Boletim mensal | Movimento do capital na agricultura
Observatório da Questão Agrária
Nº 04/2021
Resumo: Este é o Boletim mensal do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Todos os meses trazemos um resumo dos principais temas da movimentação do agronegócio no Brasil. No último período, as movimentações em torno da questão ambiental estiveram em destaque, em especial em função da Cúpula do Clima convocada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, marcando um movimento geopolítico de retorno dos EUA à agenda do Acordo de Paris. Esse episódio evidenciou que, sob a aparência de uma agenda climática, está em curso um processo de ofensiva sobre os recursos naturais abundantes nos países do Sul Global. Na esteira da agenda ambiental, o agronegócio busca “lavar” sua imagem, que atualmente é desgastada pelo desmonte das políticas de proteção ambiental. Com um discurso de monitoramento e combate ao desmatamento, os porta-vozes do capital no campo não tocam na questão de que o próprio modelo de produção do agronegócio é o causador da destruição ambiental e fonte permanente de novos desequilíbrios. Ao final, apontamos nossas recomendações de leituras.
1. A questão ambiental e a ofensiva do capital sobre os bens da natureza
Entre os dias 22 e 23 de abril deste ano, foi realizada a Cúpula do Clima, evento que reuniu 40 líderes mundiais e marca o retorno dos EUA para o Acordo de Paris. Trata-se de um tratado no âmbito da Organização das Nações Unidas que estabelece metas de redução da emissão de gases causadores do efeito estufa para a redução do aquecimento climático. Além disso, é um marco no reposicionamento geopolítico dos EUA na agenda das transformações produtivas em curso.
O evento foi realizado em um momento que o governo brasileiro tem sofrido pressão internacional em função do agravamento da destruição ambiental, em meio ao desmonte das políticas de fiscalização e denúncias da atuação do Presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bum, e do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de beneficiar madeireiros ilegais na região amazônica.
Em seu discurso, Jair Bolsonaro se “comprometeu” com o fim do desmatamento ilegal até 2030 e com a redução das emissões para atingir a neutralidade climática até 2050, ressaltando que “é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação”.
Entretanto, um dia após os “compromissos” ambientais, o governo Bolsonaro cortou R$ 240 milhões da pasta responsável pelo meio ambiente. As principais áreas impactadas são justamente as relacionadas às mudanças climáticas, controle de incêndios florestais e projetos de conservação.
O que Bolsonaro chama de “justa remuneração pelos serviços ambientais” implica, na realidade, na apropriação pelo capital financeiro da terra e seus recursos. Como explica Larissa Packer, o mercado de compensação e da compra dos direitos de poluir possibilita que o capital financeiro busque “um lastro mais seguro, com renda de médio e longo prazo mais atraentes do que os juros zero ou negativo exercidos no norte global, e ainda com capacidade de extrair liquidez a curto prazo com os negócios com as commodities agrícolas e ambientais”.
No entanto, para além do discurso de Bolsonaro “para americano ver”, o projeto em curso implica no desmonte das políticas ambientais que possibilitaram a redução dos índices de desmatamento na primeira década do século XXI. Os índices registrados no país em anos recentes indicam uma aceleração do desastre. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), abril deste ano foi o pior mês em termos de desmatamento dos últimos seis anos, uma alta de 42,5% em relação ao mesmo mês em 2020.
Para Isabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente no governo Dilma Rousseff, “há práticas concretas de fragilização progressiva das instituições ambientais e dos instrumentos de políticas públicas para enfrentar o crime ambiental”. Assim, diz ela, “não adianta achar que o mundo vai acreditar em declarações que se revelam apenas intenções políticas sem ações concretas nesta direção”.
Segundo o climatologista Carlos Nobre, o caminho para frear o desmatamento seria a retomada das medidas, em vigor de 2004 à 2019, de destruição dos equipamentos apreendidos em operações contra o desmatamento, queimadas e mineração, e a mudança no “discurso político e retirar de pauta o projeto de lei de regularização fundiária, que na verdade passa uma mensagem clara aos grileiros e desmatadores de seguir em frente”.
Neste ponto da discussão, vale destacar que o discurso de setores considerados “tech e pop” do agronegócio pelos grandes meios de comunicação apenas aparenta as mesmas preocupações em relação a degradação ambiental, evidentemente pelo viés da perda de mercados internacionais. No entanto, nos cabe questionar a relação da expansão do agronegócio dito “moderno” com as reais causas da degradação ambiental.
Na definição de Carlos Walter Porto-Gonçalves, “eis que nos vemos diante da mesma aporia do pós-guerra com sua Revolução Verde, agora com a Cúpula do Clima onde a sustentabilidade passa a reinar absoluta e, mais uma vez, promete o que não pode realizar. Tudo parece indicar que os mesmos poderes que nos levaram à insustentabilidade teriam se convertido, depois de muitos investimentos, em protagonistas da sustentabilidade. Já teriam dominado a chave tecnológica da transição energética, agora não mais com os motores a explosão à base de fósseis, mas sim com novas fontes de energia”.
Assim, as novas fontes energéticas alardeadas na Cúpula do Clima, e que depois foram reiteradas com destaque no pacote econômico dos EUA, apesar de se apresentarem como sustentáveis, escondem um fator essencial para a compreensão da questão ambiental em sua atualidade: o avanço da suposta “sustentabilidade” se dá em bases de desterritorialização e expropriação dos povos do campo e seus modos de vida. Prova disso é o alardeado carro elétrico apresentado como uma solução, mas extremamente consumidor de minérios para viabilizar a transição do seu parque tecnológico. “Estudos atuais assinalam que os automóveis elétricos implicam um maior consumo de minerais na medida que para mudar para carro eléctrico o atual parque automotor mundial implicaria um aumento dos volumes de extração do lítio em 2.511%; do cobalto em 1.928%; do grafite em 264%; do níquel em 118%; das terras raras em 100%; do manganês em 135%; e do cobre em 35%”. Nesta perspectiva, a suposta transição sustentável implicará no reforço da ofensiva imperialista sobre bens naturais, em especial na América Latina.
Esta ofensiva do capital financeiro sobre os bens da natureza e fontes de energia implica também na privatização e “commodificação” dos ventos, cuja participação em duas décadas passou de 0,03% para 6,9% da produção de energia elétrica no país. Como apontam Fernando Maia, Leonardo Arrais e Marcela Batista, a dinâmica dos ventos na região nordeste parece indicar que esta é uma localidade ideal para a implementação de parques eólicos, transformando o Nordeste na “bola da vez” da expansão do capital neste setor. Ainda segundo os autores citados, a não implementação justa e equilibrada destes parques eólicos forçou o “rebaixamento de impostos de importação e a concessão de outras vantagens para as corporações multinacionais de energia e também a aprovação de arranjos jurídico-institucionais, a exemplo do Novo Código Florestal e da Nova Lei de Regularização Fundiária. Tudo isto tem como consequência direta o desestímulo ao desenvolvimento tecnológico e industrial do país, a colocação de extensas áreas no mercado de terras e o aumento da insegurança alimentar de comunidades e territórios inteiros, entre outros. O prejuízo às comunidades e ao meio ambiente são evidentes”.
Por isso é falsa a tese de que existe um agro tech versus um agro selvagem e atrasado. Ambos são dois lados da mesmíssima moeda e os efeitos dessa unidade são ainda mais sentidos nos países dependentes, como o Brasil.
2. A suposta sustentabilidade do agronegócio
É notório nos meios de comunicação o discurso de que o agronegócio brasileiro seria sustentável. Diversas lideranças políticas e empresariais do setor insistem que o “campo deva ser e parecer sustentável”.
No mais das vezes, a defesa da sustentabilidade do agronegócio caminha no sentido de que as novas tecnologias de rastreio das commodities – controladas direta ou indiretamente pelas grandes transnacionais como Bayer/Monsanto, Syngenta/ChemChina, Basf, Corteva e FMC, como vimos nos últimos boletins deste observatório – possibilitaria a identificação das cadeias de fornecedores destas empresas, supostamente evitando a compra de grãos ou gado oriundos de áreas de desmatamento.
Como pudemos observar no primeiro ponto deste boletim, a ampliação do desmatamento tem se intensificado por meio de um projeto que ganhou maior força com o golpe contra a presidenta Dilma em 2016. As pautas da bancada ruralista ganhou ainda maior impulso com a composição política atual do governo Bolsonaro.
No entanto, seria demasiado estreito criticarmos a suposta sustentabilidade do agronegócio apenas pelos crescentes índices de desmatamento registrados. O modelo de produção sob o controle do capital, em especial no contexto de crise, implica abordar outros aspectos. Neste ponto, destacamos a dependência deste modelo em relação aos agrotóxicos, insumos destrutivos ao meio ambiente e à saúde humana.
É um fato que houve aumento do uso de agrotóxicos na última década, em especial o herbicida cancerígeno glifosato. Este crescimento na utilização destes insumos possui relação com o aumento do cultivo de transgênicos e os pacotes tecnológicos a eles associados, em especial nas culturas da soja, milho e algodão.
Neste aspecto, o Brasil vem ampliando a autorização para utilização de diversos agrotóxicos, inclusive princípios ativos considerados tóxicos e extremamente tóxicos. Para se ter uma ideia, “só em 2018, foram 449 agrotóxicos aprovados no Brasil, em 2019 esse número subiu para 474 e, em 2020, 493”, aponta artigo de Maria Vitória de Moura para a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Segundo a pesquisadora Larissa Bombardi, em entrevista para a TVT, mais de 30% dos agrotóxicos comercializados no mundo tem sua sede na União Europeia, inclusive com exportações para o Brasil de substâncias que são proibidas em seu próprio território. De acordo com os Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz (edição 37 nº.4 do mês de abril), cerca de 40% dos ingredientes ativos utilizados em agrotóxicos no Brasil são proibidos na Europa, e aproximadamente 80% dos agrotóxicos utilizados aqui são proibidos em ao menos 3 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE). Ou seja, “o uso de agrotóxicos proibidos na Comunidade Europeia cresce em nossa região, onde registra-se que, atualmente, pelo menos um terço dos produtos mais vendidos corresponde a praguicidas altamente perigosos, vetados em seus países de origem”, afirma o informe da Fian Brasil.
Nente contexto, em que mais de 70% do comércio mundial de agrotóxicos está concentrado em apenas seis empresas transnacionais, conforme documento do ETC Group traduzido e publicado pelo Instituto Tricontinental, controladas por capitais de países como os EUA, Alemanha, China e Suíça, são reproduzidos aspectos da dependência, em especial o deslocamento de suas contradições para os países da periferia mundial.
Portanto, nesta relação de dependência dos agrotóxicos das empresas transnacionais “uma parcela da renda que seria do agricultor fica subordinada a essas cadeias. O financiamento bancário também subordina. São três as formas de subordinação da renda da terra ao capital: comercial, financeira e industrial”, segundo Bombardi.
3. Recomendações de leituras
- Depois de alguns meses fora do ar para reformulação da página, a Biblioteca Digital da Questão Agrária está de volta. Nela se encontra grande parte do que vem sendo publicado no Brasil sobre o tema. Estão disponíveis materiais que tratam de assuntos relacionados à luta pela terra, Reforma Agrária, Agroecologia, Educação do Campo e Soberania Alimentar.
- Organizado por assessores, dirigentes e senadores da bancada do PT no Senado, Greenpeace, MST e Terra de Direitos, o documento Principais Ameaças de Fragilização da Legislação Ambiental e Fundiária em Andamento no Congresso Nacional 2021 analisa as iniciativas em curso no Congresso Nacional em relação às mudanças no licenciamento ambiental, grilagem de terras, exploração e demarcação de terras indígenas e liberação de agrotóxicos.
- No Agro é Fogo, Joice Bonfim e Larissa Packer escrevem o artigo “Presidência e parlamento a serviço dos grileiros: legislar para grilar”, em que analisam historicamente as ofensivas de apropriação de territórios no Brasil, com destaque para o período recente em que há uma acelerada corrida por terras no país.
- Publicado pela Agência Pública, o relatório “O agro pode mais: caminhos para o desenvolvimento sustentável” aponta que os municípios considerados agropecuários – ou seja, que possuem mais de 50% da força de trabalho empregado no setor e que este seja o mais importante para o município em termos de valor adicionado – registram piores indicadores em saúde, educação, renda e, por conseguinte, piores índices de desenvolvimento humano. Como resolução destes problemas, o relatório aponta para a necessidade de avançar nas políticas públicas para estes municípios e relata algumas experiências de parcerias com instituições públicas, como a Embrapa, e também com empresas do agronegócio. O relatório não avança para temas estruturais, como a concentração fundiária e o controle do capital financeiro nas atividades agropecuárias.
- A Argentina se tornou o primeiro país a aprovar a produção comercial de trigo transgênico no mundo. A variedade HB4 possui a característica de ser resistente a seca e ao herbicida Glufosinato de Amônio. O informe “El pan en manos de las corporaciones” para a “Acción por la biodiversidad” contribui para entender o contexto em que foi realizada a aprovação, em outubro de 2020, bem como nos apresenta os argumentos para o necessário rechaço e luta contra o trigo transgênico.
- O epidemiologista e autor do livro “Agronegócio e Pandemia: doenças infecciosas, capitalismo e ciência”, Rob Wallace, concedeu entrevista para a Agência Pública e apresenta como o modelo de produção do agronegócio possibilita o surgimento de novas doenças infecciosas. Wallace também destaca como governos “neoliberais de direita” adotaram, no contexto da atual pandemia, uma abordagem malthusiana ao apostar na contaminação em massa da população para alcançar a imunidade de rebanho. Entretanto, no caso brasileiro , “a filosofia política genocida já ocorria muito antes do surgimento da Covid-19, portanto, de certa forma, não nos surpreendemos com ela. Mesmo assim é horrível, porque do que vale um governo que não consegue proteger sua população?”. Veja a entrevista Agronegócio “é a junção perfeita de circunstâncias” para surgimento de novas epidemias.