resultados de um mesmo fenômeno: as aglomerações humanas. É nesse contexto que precisamos problematizar a questão das moradias, há questões latentes: Habitações inadequadas, insalubres e inacessíveis. Moradia desajustada tem resultados negativos diretos para a saúde das famílias, especialmente para crianças e idosos.
Experiências recentes já mapearam e colocaram evidentes estes dados. O Brasil foi epicentro da epidemia Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZ) e a Região mais afetada foi a região com mais altos índices de restrições de acesso a moradia adequada, saneamento básico.
É papel do Estado criar condições para garantir o isolamento da população como também assegurar o direito à moradia adequada para toda população. Esse momento apresenta sobretudo bem favorável a retomada das discussões em infraestrutura urbana e habitação como recurso de política econômica anticíclica para o combate ao desemprego e desigualdades. De acordo com Fernando Nogueira no artigo: Vamos Salvar o Brasil: “A conquista da própria moradia livrará 30% do orçamento doméstico de despesas com aluguel”. Assim, faz-se fundamental que se tenha uma política de subsídios para a melhoria geral das condições de habitação de famílias mais vulneráveis.
Sistemas Únicos: Saúde e Assistência Social
Estamos há mais de 100 dias a partir do primeiro caso confirmado no Brasil2 da COVID- 19 e apesar de muitas incertezas não há dúvidas na defesa de que o SUS e o SUAS são direitos coletivos e devem ser exercidos nos seus comandos interfederativo, participativo e universal.
O SUS, de caráter universal atende diretamente 75% da população ou 150 milhões de brasileiros/as (RADIS/2019), o SUAS é para todos/as que dela necessitarem e possui 36% da população brasileira no CadÚnico ou seja 75.122.587 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade identificadas neste Cadastro Público.
A demanda por estes Serviços tem aumentado com a pandemia e suas respostas coincidem com o cenário de redução de recursos, efeitos das ações de austeridade fiscal prevista na Emenda Constitucional 55.
A redução do orçamento federal para o cofinanciamento do SUS e SUAS inviabiliza as conquistas da sociedade civil organizada para as intervenções destas políticas no atendimento e proteção social a população. Outro destaque é o desrespeito as instâncias de Controle Social exercidas através das comissões técnicas Intergestores (CIT) e Conselhos Nacionais. As decisões estão sendo construídas de forma vertical, sem escuta dos órgãos de controle social e com poucos estudos robustos que evidenciam os impactos destes cortes a população e as implicações nas desigualdades de acessos regionais.
A ausência e legitimidade nos estudos técnicos para a tomada de decisões governamentais têm dado lugar a marca de posições de ordem políticas e com consequências negativas para acesso a população mais pobre aos programas sociais, bem como para a soberania nacional e para a integração regional.
Um exemplo claro desta afirmação acima são as análises dos dados dos últimos 12 meses do Programa Bolsa Família. O Nordeste foi a Região que teve maior redução de beneficiários, enquanto as regiões do Sul, Sudeste e Centro-Oeste tiveram aumento em relação ao número de famílias beneficiárias conforme pode ser observada no quadro abaixo:
Quadro 1
Comparativo do quantitativo de Famílias Beneficiárias do PBF nos meses de maio – 2019 e 2020 Regiões 2019 2020
Um outro fato recente foi a proposta do governo federal para redução de 83,9 milhões de recursos de transferência de renda da Região Nordeste3 para alocar na Comunicação Institucional. Os estudos técnicos e científicos apontam o Nordeste como a população mais vulnerável do país, fato que tem se agravado neste cenário de redução de direitos. Estes e outros episódios que sinalizam as desigualdades e discriminação em relação a região do Nordeste tem sido denunciada pelos governadores do Nordeste através do Consórcio do Nordeste, bem como reconhecimento de posturas discriminatórias pelo Supremo Tribunal Federal (STF4).
Dados do CadÚnico sinalizam o aumento da pobreza nos últimos 4 anos no nordeste conforme gráfico abaixo.
No contexto atual estes números colocam muito agudamente questionamentos sobre a importância dessa população desprotegida acessar a Assistência Social, bem como provoca discussões sobre direitos trabalhistas, e rediscutir as últimas medidas que acentuaram a informalidade e aumento do desemprego. Resultados da pesquisa IBGE – PNAD COVID19 destacam que a Região Nordeste lidera as incidências de trabalhadores/as afastados, com taxa de 26,6%, e de trabalhadores que ficaram sem remuneração (55,3% dos afastados).
Esse público, com a pandemia, são novos usuários cidadãos do SUAS que tendem a requisitar acessos a segurança, e especialmente de renda, através dos benefícios eventuais e auxílios emergenciais. Atualmente5, aproximadamente 50% dos beneficiários Bolsa Família estão concentrados na Região do Nordeste e, em relação ao Beneficio de Prestação Continuada a Pessoas Idosas, acima de 65 anos e Pessoas com Deficiência, 35% dos Beneficiários estão nesta região6.
Estas políticas sociais além da segurança as famílias em relação a pobreza, atuam nas complexidades de violações e violência e também têm o efeito macroeconômico a partir do consumo e movimentação da econômica local.
Assim, é erro grave a dissociação do social e econômico e a lógica que a política econômica brasileira se pauta em que os programas sociais, a exemplo da Política de Assistência Social no Brasil deve seguir o ciclo da economia, se há recessão as políticas sociais são retraídas, sendo justamente nesses períodos de crise que ela precisa funcionar mais e melhor.
Rumos para um pacto social
O capitalismo atual decorre do estágio avançado de consolidação generalizada do trabalho precário, por isso que escondem a importância das atividades laborais e incluem a difusão ideológica do sujeito social competitivo e empreendedor de si mesmo, descrente da ação do estado e das políticas públicas de ação coletiva. O desafio da esquerda social é de atuar junto a vida cotidiana dos trabalhadores e das trabalhadoras para avançar no desenho e na proposta de apresentar um novo projeto humano e social.
A classe trabalhadora é quem mais sofre impactos econômicos e sociais dessa pandemia. As crises por si só não elevam o nível de consciência e nem organiza as pessoas; mas elas possibilitam janelas históricas que favorecem o reposicionamento das classes, a organização popular e o avanço das forças populares. Temos vivido ações de solidariedade diversas regiões do Brasil e do mundo. Encontrarmos a disposição para a retomada da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização das massas, é sem dúvida o maior desafio do nosso tempo.
A compreensão da permanência de uma classe explorada economicamente, oprimida socialmente e dominada politicamente nos faz refletir sobre a necessidade de avançar nas conquistas democráticas sobre renda, Educação, Saúde, Assistência Social, Moradia e trazer alternativas para redução das desigualdades para além de sua matriz econômica. A questão local é um ponto de partida substancial, enquanto existem organizações locais, acumulam-se novas experiências, organizam-se novas formas e interpretam-se outros formatos de pensar sobre a natureza, a terra e as relações sociais, trabalha-se com outros princípios de organização do trabalho, valorizando o trabalho humano e garantindo a vida, ou seja, recriando novos valores.
Apesar das dificuldades políticas e organizativas do campo popular, o desfecho da crise atual está aberto para irmos além da conexão com bairros populares na construção de saídas para o futuro em um pacto social.
Há a tarefa de resistência, mas há também a tarefa de recomposição de pontes. Todo tipo de frente deve ser tentado, haja vista, a importância de acumular forças para desgastar, isolar e derrotar esse projeto neoliberal bem como a urgência da amplitude na unidade de ação e construção de uma mensagem que dialogue com as massas e suas condições de vida.
Esse trabalho de resistência e organização para formulação de novas propostas e diagnósticos apontando para o acúmulo nas transformações sociais é também investir na convivência, em práticas como a agricultura familiar, para que se tenha alimento, trabalho e sustentabilidade. A agroecologia é o Norte para os próximos tempos. Essa aliança dos movimentos sociais do campo mais forte com urbano é fundamental para reorganizar os espaços.
A vida se sustenta em sua prioridade pela natureza e os alimentos, mas também pelo trabalho doméstico e economia dos cuidados, gerar mudanças sociais é também colocar esse tempo das mulheres na discussão das alternativas nos territórios. Essa divisão é fortemente atravessada pela dimensão de raça, uma vez que são as mulheres negras que estão geralmente nos trabalhos precários e mal remunerados dos cuidados fora de casa e em suas casas também.
Neste momento não pode-se dizer quando viveremos o pós-pandemia, haja vista que não podemos prever quando a mesma sucumbirá de fato, porém precisamos olhar que a fase amena vai nos apresentar momentos tão difíceis quanto, inclusive o que conseguimos acumular no hoje será parte desta vivencia do pós-pandemia.
A única forma de salvar vidas é pela organização popular bem como avançar pelo internacionalismo das esquerdas. Como diz a declaração de solidariedade a Cuba, 2019: “unidade anti-imperialista das forças políticas de esquerda e dos movimentos sociais e populares, em relação à pluralidade, a diversidade e aos direito soberanos dos povos de escolher livremente sua forma de organização política, econômica e social, convencidos de que a unidade é a única via para alcançar a vitória no enfrentamento ao principal inimigo dos povos: O imperialismo ianque e seus aliados”.
Considerações
Momentos pandêmicos são importantes para avaliar como são poucos os aprendizados com as experiências e momentos históricos. Tal afirmação se refere a comparação de duas situações de emergência sanitárias em que efeitos intensificadores e letais vai além da doença e revela as desigualdades sociais e ausência de caráter democrático de qualquer epidemia/pandemia.
Ao vivenciar os acontecimentos de retirada de direitos no Brasil a pandemia escancara como o tecido social que move esse país é frágil. São os/as trabalhadores/as que movem a economia, alimentam o campo e a cidade que estão esfoliados e a mercê entre o desemprego e o risco de preservar sua vida.
Eis os dilemas da maioria da nossa população trabalhadora cuja efeitos maus agudizados tem nomes, territórios, raça e sexo. O uso de álcool em gel, higienização, isolamento social, são medidas que esbarram em realidades marcadas por ausência de direitos como emprego, renda, moradia e condições de saneamento básico e acessos a Saúde e Assistência Social.
Assim, nos resta clamar pela organização coletiva, pelas reivindicações por direitos e uma discussão de um pacto social capaz de conquistar dilemas históricos sobre as divisões das contas e quem paga essa conta. Taxação das grandes fortunas já.
Referências
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Assistência Social no Consórcio do Nordeste. Boletim 1 da Vigilância Socioassistencial do Nordeste: Assistência Social no Enfrentamento no COVID-19, acesso em: https://www.sigas.pe.gov.br/pagina/covid19–outras-postagens
OXFAM. BRASIL. Tempo de cuidar: O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. Brasília. 2020.
SILVEIRA. Neto, R; AZZONI, C. Os Programas Sociais e a recente queda da desigualdade regional de renda no Brasil. In: Campello. T; Neri M. C. (Orgs.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasília. Ipea. 2013.
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COSTA, Fernando Nogueira da. Vamos salvar o Brasil: Não há um salvador da pátria. Há um sistema complexo com múltiplos componentes interativos para emergir numa democracia social. 2020
DAVIS, M. et al. O precariado e a luta de classes. Revista Crítica de Ciências Sociais. DOI: 10.4000/rccs.5521, 2020.
Pacheco, Matías Ocaranza. Rabelo, Henrique Soares. Correia, Ludmila Araújo, Schattan, Renato e Dias, Camila Maia. As desigualdades na área Metropolitana de Brasília e os perigos do coronavírus (COVID-19): impacto das medidas não farmacológicas no sistema de saúde e no funcionamento da metrópole (2020)
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