Queridos amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Em novembro de 2019, o Exército boliviano – com uma ajuda vinda das sombras – pediu ao presidente Evo Morales Ayma para renunciar. Morales acabaria indo para o México e depois pediria asilo na Argentina. Jeanette Áñez, uma parlamentar de extrema direita que não estava na linha de sucessão, tomou o poder; militares, grupos fascistas da sociedade civil e setores da igreja evangélica a apoiaram. Áñez disse que iria realizar eleições em breve, e que não participaria delas.
Áñez marcou a data da eleição para 3 de maio. Apesar de sua promessa, ela disputará a presidência. As condições para a eleição são tão complicadas que as Nações Unidas manifestaram publicamente a preocupação com a “polarização exacerbada” no país. Há ampla evidência de intimidação e violência sendo usadas pelo governo interino e seus aliados de extrema-direita contra os membros do Movimento ao Socialismo (MAS) – partido de Morales – e seus apoiadores. Embora as primeiras pesquisas indiquem que o MAS está à frente, com seus candidatos Luis Arce Catacora (Presidente) e David Choquehuanca Céspedes (Vice-Presidente), há indícios de que truques sujos estão em andamento para criar medo na sociedade e privar a população boliviana de seus direitos.
Áñez tentou sufocar a sociedade após o golpe de novembro, mas a pressão dos militantes do MAS e de sua base – assim como das Nações Unidas, da União Europeia e da Igreja Católica – forçou Áñez a enviar as forças bolivianas para o quartel e retirar o decreto que concedeu imunidade militar. Isso não impediu Áñez e sua base de extrema direita de usar o Estado para oprimir o MAS – incluindo prender mais de 100 funcionários do MAS e ameaçar 592 com acusações que incluem sedição e terrorismo (Morales já enfrenta essas acusações). Arturo Murillo, ministro do Interior de Áñez, pediu a privação de direitos do Chapare, uma área que apoia quase completamente o MAS.
Dia 9 de janeiro, o governo dos EUA enviou uma equipe da USAID para oferecer “suporte técnico” para a eleição; Morales expulsou a USAID em 2013, alegando que estava trabalhando para minar seu governo. “Suporte técnico” é outra maneira de dizer interferência nas eleições.
Para chefiar o Supremo Tribunal Eleitoral da Bolívia (TSE), Áñez trouxe de volta Salvador Romero, que ficou no comando deste órgão entre os anos de 2003 a 2008. Depois que Morales venceu sua primeira eleição, informou a Romero que seu mandato havia chegado ao fim. Romero correu para a Embaixada dos EUA em La Paz para reclamar com o Embaixador estadunidense, Phillip Goldberg, que o então presidente o havia expulsado da Bolívia (Goldberg é agora o Embaixador dos EUA na Colômbia). Os Estados Unidos cuidaram de Romero; foi nomeado para chefiar o Instituto Nacional Democrático de Honduras, uma agência quase independente da classe dominante dos EUA que trabalha para a “promoção da democracia” – ou seja, para instalar partidos pró-EUA e pró-capitalistas em lugares como Bolívia e Honduras. Na primeira eleição após o golpe de 2009 em Honduras, Romero forneceu um verniz de legitimidade para a violência que levou à eleição o candidato de extrema direita, Juan Orlando Hernández, em 2013.
Alguns dias antes das eleições de 2013, em Honduras, dois líderes do Centro Nacional de Trabalhadores na Fazenda, María Amparo Pineda Duarte e Julio Ramon Maradiaga, estavam voltando para casa após um treinamento eleitoral; eles eram partidários do partido Libre, de esquerda. Foram assassinados e decapitados. Florencia López, parente de María, disse: “São pessoas que são esquecidas” [son personas que son olvidadas]. Mas nós os recordamos. Eles são uma lembrança da maneira pela qual a “proteção à democracia” dirigida pelos EUA funciona nas eleições de lugares como Honduras e Bolívia.
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou um novo Alerta Vermelho sobre a Bolívia e as eleições de 3 de maio. Você pode baixá-lo em PDF aqui.
O que está ocorrendo na Bolívia em relação às eleições de 3 de maio?
Dia 10 de novembro de 2019 ocorreu um golpe de Estado na Bolívia, quando o chefe das Forças Armadas exigiu a renúncia do presidente em exercício Evo Morales, em um contexto de desestabilização social e motim policial desencadeado após um processo eleitoral, cujo resultado não foi reconhecido pela oposição a partir de um suspeitoso posicionamento da Organização dos Estados Americanos (OEA). Dois dias depois, assumiu o governo a senadora Jeanine Áñez, designada por parlamentares opositores, mas sem o quórum necessário da Assembleia Legislativa Plurinacional, onde a bancada majoritária correspondia ao MAS, o partido ao qual pertence Morales.
O novo governo se apresentou como provisório e com a missão de convocar novas eleições. Entretanto, desde o início, levou adiante uma política repressiva responsável por mais de 36 mortes, perseguição e amedrontamento de dirigentes e militantes do MAS e de organizações populares, e também mudanças políticas e econômicas inspiradas na agenda neoliberal e na orientação estadunidense para a região. A isso se soma seu componente racista, patriarcal e fundamentalista que se expressou também em atos de violência simbólica reacionária, como a depredação da bandeira wiphala, que representa a diversidade de povos e nações indígenas da Bolívia.
Finalmente, no último mês de janeiro se fixou a data de 3 de maio de 2020 para a realização das eleições presidenciais e legislativas, e se inscreveram as alianças partidárias. Começou assim a campanha eleitoral em condições de uma profunda restrição das liberdades democráticas.
No final de janeiro, o governo de fato militarizou as principais cidades do país diante de possíveis manifestações. A perseguição a membros do governo do MAS continuou e algumas pessoas ainda se encontram isolados em embaixadas. Na mesma linha, nas últimas semanas, mais de 50 rádios foram fechadas acusadas de sublevação e de incitar a violência por transmitir mensagens críticas ao governo.
Finalmente, a presidenta de fato, Áñez, anunciou que, sem abandonar seu cargo, também concorrerá às eleições presidenciais, contradizendo suas palavras de meses atrás. Isso gerou inclusive a crítica de outros candidatos que apoiaram o golpe de Estado e apontaram que tal conduta confirma o caráter golpista do governo.
Por outro lado, nos primeiros dias de fevereiro, foi detida a representante legal de Evo Morales e tentou prender um representante do MAS, quando estava por fazer os trâmites para inscrição de candidaturas para as eleições de maio. Da mesma forma, Luis Arce Catacora, que disputará as eleições pelo MAS, também está sofrendo um processo de perseguição após seu recente regresso para a Bolívia, sendo inclusive ameaçado de prisão. Também ameaçou restringir ou entorpecer as possibilidades de votação em lugares onde o MAS obtém seus maiores apoios. Esses fatos motivaram uma convocatória urgente à comunidade internacional para evitar a fraude e garantir a participação do MAS e eleições efetivamente democráticas na Bolívia.
Com oito chapas presidenciais apresentadas, o MAS tem como candidatos Luis Arce Catacora, para a presidência, e David Choquehuanca Céspedes, como vice. O primeiro foi ministro de Economia dos governos de Morales e artífice de seu sucesso econômico; o segundo foi chanceler, gestor de sua política internacional soberana e uma referência para os movimentos indígenas e camponeses. As primeiras pesquisas de opinião conhecidas dão uma vantagem importante ao MAS, que está em primeiro lugar.
Por que um golpe de Estado e a intervenção dos EUA ?
Na Bolívia se encontra a maior reserva conhecida de lítio do mundo. Segundo analistas, ela pode chegar nos próximos anos a 20% da produção global. Do lítio se obtém um componente central para a fabricação das baterias que se utilizam em computadores portáteis, relógios, celulares, automóveis elétricos e para armazenar energias renováveis. O maior depósito de lítio na Bolívia está no Salar de Uyuni, no estado de Potosí, onde o governo de Morales planificou sua extração e industrialização sob controle estatal. Justamente, o Comitê Cívico de Potosí foi um dos atores principais na desestabilização que conduziu ao golpe de Estado.
Bolívia conta também com importantes reservas de hidrocarbonetos, particularmente de gás, com o qual supre hoje as economias brasileira e argentina. Uma das primeiras medidas adotadas pelo governo de Evo Morales foi a nacionalização desses recursos e o desenvolvimento de uma forte política estatal no setor. Parte importante dessas reservas se encontram no estado de Santa Cruz, no oriente boliviano, onde se concentra também o agronegócio – particularmente o monocultivo de soja. O governo dessa região e seu Comitê Cívico foram a base da oposição ao governo de Morales e outro ator central da desestabilização que precedeu o golpe de Estado.
Eleito pela primeira vez em 2005, com mais de 50% dos votos, o primeiro governo do presidente Evo Morales (2006-2010) nacionalizou os hidrocarbonetos e outros setores econômicos estratégicos, avançou com a entrega de terras, reformou a Constituição através de uma Assembleia Constituinte que deu as bases do Estado Plurinacional e levou adiante uma política social que, ao longo de seus mandatos, melhorou notavelmente todos os indicadores sociais – como reconhecem as instituições internacionais – reduzindo significativamente a pobreza, o analfabetismo, as carências sanitárias e estendendo as expectativas de vida, entre outros aspectos.
Apesar de ser um país com uma maioria da população indígena, a classe governante da Bolívia tem origem nos grupos considerados “brancos”. Os povos originários sofreram historicamente subjugação, racismo e discriminação política, econômica e social. O governo de Morales representou uma mudança profunda nesse domínio colonial. As ações violentas e os discursos xenófobos sobre os povos indígenas, sua cultura e seus símbolos, que caracterizaram o processo anterior ao golpe de Estado e ao atual governo de fato, mostram como o ódio racial e o fascismo sustentaram e sustentam os ataques ao MAS e ao governo.
O governo dos EUA foi um dos primeiros a reconhecer e cumprimentar a nova presidente de fato Jeanine Áñez; também exerceu pressão sobre o governo mexicano e depois argentino para restringir o asilo que ambos deram ao presidente Evo Morales e a outras autoridades de seu governo. Por outro lado, muitos analistas denunciaram e revelaram evidências da participação do governo dos EUA na preparação e consumação do golpe de Estado, sendo que o governo de Morales pôs fim à política de erradicação forçada e militarizada das plantações de coca promovida pelo DEA, expulsou a USAID e denunciou em fóruns internacionais a política intervencionista americana.
Rita Valdivia, foi uma jovem boliviana que escapou de um pai abusivo e entrou no mundo da luta e da poesia revolucionária e ingressou no Exército de Libertação Nacional da Bolívia (ELN). A poesia lhe deu voz; a luta revolucionária colocou essa voz em movimento. Ernesto ‘Che’ Guevara foi morto em 1967, ano em que Rita Valdivia foi a Cuba para fazer um treinamento. O líder do ELN – Guido Álvaro ‘Inti’ Peredo Leigue (membro do Partido Comunista Boliviano) – encarregou-a de atividades revolucionárias em sua cidade natal, Cochabamba, para onde voltou após seu treinamento em Cuba. Em 1968, Inti escreveu seu texto icônico “Volveremos a las montañas” [Voltaremos às montanhas], uma promessa de continuar a luta contra a oligarquia e seu exército. Na noite de 13 de julho de 1969, Valdivia, também conhecida como Comandante Maya, e seus companheiros foram a uma reunião em um esconderijo; foram traídos e ela foi morta a tiros. Ela tinha 23 anos. Inti foi morto no setembro seguinte.
Em Cantaura (Venezuela), há um centro médico popular com o nome da Comandante Maya, onde ouvi falar dela pela primeira vez (uma feliz coincidência que nosso dossiê deste mês seja sobre as policlínicas populares na Índia). O poema da comandante Maya – “Defensa a la calle” (Defesa nas ruas, tradução livre) – nos ensina que, mesmo nos piores momentos da Bolívia, há pessoas lutando por seus direitos e aspirações, abrindo os punhos para o mundo:
[Cansei-me de segurar outros mundos
em meu punho
o abro rapidamente]
Cordialmente, Vijay.