Ailén Possamay, Domestic disobedience / What they call love is unpaid labour, Concepción, Chile, 2019.

Ailén Possamay, Desobediência doméstica/Isso que chamam de amor é trabalho não pago, Concepción, Chile, 2019

 

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em todo o mundo, as mulheres empregam em média 4 horas e 25 minutos por dia em trabalhos de cuidado não remunerados, enquanto os homens gastam em média 1 hora e 23 minutos por dia no mesmo tipo de serviço. Essa foi a conclusão de um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018. O que é trabalho de cuidado? O estudo da OIT o define como “atividades e relações envolvidas na satisfação das necessidades físicas, psicológicas e emocionais de adultos e crianças, idosos e jovens, debilitados e saudáveis”.

Existem dois principais tipos de trabalho de cuidado, conforme descrito pela OIT. O primeiro se caracteriza por atividades de cuidado direto (às vezes chamadas de tarefas de “alimentação” ou “relacionais”), como “alimentar um bebê, cuidar de um parceiro doente, ajudar um idoso a tomar banho ou a realizar exames de saúde, ou ensinar crianças pequenas”. O segundo é caracterizado por atividades de cuidado indireto, “que não envolvem cuidados pessoais face a face, como limpar, cozinhar, lavar roupa e outras tarefas domésticas (às vezes referidas como “cuidados não relacionais” ou “trabalho doméstico”), que fornecem as pré-condições para o cuidado pessoal. Os trabalhos de cuidado direto e indireto operam em conjunto, e é esse trabalho físico e emocional que mantém a estrutura social.

 

 

‘We move the world, we stop it’, an intervention that took place during the 8M March based on a photograph taken of comrades from the Movement of Excluded Workers, La Plata, Argentina. Colectivo Wacha

Nós movemos o mundo, nós o paramos, Intervenção realizada durante a Marcha do 8M a partir de uma fotografia de companheiras trabalhadoras da economia popular (8/03/2018) La Plata, Argentina. Colectivo Wacha.

 

Mulheres e meninas, mostra o estudo da OIT, realizam três quartos do trabalho de cuidado não remunerado necessário para manter as famílias e a sociedade. Se aquelas que realizam trabalho assistencial não remunerado recebessem um salário mínimo em seus respectivos países, esse montante salarial chegaria a 11 trilhões de dólares (equivalente a 15% do Produto Interno Bruto global, o tamanho total da economia digital). A necessidade desse trabalho de cuidado não remunerado – incluindo aquele voltado a crianças e idosos – tem impedido que mulheres, e alguns homens, entrem no mercado de trabalho assalariado. Em 2018, de acordo com a OIT, 606 milhões de mulheres afirmaram que o trabalho de cuidado não pago não permitia que elas pudessem procurar trabalho assalariado fora de casa; 41 milhões de homens afirmaram o mesmo.

Durante a pandemia, 64 milhões de mulheres perderam seus empregos remunerados, ao passo que a maior parte delas se viu tendo que dedicar mais tempo ao trabalho de cuidado não pago do que antes do isolamento social. Em nosso estudo CoronaChoque e patriarcado (nov. 2020) observamos que, durante a pandemia, o “trabalho de cuidado aumentou exponencialmente e o fardo extra continua recaindo sobre as mulheres”. São principalmente elas que supervisionam a educação dos filhos, lutando para manter os lares que sofrem com a diminuição da renda e cuidando dos idosos nos momentos em que estão mais suscetíveis aos perigos da Covid-19. O Unicef relata que 168 milhões de crianças não vão à escola há quase um ano inteiro.

Ao mesmo tempo, muitos dos profissionais de saúde da linha de frente em nossas sociedades, de enfermeiras a faxineiras, são mulheres. São elas as aplaudidas como “trabalhadoras essenciais” ao mesmo tempo que suas condições de trabalho se deterioram e seus salários estão estagnados, colocando-as em risco maior de contrair o vírus. Em junho passado, em um dossiê denominado Saúde é uma escolha política, documentamos como as trabalhadoras de saúde na Argentina, Brasil, Índia e África do Sul estão lutando para melhorar suas condições de trabalho e ganhar o suficiente para cuidar de suas famílias. A lista de reivindicações com dezesseis pontos que encerra o dossiê surgiu das lutas sindicais nesses países; são reivindicações que permanecem tão atuais quanto em junho passado. Esta pandemia revelou e aguçou nossa percepção de como o patriarcado bloqueia o avanço do progresso social.

 

Ailén Possamay, Untitled, González Catán (Buenos Aires Province, Argentina), 2019.

Ailén Possamay, Sem título, González Catán, província de Buenos Aires, 2019.

 

Nossa equipe na Argentina, junto com o coletivo Mapeos Feministas [Mapeamento feminista], desenvolveu um podcast para explorar o impacto desigual da pandemia por meio das lentes feministas. Esse trabalho de documentar a crise e as lutas populares na Argentina levou à publicação de nosso recente dossiê, Desatando a crise; trabalhos de cuidados em tempos de coronavírus (dossiê n. 38, mar. 2021).

A pandemia colocou uma pressão imensa sobre as famílias, e as mulheres foram mais atingidas pelo aumento da carga de trabalho. Tal pressão é resultado de um longo período de cortes de austeridade feitos nas instituições estatais, o que resultou na deterioração dos auxílios sociais (incluindo creches e alimentação escolar). Esse problema de longo prazo é plasmado na frase “crise do cuidado”, cunhada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) da ONU em 2009. Devido ao regime de austeridade, a noção de família foi ampliada à medida que as cuidadoras recebem um pagamento de outras pessoas em sua comunidade. Essas redes familiares ampliadas superam o parentesco, emergindo como uma base essencial para a sobrevivência durante a pandemia.

Luz Bejerano, do Movimento de Transgêneros da Argentina, relata que uma companheira trans abriu uma cozinha ao ar livre para alimentar as pessoas, e também fornece merendas para as crianças. Silvia Campo, do Encontro de Organizações, explica como sua organização está trabalhando para rastrear casos de Covid-19 e divulgar informações às pessoas sobre clínicas e serviços de saúde. María Benitez, da Federação de Organizações de Base, organizou seus vizinhos para irem até seus locatários para lhes dizer – com sucesso – que não podem expulsar famílias durante a pandemia. Contra todas as probabilidades, Luz, Silvia, María e suas organizações mantiveram o tecido social unido. Suas histórias são inspiradoras e instrutivas.

 

 

PowerPaola, Untitled, originally published in Página 12, Las Doce supplement, February 2020.

PowerPaola. Sem Título. Publicado originalmente no diário Página/12, suplemento Las Doce, fevereiro de 2020

 

Elizabeth Gómez Alcorta é a primeira ministra da pasta da Mulher, Gênero e Diversidade, no governo argentino. Em dezembro de 2019, seu ministério criou a Direção Nacional de Cuidados [Dirección Nacional de Cuidados], que tem trabalhado com quatro eixos principais. Primeiro, na realização de um mapa federal de equipamentos e de instituições de formação relacionadas ao trabalho de cuidado. Em segundo lugar, em fevereiro de 2020, a Direção instituiu uma Mesa Interministerial de Políticas de Cuidado para reunir quatorze ministérios cuja agenda se cruza com o trabalho de cuidado. Terceiro, em agosto de 2020, iniciou-se uma campanha, “Cuidar em Igualdade: Necessidade, Direitos e Trabalho”, que realiza “Fóruns de Atenção” com profissionais de saúde e prestadores de cuidados de forma a escutar a perspectiva de mulheres e homens sobre questões-chave. E, por último, em outubro de 2020, a equipe de Gómez Alcorta formou uma comissão de redatora composta por nove especialistas que vão redigir um projeto de lei para um sistema de cuidado integral para o país.

“O lema da campanha – Cuidar em igualdade – parece resumir grande parte de nossa concepção dos cuidados: afirmamos que é uma necessidade (todos em algum momento da nossa vida vamos precisar de cuidados)”, me disse Alcorta. “E então, se são uma necessidade, devem haver direitos ao redor desse trabalho. O cuidado deve ocorrer dentro de parâmetros de qualidade; não pretendemos eliminá-los, muito pelo contrário, queremos que a esse trabalho seja dado o tempo e o reconhecimento necessários”, continuou. Tal sistema deve levar em conta a complexidade e heterogeneidade da realidade argentina. É por isso que “é central o diálogo que se está realizando na Comissão Redatora. (…) Sabemos que a composição atual das famílias é diversa, então, por um lado, trabalhamos com a diversidade de famílias e identidades, tratando de contemplar todas as situações. Por otro lado, nosso país tem uma grande dívida social, altos índices de pobreza, e sabemos que as mulheres são as mais prejudicadas pela crise econômica; por isso sustentamos que uma melhor redistribuição das tarefas de cuidado não só gera maior equidade de gênero, mas também redunda em maior justiça social”.

Sistemas patriarcas e costumes estão “caindo”, afirma Gómez Alcorta, mas “há ainda um longo caminho a percorrer”. A responsabilidade compartilhada no trabalho de cuidado é raramente uma realidade, motivo pelo qual “homens precisam estar mais envolvidos, mas também sabemos que desconstruir hábitos e estereótipos levam tempo”. Apesar disso, Gómez Alcorta afirma: “temos a forte convicção de que estamos avançando em direção a um cenário no qual o cuidado estará melhor distribuído e seja socialmente reconhecido e valorizado como o que é: o trabalho que faz que o mundo funcione”.

 

 

 

Na carta semanal da semana passada, destaquei a campanha para as eleições para a assembleia em Kerala (Índia). Agora que o manifesto da Frente de Esquerda Democrática foi divulgado, há um ponto que merece menção especial: se a esquerda voltar ao poder, instituirá uma pensão para as donas de casa. “Será reconhecido o valor do trabalho doméstico e instituída uma pensão para as donas de casa”, diz o manifesto. As implicações desse plano de pensão são enormes; reconhece que o trabalho doméstico tem valor e abala os alicerces do patriarcado, que se constrói sobre a dependência financeira das mulheres.

Essas lutas na Argentina e em Kerala fazem eco às palavras de Alaíde Foppa (1914-1980), militante e poeta morta na Guatemala em 1980:

Por pradeiras em flor
correu meu pé ligeiro,
deixou sua pegada
na arena úmida,
buscou caminhos perdidos,
pisoteou as duras calçadas
das cidades
e sobe por escadas
que não sabem aonde chegam.

Cordialmente,

Vijay