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Artigos

Samir Amin: um dos raros cortadores de diamantes de seu tempo

 

Há exatos dois anos nos despedíamos do economista marxista egípcio Samir Amin. Para homenagearmos uma dos grandes intelectuais do nosso tempo, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lança a introdução inédita escrita por Aijaz Ahmad do livro Somente o povo faz sua própria história, uma antologia de textos de Samir Amin. O livro será lançado ainda esse ano em parceria com a editora Expressão Popular, e faz parte da série Sul Global, uma coletânea de livros que busca resgatar as experiências políticas de libertação nacional, resistência popular e construção de experiências socialistas que marcaram os países da periferia mundial, o assim chamado “Terceiro Mundo”.

 

Por Aijaz Ahmad

 

Ser “marxista” é continuar o trabalho que Marx apenas começou,
ainda que esse começo tenha sido de um poder inigualável.
Não é para ficar em Marx, mas começar a partir dele… Marx é ilimitado
porque a crítica radical que ele inicia é ela mesma sem limites,
sempre incompleta, e deve sempre ser o objeto de sua própria
crítica (“marxismo como formulado em um momento particular tem que
sofrer uma crítica marxista”).
Samir Amin, The Law of Worldwide Value [A lei do valor mundial]

 

Samir Amin (1931–2018) foi um dos grandes intelectuais de nosso tempo1. Um teórico distinto, cuja militância política abrangeu mais de seis décadas. Socialista desde tenra idade e formado em Economia, ele insistiu que as leis da ciência econômica, incluindo a lei do valor, estavam operacionalmente sujeitas às leis do materialismo histórico. Também com formação em Matemática, ele evitou matematizar muito seus conceitos e manteve as fórmulas algébricas a um nível mínimo, mesmo no mais técnico de seus escritos. A ambição sempre foi manter o rigor teórico e, ao mesmo tempo, comunicar-se com o maior número possível de leitores – e militantes em particular – por meio da exposição em prosa relativamente direta. Seus leitores, como sua própria militância política, estavam espalhados por países e continentes.

Amin chegou à vida adulta nos anos 1950, quando a onda de revoluções socialistas parecia estar em ascensão e os velhos impérios coloniais estavam sendo desmantelados na Ásia e na África. Partidos comunistas e movimentos socialistas haviam surgido nesses continentes, mais na Ásia que na África, ainda antes da Segunda Guerra Mundial. O início do período pós-guerra testemunhou uma imensa expansão da atividade revolucionária – a Revolução Chinesa, a Revolução Coreana, o início dos movimentos revolucionários de liberação na Indochina, e assim por diante. Com a notável exceção da China, entretanto, a maioria dos países desses continentes produziram relativamente poucos trabalhos originais no campo do conhecimento teórico marxista. O estudo de qualquer tipo de marxismo significava a tradução ou explicação de textos produzidos em outros lugares, e mesmo esses se limitavam a breves textos, extratos dos clássicos ou exegeses marxistas feitas na Grã-Bretanha, França ou União Soviética. Isso começou a mudar, de diversas e notáveis maneiras. Primeiro, testemunhamos o surgimento de uma nova geração de militantes e acadêmicos marxistas em toda a Ásia e África ao longo dos mesmos anos em que impérios coloniais estavam sendo desmantelados. Segundo, alguns desses novos intelectuais, muitas vezes associados a partidos comunistas ou a movimentos de libertação nacional, traziam para seus trabalhos conhecimentos cada vez mais sofisticados sobre os mais fundamentais clássicos: as principais obras de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Bukharin, Kautsky e outros. Terceiro, a atenção se volta para análises extensas e rigorosas sobre 1) o desenvolvimento histórico, modos de produção e estruturas de classe não tanto da Europa, mas dos países asiáticos e africanos, e 2) os mecanismos muito elaborados envolvidos na exploração dos países imperializados, ou seja, o processo pelo qual os valores produzidos nas colônias foram apropriados para acumulação nos centros imperialistas.

A menção a algumas datas deve esclarecer isso. Samir Amin, por exemplo, submeteu sua tese de doutorado de 629 páginas à Universidade de Paris em 1957 e a publicou muito mais tarde nos dois volumes de Accumulation on a World Scale [Acumulação em escala mundial] (edição francesa de 1970 e tradução inglesa de 1974). Aproximadamente ao longo dos mesmos anos, a Índia testemunhou a publicação de três livros que foram fundacionais na elaboração da historiografia marxista indiana: An Introduction to the Study of Indian History [Uma introdução ao estudo da História da Índia] (1956), de D. D. Kosambi; The Agrarian System of Mughal India [O sistema agrário da Índia Mongol] (1963), de Irfan Habib; e Indian Feudalism [O feudalismo indiano] (1965), de R. S. Sharma. Do outro lado do mundo, na América Latina, todos os textos fundadores dos teóricos da dependência – Theotônio Dos Santos, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank e outros – também apareceram na década de 1960 e no início da década seguinte2. Teoricamente, Amin estava muito mais perto de Paul Baran, que publicou The Political Economy of Growth [A economia política do crescimento], em 1957, ano em que Amin apresentou sua enorme tese. O grande clássico de economia política marxista que Baran é coautor com Sweezy, Capitalismo monopolista, foi lançado logo depois, em 1966. A anatomia do imperialismo havia, assim, chegado ao centro do novo pensamento marxista em todo o mundo, e o próprio marxismo tornou-se uma poderosa ferramenta para pensamento e pesquisa independentes em todo o Tricontinente. Em ambos os casos, a tese de Amin parece estar entre os primeiros textos que refazem os contornos do marxismo do pós-guerra de uma forma muito particular, como discutiremos a seguir.

Amin possuía proficiência em diversas línguas, mas escreveu principalmente em francês. Ele era um escritor incrivelmente prolífico, produzindo livros e artigos com grande velocidade até a morte silenciar sua mente fecunda. Nem todo o seu trabalho está disponível em inglês. Algumas das traduções apareceram em outros lugares, mas, em geral, a Monthly Review Press tem sido de longe a editora mais dedicada a traduzir sua obra para o inglês. Esta coleção reúne onze ensaios que a revista publicou desde 2000. Há outros que foram publicados na revista nesse período3. O objetivo aqui é montar uma coleção não muito pesada de seus ensaios que ilumina algumas das linhas mais fundamentais do pensamento de Amin nos últimos anos de sua vida. A introdução aqui foi pensada não para explicar esses textos, mas para situá-los no contexto mais amplo de sua vida, em que o pessoal, o político e o teórico se entrelaçaram em um firme nó.

I

Samir Amin publicou dois livros de reflexões sobre sua própria vida. Em Re-reading the Postwar Period [Relendo o período do pós-guerra], ele oferece sua própria reconstrução de suas opiniões políticas e posições teóricas conforme elas evoluíram de uma década para a outra até o início da década de 1990.4 O fato de que ele chegou a Paris para começar a faculdade em 1947, ano em que a Índia conquistou sua independência, nos lembra que sua vida adulta coincidiu exatamente com o período que ele revisa naquele livro. Ele era um jovem comunista e estudante militante na França durante as grandes e amargas guerras de libertação nas colônias francesas do Vietnã e da Argélia. O desmantelamento dos impérios coloniais britânico e francês foram os eventos memoráveis de sua juventude. A sobreposição de colonialismo, imperialismo pós-colonial e acumulação capitalista logicamente tornou-se a ocupação central em sua vida intelectual, bem como em sua militância política pelo resto de sua vida. Em O capital e trabalhos relacionados, Marx moldou a ciência do modo de produção capitalista, na forma como ele havia evoluído na Europa, na Grã-Bretanha em particular, até o momento em que ele viveu. Em outros textos, como os Grundrisse e o bem posterior Notas Etnográficas, Marx falou muito sobre o mundo fora da Europa, mas principalmente sobre as formações pré-capitalistas. Ele escreveu longamente e quase sempre de forma muito criteriosa sobre colonialismo, mas, na maioria das vezes, ateve-se à descrição fatual e à denúncia política, com apenas algumas observações teóricas dispersas. Para Marx, uma compulsiva tendência globalizante era inerente ao próprio modo de funcionamento do capital. No entanto, para além dessa conhecida previsão, o corpus real de seu trabalho não abrangeu uma teoria do capitalismo (e nem o terceiro trimestre do século XIX foi um tempo propício para sua elaboração) que viria a se tornar um modo de produção totalmente globalizado – não somente de apropriação, extração e circulação – na forma, primeiro, de imperialismo colonialista e, depois, ainda mais fortemente após a dissolução dos antigos impérios coloniais. O diferencial de Amin em sua tese de doutorado que foi posteriormente publicada como Accumulation on a World Scale [Acumulação em escala mundial] foi aplicar as categorias teóricas d’O capital para o estudo do modo capitalista à medida que ele se espalhava globalmente por meio do colonialismo, colocando no lugar estruturas de exploração e acumulação que deveriam superar em muito a era colonial per se5. Para ele, e para outros poucos marxistas, o fim do período colonial marcou um decisivo ponto de inflexão na história da liberdade humana que abriu novos caminhos para as lutas de liberação dos povos do Tricontinente – mas não uma interrupção fundamental nem na história do capitalismo ou do imperialismo per se. A ambiguidade histórica dessa conjuntura é bem representada pelo fato de que o quarto de século entre 1945 e 1970, em que esses impérios coloniais foram amplamente dissolvidos, também ficaram conhecidos como a Idade de Ouro do capital.6 Essa tentativa de ler Marx rigorosamente, mas criativamente, à luz da evolução posterior do modo capitalista, permaneceu como um fio condutor importante no trabalho de Amin em toda sua vida, até a The Law of Worldwide Value [A lei do valor mundial] (2010) e além7. Retornaremos a esse tema em breve.

Relendo o período pós-guerra relata os estágios de seu próprio desenvolvimento intelectual em relação às principais características e eventos desse período. As últimas partes de outro livro de memórias, A Life Looking Forward [Uma vida olhando adiante], reconstrói esse mesmo itinerário político-intelectual em termos mais pessoais, mas é nas seções anteriores do livro que temos uma narrativa vívida de seu crescimento em uma família peculiar e sua precoce orientação em direção à política revolucionária, de modo que toda a sua vida, do início ao fim, apresenta-se de forma coesa em um todo integrado.8 Este livro de memórias mais pessoal abre com uma frase simples: “Antepassados importam”. Segue-se a isso, no mesmo parágrafo inicial: “certamente minha própria família, do lado da minha mãe e do meu pai, lembrava-me de tempos em tempos que a educação que eles estavam me dando era um ‘legado’ ao qual eles estavam firmemente ligados”. Com um pai egípcio e uma mãe francesa, esse “legado” possuía dois lados: “meus pais se conheceram em Estrasburgo como estudantes de Medicina na década de 1920. Esse foi um feliz encontro entre a linha do jacobinismo francês e a democracia nacional egípcia – na minha opinião, as melhores tradições dos dois países.9

A família do pai era da classe alta conhecida como copta, parte de um pequeno mundo cosmopolita de egípcios cristãos e muçulmanos, gregos, armênios, malteses, bem como migrantes franceses e britânicos espalhados por todo o Cairo, porém ainda mais presentes em Alexandria, Port Said e toda a região onde o fértil delta do Nilo, no Baixo Egito, encontra a costa mediterrânea do país. A família, que incluía conhecidos editores e escritores do século XIX, formava parte de um ambiente maior que valorizava convicções seculares democráticas, o ensino superior, a posição profissional e uma espécie de iluminismo burguês liberal que menosprezava todos os tipos de feudalismo e conservadorismo. Seu pai, um médico de profissão e um burguês com consciência social, opunha-se tanto ao colonialismo britânico quanto à monarquia, e preferia os comunistas aos nacionalistas demagogos, incluindo Nasser. Do outro lado da família, Amin cita seu avô materno, maçom e socialista, certa vez explicando a ele: “nós, alsacianos, ajudamos a fazer a Revolução [francesa] e sabemos o significado e o preço da liberdade”. Quanto à avó materna, nasceu logo após a Comuna de Paris, em 1874 […] foi uma das descendentes do revolucionário francês Jean-Baptiste Drouet, que desempenhou um papel na prisão de Louis XVI, em Varennes, em 1791 […]. Minha avó estava muito orgulhosa desse ancestral, que foi também ativo no movimento de Babeuf […] Quanto ao nome de minha avó, Zelie, estava bastante na moda no século XIX, mas ela me disse que havia sido dado em homenagem à communard Zelie Camelinat.

Essa avó não gostava de religião e preferia reviver o slogan do Iluminismo “sem Deus, sem mestres”, que anarquistas do século XIX, como Bakunin, compartilhavam com Marx nessa época.

Wafadismo10 democrático, anticolonialismo de esquerda e antimonarquismo de um lado; memória familiar de regicídio republicano e revolucionário, comunismo ao estilo de Babeuf e Comuna de Paris do outro: um “legado” formidável de fato. Amin cresceu nessa família grande, amorosa, feliz e integrada, com visões políticas e vínculos históricos claros. Ele foi para a escola durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Grã-Bretanha ainda era uma presença colonial e a mestre da monarquia egípcia, ao mesmo tempo que um avanço alemão por toda a região foi, em determinado momento, uma possibilidade. Sua escola secundária, um liceu francês, não estava imune a várias correntes políticas da sociedade egípcia: monarquistas e antimonarquistas, nacionalistas de várias faixas e, claro, comunistas. Amin escreve sobre estar firmemente no grupo comunista de estudantes. Ao terminar o secundário, ele se juntou oficialmente ao Partido Comunista Egípcio. Quando Andre Gunder Frank perguntou à mãe de Amin sobre quando, em sua opinião, seu filho se havia tornado comunista, a mãe, bem-humorada, contou uma anedota de infância e supôs que talvez havia sido aos seis anos de idade.

Os dez anos que se passaram entre 1947 – quando Amin chegou a Paris para o ensino superior, juntando-se ao Partido Comunista Francês muito rapidamente – e 1957, quando ele apresentou sua tese de doutorado, foram os anos das grandes guerras de libertação das colônias francesas na Indochina e na Argélia, como mencionado anteriormente, o que gerou amargas polarizações dentro da sociedade francesa entre militantes, intelectuais, estudantes universitários e a própria população em geral, divididos entre contrários e favoráveis à guerra. Essa também foi a última década na qual o Partido Comunista Francês teve papel relevante na política francesa, antes que iniciasse seu declínio, e do marxismo como a questão central na vida intelectual francesa (o que poderia ser visto, por exemplo, por Sartre fazendo sua passagem do existencialismo para o marxismo11 e a renúncia contrastante de Merleau-Ponty ao marxismo em favor de uma posição liberal de esquerda). A França também era o lar de importantes enclaves da classe trabalhadora imigrante, formada por pessoas que haviam vindo de suas colônias do norte da África, Argélia em particular. Paris em si tinha sido um importante centro intelectual para estudantes anticoloniais, militantes, escritores e intelectuais das colônias africanas e caribenhas desde a década de 1930, quando intelectuais como Senghor e os dois Césaires (Aimé e Suzanne) estavam entre o grupo que criou Negritude, um movimento literário profundamente marcado por posições filosóficas de esquerda e muitas vezes combinando uma ideologia pan-africana com poética surrealista.12 Fanon (um estudante de Aimé Césaire) chegou em 1946 de outra colônia francesa, a Martinica, para estudar psiquiatria em Lyon, em uma instituição onde Merleau-Ponty, uma influência fundamental para Fanon, ensinava filosofia. Amin chegou a Paris um ano depois, em 1947, e Alioune Diop fundou a lendária revista Présence Africaine nesse mesmo ano, que levaria à criação da editora igualmente lendária Editions Présence Africaine, dois anos depois, em 1949. Em 1956, um ano antes de Amin concluir seu doutorado, a editora – até então a principal editora mundial de escritores de origem africana (escritores do Atlântico Negro, poderíamos dizer agora) – organizou o primeiro Congresso Internacional de Escritores e Artistas Negros (para o qual Picasso desenhou o pôster). Esse período de dez anos testemunhou a publicação de quatro clássicos da literatura anticolonial que centravam-se em grande medida na experiência africana mais ampla: de Fanon, duas obras: Pele negra, máscaras brancas (1952) e Os condenados da terra (1961); de Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo (1961); e O colonizador e o colonizado, de Albert Memmi (1957).13 Não são livros de economia política, mas o que têm em comum com a tese de Amin, que ele apresentou bem no meio dessa efervescência intelectual anticolonial, é a convicção, expressada e documentada em detalhes, que o colonialismo havia produzido um mundo binário – literalmente um mundo – que simplesmente não poderia ser corrigido através de qualquer tipo de reforma ou reconciliação, mas deveria ser destruído e depois reconstruído com estruturas revolucionárias completamente diferentes. Amin e Césaire eram, naturalmente, comunistas nesse ponto de suas vidas. Fanon passou a fazer parte de círculos comunistas em seus dias de estudante e estudou marxismo tão assiduamente quanto leu sobre existencialismo e Nietzsche. Foi trazido para o movimento de libertação da Argélia pelo líder de esquerda, Abane Ramdane, e no final de sua vida dava aulas para seletos grupos desse movimento sobre a Crítica da Razão Dialética, de Sartre, possivelmente o último grande (e inacabado) trabalho filosófico do marxismo ocidental. Samir Amin em grande parte foi produto e parte dessa efervescência. Seu diferencial, no entanto, foi que, diferentemente de outros que realizaram trabalhos similares no campo da Literatura e Estética, Teoria Política, Antropologia Psicossexual ou Dialética Filosófica de um tipo materialista, ele buscou uma rigorosa teoria marxista da Economia Política a partir da divisão fundamental entre o colonizador e o colonizado como uma estrutura de capitalismo global apoiada em uma relação centro-periferia que não poderia ser retificada, a não ser por meio da completa derrubada do próprio capitalismo.

Esses poucos detalhes são oferecidos aqui para indicar as texturas e disposições do mundo social no qual a formação intelectual e política de Amin foi fundamentada. Em sua vida pessoal, ele possivelmente estava mais ligado à família de sua mãe do que a de seu pai, e pensou a Revolução Francesa como um evento singular e profícuo na história do mundo moderno. No entanto, sua identificação com o Egito e com a África era forte. Depois de entregar sua tese, ele partiu para o Egito no momento em que Nasser estava no ápice de sua popularidade após a nacionalização do Canal de Suez, em julho1956; o líder guiaria o Egito com segurança durante a invasão tripartite mais tarde naquele ano (realizada conjuntamente pelo Reino Unido, Israel e França)14.

Amin assumiu um cargo na Administração de Desenvolvimento Econômico, no governo Nasser, o qual ele deixa três anos depois, em 1960, em parte devido às frustrações que ele encontrou no trabalho e em parte por causa da perseguição acelerada de Nasser aos comunistas. Em seguida, mudou-se para o recém independente Mali, onde trabalhou no Ministério do Planejamento nos próximos três anos. Depois de receber a nomeação de professor de Economia, na França, ele escolheu lecionar nas universidades de Poitiers, Vincennes e Dakar. De 1970 em diante ele trabalhou como diretor do Instituto Africano de Planejamento Econômico, da ONU, no Senegal. Mais tarde, ele ocuparia uma série de outros cargos, incluindo o de diretor no escritório africano do Fórum do Terceiro Mundo e o de presidente do Fórum Mundial de Alternativas, enquanto Dakar permaneceu uma base importante para o seu trabalho mesmo enquanto viajava pelo mundo e mantinha uma residência em Paris.

Entre a apresentação de sua tese em 1957 e sua revisão para publicação em forma de livro nos dois volumes de Acumulação em escala mundial, em 1970, ele publicou sete livros, todos eles sobre vários países e regiões da África: Mali, Guiné, Gana, Costa do Marfim e Senegal, dois sobre o Magrebe e um – Luta de classes na África (1969) – com pontos de referência em todo o continente.15 Tudo isso se soma a sua participação em diversos movimentos políticos em vários países africanos. Não admira que, na África, Amin tenha sido visto sempre muito mais como um intelectual africano do que árabe.

 

II

Os grandes impérios coloniais do passado foram desmantelados durante os trinta anos após a Segunda Guerra Mundial. Esse processo atingiu seu grande desfecho com a liberação do Vietnã, em 1975, e o término de 470 anos de domínio português sobre suas colônias africanas nesse mesmo ano. Isso, infelizmente, foi apenas um dos aspectos da constituição histórica desse período, já que esses mesmos anos testemunharam a criação de um império muito mais poderoso e sem precedentes na História e de proporções mundiais. Escrevi em outro lugar que as duas grandes guerras foram travadas para determinar se a Alemanha ou os Estados Unidos herdariam a Terra e se e quando os velhos impérios coloniais deveriam expirar. Os Estados Unidos conquistaram rapidamente aquilo que os nazistas só tinham sonhado: dominação mundial nas esferas econômica, militar, política e mesmo cultural.

Apenas as nações socialistas ficaram de fora dessa dominação por algum tempo, mas em estado de cerco permanente, até que esses sistemas estatais se desintegraram no final daquilo que Eric Hobsbawm chamou de Breve Século XX (1914-1991). O liberalismo, assim, teve êxito onde o fascismo falhou; nos anos 1980, quando o termo “neoliberalismo” ainda não havia se tornado moeda comum, alguns estudiosos estavam descrevendo a variante estadunidense do próprio sistema liberal como um “fascismo amigável”.16

O projeto americano de um império global que se inicia imediatamente após a Segunda Guerra Mundial teve quatro grandes componentes. Primeiro, considerou-se extremamente importante que os EUA tomassem o comando econômico e militar dos antigos centros capitalistas do mundo na Europa Ocidental e no Japão, dando origem a: Plano Marshall (1947), Otan (1949) e Tratado de San Francisco (1951). Isso também significava fortemente que todas as forças políticas dominantes da Europa e do Japão – dos socialdemocratas aos fascistas – tornam-se parte de uma cruzada anticomunista mundial liderada pelos EUA17. Segundo, houve um esforço combinado para colocar em prática um arranjo do que no jargão de hoje pode ser chamado de “governança global”. Nesse sentido, foram centrais instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para gestão econômica e financeira e das Nações Unidas para a gestão política. Literatura sobre o Banco Mundial, o FMI etc. e sobre o poder de controle dos EUA em tais instituições é volumosa.18 A arquitetura institucional bicameral das Nações Unidas foi significativa. Todos os Estados-nação, pequenos ou grandes, que eram considerados soberanos em seus territórios tornaram-se membros, o que, no entanto, restringiu bastante o poder de decisão. O espaço real de tomada de decisões era o Conselho de Segurança em que apenas os EUA e seus aliados tinham associação permanente, além da solitária União Soviética; Taiwan ocupou o assento da China até 1971. Em terceiro lugar, todo o Tricontinente estaria preso a um sistema de sobreposição de alianças lideradas pelos Estados Unidos, exemplificado pela fundação da Organização dos Estados Americanos (OEA) em abril de 1948, a Organização do Tratado do Sudeste Asiático, em setembro de 1954, e a Organização do Tratado do Oriente Médio (mais tarde renomeado Organização do Tratado Central) em 1955. Quando um grande número de países se recusou a participar de tais organizações, foram considerados “imorais”.19 Finalmente, uma guerra permanente em todo o mundo (quente e fria) deveria ser travada contra o comunismo, e também contra o nacionalismo econômico do Terceiro Mundo. Qualquer governo em qualquer parte do Tricontinente que tentou buscar o que Amin chamaria mais tarde de “projeto soberano” seria derrubado por quaisquer meios necessários, de Lumumba e Nkrumah, na África, a Goulart e Allende, na América Latina.

O trabalho de Samir Amin sobre o imperialismo pode ser dividido em duas fases. Há uma curta fase inicial, 1957-1970, quando ele se preocupa com a teoria geral da acumulação capitalista através do longo período colonial e também do emergente neocolonial, e com o efeito desses processos nos países africanos isoladamente. Esse tipo de trabalho teórico continuou nos anos subsequentes, culminando no curto livro de 2010 sobre a lei do valor mundial, citado anteriormente.20 Depois do início dos anos 1970, porém, ele começa a escrever muito mais extensivamente sobre a história política do imperialismo, comunismo e movimentos de libertação nacional de sua época, e sobre as mudanças estruturais que o sistema capitalista contemporâneo sofreu em diversos momentos a partir do que ele veio a conceituar como uma crise interminável de longo prazo do capitalismo, que começou por volta de 1971 e, desde então, tem levado o sistema, mais recentemente, à beira de uma “implosão”. Seguiu-se, assim, um fluxo robusto de livros e artigos, alguns dos quais abordavam o mesmo tema, com a diferença de que o último sempre deixaria de lado alguns dos aparatos conceituais anteriores, e posições analíticas eram substituídas por outros conceitos ou insights que haviam sido repensados, refinados, inovados, ou porque ele havia mudado de ideia ou, mais frequentemente, porque o objeto de estudo tinha se transformado de alguma maneira substancial. Ele também buscou outras – relacionadas, mas um tanto distintas – trajetórias de pesquisa e conceituação, e dois de seus livros podem ser mencionados aqui.

Em Class and Nation [Classe e nação],21 Amin apresentou, dentro da ampla matriz metodológica marxista, proposições originais relacionadas tanto à transição do feudalismo para o capitalismo quanto à formação das nações. Ao contrário do consenso geral, Amin propôs que o mundo pré-capitalista no território da Eurásia foi formado por uma variedade de modos tributários de produção no qual o feudalismo, com suas soberanias fragmentadas, era um, e existiu nas periferias de todo o sistema, na Europa Ocidental e extremidades do Japão, enquanto as formações centrais como as da China e da Índia eram muito mais prósperas e comparativamente mais avançadas em várias tecnologias, com sistemas complexos de comercialização, centralização do excedente e estabilização das soberanias. Ele rejeitou a concepção comum entre os marxistas de que a nação surgiu apenas após a ascensão e consolidação do capitalismo. E rejeitou ainda mais vigorosamente a concepção bastante metafísica, muito difundida pelos adversários europeus do Iluminismo e da Revolução Francesa, que cada nação é uma coletividade primordial enraizada em histórias únicas de origem étnica, formação linguística e características religiosas e culturais.22 Para Amin, a centralização do excedente e o domínio estável e soberano sobre um território extenso, que levou necessariamente às consolidações linguísticas e culturais, é que foram as precondições para o surgimento de entidades nacionais que, segundo ele, surgiram da variedade de sistemas tributários pré-modernos – por exemplo, China, Índia, Pérsia, mundo árabe – bem antes das consolidações nacionais da era capitalista.23

Quase uma década depois da publicação de Class and Nation [Classe e nação], Amin retornou, em Eurocentrismo24, a essa mesma concepção da multiplicidade dos modos de produção tributários no mundo pré-capitalista, em que posições centrais e avançadas eram mantidas por formações fora da Europa, o que traz uma importante pergunta: o que explica o surgimento e a difusão mundialmente muito eficaz da ideia de uma intrínseca superioridade europeia que supostamente teria duas origens: o surgimento da Razão nas culturas clássicas helênicas e romanas e o surgimento de Roma como a fonte de uma civilização cristã transeuropeia? Em um argumento que converge com o de Martin Bernal, Amin propôs que ao longo da história das civilizações pré-capitalistas, a Europa e a Ásia estavam ambas divididas e ligadas por uma unidade cultural que abrangia regiões que fazem fronteira com o Mediterrâneo por todos lados, o que inclui os classicismos helênico e egípcio, bem como os lares das religiões abrâamicas (mesmo o Islã, que nasceu na península da Arábia, só se firma após chegar ao Egito, ao Oriente e à Turquia de um lado, e à Pérsia, do outro).25 Nesse mundo, não poderia haver uma ideologia da superioridade intrínseca da Europa, nem a ideia do mundo helênico como parte da Europa, cuja unidade e identidade, com a Grécia e Roma assimiladas, foram fabricadas em grande parte durante o Renascimento. Essa ideologia de um sistema europeu intrinsicamente superior – intelectual, religiosa, cultural, tecnológica e até racialmente – surgiu apenas quando o sistema capitalista que surgia na periferia mais ocidental do sistema mundial daquele tempo adquiriu uma tecnologia que foi capaz de contornar as zonas centrais do Mediterrâneo ao embarcar em um projeto de conquista mundial através dos oceanos e continentes. Em suma, como Amin coloca na introdução de seu livro, o eurocentrismo “constitui uma dimensão da cultura e ideologia do modo capitalista de produção”. Afirmando uma certa correspondência entre o ideológico e o material, esse conciso e estreitamente focado texto localiza o que ele chama de “a construção da cultura eurocêntrica” diretamente em histórias de comércio, colônia e capital, em contraste, por exemplo, com o amplo e elegantemente elaborado Orientalismo, de Edward Said, uma construção crítica literária e culturalista de uma história na qual o que ele descreve como “inferiorização” do Oriente parece ter sido algo constitutivo e imanente na própria elaboração de uma consciência europeia já presente no drama trágico grego.

 

III

Amin trabalhou em uma dúzia de campos de pesquisa; sua obra é em qualquer medida magistral, embora um pouco repetitiva nos anos finais. Temos agora um esboço do esqueleto de seu trabalho, mesmo que não tenhamos registrado alguns dos seus mais importantes trabalhos, como o cuidadoso e provocativo livro sobre a Rússia, original em sua concepção, que ele publicou no final de sua vida.26 O que resta a ser feito agora é focar em algumas temáticas que são o fundamento conceitual indispensável para os ensaios reunidos neste livro.

Para Amin, o momento fundacional da ordem mundial pós-guerra foi a criação do que ele chamou de “imperialismo da tríade” (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão). Conforme o que ele escreveu sobre a hegemonia dos EUA e como muitas vezes exortou a Europa a definir um “projeto soberano para si”, ele claramente sugeriu que as relações entre os três componentes dessa tríade estavam desiguais. Em relação com o resto do mundo, porém, o que importava não era a desigualdade mútua dos protagonistas, mas a sua unidade. Mesmo em relações mútuas, no entanto, nem sempre ficou claro, nas formulações de Amin, quais seriam as consequências futuras ou possíveis dessa desigualdade. Seriam essas relações desiguais o bastante para possivelmente tornarem-se verdadeiramente antagônicas em algum momento futuro, levando a uma “rivalidade inter-imperialista” como formulada por Lenin na véspera da Primeira Guerra Mundial, levando não necessariamente a conflagrações militares, mas a uma guerra econômica tão intratável quanto a possível, levando a um colapso sistêmico mundial? Isso se torna uma questão significativa à luz do fato de que ele rejeitou a ideia bastante popular de uma classe capitalista mundial integrada como uma classe dominante do capitalismo global como um todo.27 Ele argumentou ainda que corporações transnacionais podem obter seu capital de qualquer quantidade de países, mas cada uma delas está sempre enraizada em nações específicas, ou seja, temos transnacionais que em última instância são estadunidenses, alemãs, japonesas etc. Se assim for, não poderia haver uma contingência quando fissuras profundas e tendências concorrentes aparecem dentro da arquitetura do imperialismo coletivo da tríade? As análises de Amin não são totalmente claras sobre isso. Nós estamos vivendo em um momento histórico no qual os chineses, por exemplo, estão começando a trabalhar em direção a uma arquitetura financeira cada vez mais independente da dominação do dólar americano, enquanto os alemães, evidentemente, não estão fazendo nada prático nesse sentido, mas agora estão começando ao menos a falar precisamente da necessidade desse tipo de estrutura institucional financeira independente para a União Europeia; muitos outros países podem responder positivamente a tais projetos. Poderiam tais tendências se tornarem mais fortes e irreversíveis no caso de um declínio secular no poder global hegemônico dos EUA? Fala-se muito em “multipolaridade” como um objetivo desejável para a ordem global num futuro próximo, e Amin, sem dúvida, aprovava essa ideia. Será que essa multipolaridade se tornará não o prenúncio da diminuição da natureza “coletiva” do imperialismo contemporâneo, mas, ao contrário, o surgimento de algum tipo de rivalidade inter-imperialista?

Na falta de espaço adequado para exposição, deixaremos de lado a análise de Amin dos sistemas estatais comunistas no século XX. Ele escreveu ainda mais extensamente sobre os movimentos nacionais de libertação, o caráter comprador das burguesias do Tricontinente e sobre as possíveis vias e estratégias de luta contra o imperialismo e a eventual transição para o comunismo. Muitos desses escritos assumem uma contradição fundamental que afeta o sistema imperialista: enquanto os EUA foram extraordinariamente bem-sucedidos na imposição de uma unidade estrutural entre todos os Estados e populações no centro imperial, nenhum sistema estável de governança ou integração social poderia ser concebido para o Tricontinente (o que ele continua a designar como “periferia”). “Até hoje”, ele escreve, “o imperialismo nunca encontrou os termos do compromisso social e político que poderia permitir a estabilização de um sistema de regras em favor dos países da periferia capitalista. Eu interpreto esse fracasso como prova (…) [de] uma situação objetiva na periferia que é potencialmente revolucionária e sempre explosiva e instável”28.

Quem, então, fará a revolução? E qual será a natureza dessa revolução?29 Em resposta a esses dilemas, Amin ofereceu a muitos um elemento de uma teoria que não remete a uma linha evolutiva, da mesma forma que Marx e Engels sempre se inclinaram a não oferecer um modelo para a execução de uma revolução comunista. No nível conceitual mais amplo, Amin ofereceu duas proposições: que a revolução deveria ser nacional e socialista, ou não seria, pois a burguesia tornou-se completamente vendida e reacionária; e que o início do processo precisaria de uma fase inicial que precede o que no marxismo clássico é entendido como a fase pré-comunista do “socialismo”. A ideia de uma necessária fase pré-socialista parece ter tido três origens. Primeiro, parece inspirar-se na concepção original de Mao Zedong da Nova Democracia que se esperava que fosse introduzida por uma ampla frente de classes, exceto os setores compradores da burguesia. Pode-se argumentar de forma plausível que Mao abandonou essa concepção e acelerou a transição para o socialismo como resultado das lições que aprendeu com a experiência da Guerra da Coreia, na qual o imperialismo estadunidense estava determinado a destruir a República Popular como tal; general MacArthur, no comando das forças dos EUA na Coreia, propôs o uso de bombas atômicas para derrotar a China, a exemplo da rendição japonesa. Mesmo assim, Mao nunca arriscou quebrar a aliança operário-camponesa como tinha sido efetivamente quebrada durante a campanha de coletivização na União Soviética. Entretanto, mais problemático para a invocação de Amin desse modelo, Mao sempre pensou nos compradores como uma fração que poderia ser isolada, enquanto a maior parte da classe, a burguesia nacional, faria parte de uma aliança poli classista30. A ideia de uma fase pré-socialista parece ter sido premissa, além disso, na percepção de que as forças de produção na periferia estavam muito subdesenvolvidas para serem proveitosamente socializadas como um prelúdio para a construção da sociedade comunista avançada. Esse atraso das forças produtivas disponíveis era afinal um elemento significativo nas distorções que inevitavelmente se seguiram em todas experiências socialistas no decorrer do século XX. Em terceiro lugar, no entanto, o que parece também ter impulsionado essa ideia de uma fase pré-socialista de transição no repertório de Amin é o processo em curso na própria China. A seu ver, a China era o único país no Tricontinente – de fato, no mundo – que definiu para si mesmo um projeto de soberania contra a hegemonia estadunidense, ao qual buscou construir dentro de um formato histórico inteiramente novo. Ele também acreditava que a China não poderia ser vista como um país onde o capitalismo havia sido totalmente restaurado, desde que a terra não fosse legalmente privatizada. Totalmente comprometida com um projeto soberano de oposição à hegemonia norte-americana, ainda indecisa entre capitalismo e socialismo em seu modo de produção, avançando rapidamente no desenvolvimento das forças produtivas, a China, ele pensou, ainda tinha a chance de retornar do precipício para tomar uma direção socialista renovada. Isto poderia, assim, servir de modelo para outros países nas periferias. Em sua versão mais otimista, Amin viu possibilidades de tal projeto soberano emergir também em algumas das outras maiores economias da periferia, ou seja, Rússia, Brasil e, surpreendentemente, até mesmo a Índia. Conceitualmente, essa possibilidade parecia ser imanente ao próprio processo de desenvolvimento das forças produtivas; quanto mais poderosa uma economia periférica fosse, mais iria querer se ver livre de hegemonias impostas externamente. Esse otimismo foi, é claro, entrou em contradição com outras convicções que eram mais centrais no pensamento de Amin. Ele estava convencido de que as burguesias da periferia haviam sido tão completamente compradoras que não tinham mais lugar no bloco de forças que poderiam enfrentar o imperialismo. Se essa afirmação é correta, a burguesia não permaneceria assim independentemente de quão poderosa uma economia periférica se tornasse? O surgimento de um projeto soberano não exigiria uma transformação prévia do poder do Estado, longe da dominação compradora-imperialista? Sem essa mudança revolucionária, parece improvável que, digamos, a Índia siga os passos da China e busque um projeto soberano que se oponha ao imperialismo estadunidense. Além disso, outros Estados não podem realmente seguir o exemplo chinês precisamente porque o Estado chinês contemporâneo não é um Estado burguês normal, mas um Estado formado por um compromisso histórico entre a sua formação maoísta original e seu presente ultra dengista. Quaisquer que sejam as potencialidades do “projeto soberano” chinês, o destino da recente “maré rosa” na América Latina deve servir para nos lembrar dos riscos de qualquer projeto genuinamente orientado para o socialismo enfrenta ao deixar a burguesia compradora, seus partidos políticos e impérios midiáticos intactos.

Mas há então a questão ainda mais exigente para os revolucionários: quem faz a revolução nesta era de “monopólios capitalistas generalizados” (termo de Amin), momento em que a favela é a forma de habitação urbana em maior expansão e uma série de tecnologias, como a automação cibernética busca, na outra ponta, minimizar a presença de trabalho humano direto na produção capitalista de grande escala.31 O pensamento de Amin nesse ponto possui duas linhas diferentes que tendem a convergir apenas em pontos nodais específicos. Por um lado, há um compromisso contínuo de pensar em novas estratégias para nosso tempo que em essência observe algum grau de fidelidade ao esquema geral leninista do partido proletário, organizações de massa dos trabalhadores, aliança operário-camponesa, a frente ampla e única das massas populares. Assim, por exemplo, ao contrário de Hobsbawm que postulou “a morte do campesinato” como um fato consumado,32 Amin insistiu que os camponeses compreendiam cerca de metade da população mundial e seria a base social indispensável para a revolução em vários países da Ásia e da África – e até mesmo em localidades da América Latina. De acordo com essa linha de pensamento, e, em parte, reagindo ao colapso de entusiasmos como o Fórum Social Mundial, ele insistiu nos últimos anos de sua vida na viabilidade de uma agência revolucionária na forma do que ele descreveu como uma aliança mundial de proletariados e povos do mundo sob a liderança de seus próprios partidos – presumivelmente – nacionais.

Juntamente com essa lógica específica, havia uma linha diferente de pensamento que começou a ser cristalizado em sua escrita com um ensaio “Os movimentos sociais na periferia: um fim da libertação nacional?”, que está em um livro que ele é coautor com outros pensadores da Teoria da Dependência e do Sistema Mundial.33 O ensaio apareceu em 1990, quando o sistema estatal comunista estava se desfazendo na União Soviética e no sudeste da Europa; a ilusão que as burguesias nacionais dos países recém-independentes na Ásia e na África desafiariam o imperialismo já havia desmoronado, embora Amin permanecesse ligado a alguma variante do projeto Bandung. É possivelmente esse momento conjuntural que explica a mudança de ênfase de Amin da política de classe para “povos da periferia” como o agente coletivo para a revolução em nosso tempo e por sua surpreendente e um tanto acrítica aceitação do termo “movimento social” como a forma mobilizadora imperativa. A ideologia do “movimento social” surgiu precisamente em oposição a do “partido político”, sendo o foco no “social” um afastamento do “político”. A premissa era que movimentos locais, múltiplos e moleculares, de mudança social e cultural (“uma rede de redes”, como a mais alta forma organizacional) eram necessários para substituir uma política, essencialmente a política marxista, que lutou pelo poder do Estado de modo a desfazer a economia política do capitalismo per se. Amin passou muitos anos, junto com muitos outros, buscando construir redes globais de tais movimentos, mas, dada a sua duradoura predileção marxista e até mesmo maoísta, ele também se esforçou para trazer os movimentos sociais mais profundamente para a órbita de formas políticas de esquerda mais familiares. Muito do seu pensamento, bem como sua prática nas últimas décadas de sua vida, foram dedicados a tentar formular um modo adequado de articulação entre classe e massa, movimento social e política de classe, o nacional e o transcontinental como duas visões igualmente importantes para a mobilização política. Ainda assim, em meio a todas aquelas experimentações teóricas e práticas, ele nunca chegou a se desatrelar de suas origens comunistas. No momento em que ocorre a revolta na Praça Tahrir, em 2011, no Egito, ele novamente se soma às fileiras de outra organização comunista.

Antônio Gramsci escreveu que, embora os ingredientes básicos de uma prática socialista revolucionária tenham sido descobertos na Comuna de Paris, foi só depois de um longo interregno de quase metade de um século que uma forma revolucionária plenamente adequada foi vista em todas as minúcias na muito elaborada e complexa prática bolchevique. Parece-me há alguns anos que nós, em nosso tempo, também estamos passando precisamente por esse tipo de interregno e as consequências do fato de que as Revoluções Russa e Chinesa alcançaram seus limites e foram incapazes de avançar ainda mais. Existe uma rica tradição revolucionária, de pensamento e prática, que precisa ser redesenhada, mas ainda somos incapazes de conceber novas práticas revolucionárias que sejam adequados o suficiente para as condições históricas completamente modificadas do presente levarem o espírito de Outubro adiante em direção a seu próximo estágio lógico, assim como a própria Revolução Bolchevique foi uma forma de levar adiante, bem como transcender, lógicas da Revolução Francesa. Samir Amin foi um intelectual-chave desse interregno, resolvendo muitos enigmas, especulando em várias direções e sempre fazendo as perguntas certas e difíceis onde ele não tinha as respostas.

 

IV

Passar algum tempo na companhia de Samir Amin foi como compartilhar um pedaço de sol no meio do cinza e do escuro. Sua estrutura física era pequena e começou a manifestar alguma fragilidade nos últimos anos e, ainda assim, seus movimentos permaneceram ágeis, exalando entusiasmo, como se o corpo fosse para sempre eletrificado por reservatórios de energia política e intelectual. Ele foi infalivelmente caloroso, educado, cortês, extraordinariamente receptivo em sua conexão com os outros, com um comportamento repleto de charme do velho mundo que parecia desmentir a dureza granítica de suas convicções. As qualidades combinadas de sua cultura pessoal eram bastante únicas e ele tinha uma personalidade muito distinta, diferente de qualquer outra pessoa que conheci, mas ele era, devido ao hábito de toda uma vida, basicamente um homem em um grupo que serviu como seu habitat social e seu lar político. Ele era ativo e familiarizado em muitos rincões do mundo, e os lares políticos variavam, mas havia sempre e em todo lugar um grupo com o qual atuar e se comunicar. O pertencimento político e uma vida de solidariedade era uma segunda natureza internalizada, embora de modo algum livre de conflitos, grandes e pequenos, pois a vida tanto de políticos como de intelectuais nunca estão livres de dissensões ou alinhamentos. A mente dele era afiada e combativa, e ele chegou a acreditar, com quase uma confiança infantil, que havia resolvido alguns dos grandes enigmas do nosso tempo. No entanto, em suas relações com os outros, ele era genuinamente humilde.

Samir Amin era, em suma, um dos raros cortadores de diamantes de seu tempo.