Liu Bolin (China), Guernica, 2016

Liu Bolin (China), Guernica, 2016

 

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Dedicado a Soni Prashad, 1929-2020, que passou sua vida em busca de um mundo melhor.

O presidente estadunidense Donald Trump e seu “conselho de guerra” – liderado pelo secretário de Estado Mike Pompeo – ampliaram as agressões contra a China. O que começou como uma disputa comercial na década de 1990 se transformou agora em um desafio existencial dos EUA contra a China.

A ameaça contra a China não é irracional, mas se dá por razões perfeitamente racionais, elencadas abaixo em nosso Alerta Vermelho n. 9 (disponível para  download separadamente). O motivo é a emergência da China como um grande poder econômico e tecnológico. O que mais irrita a classe dominante dos EUA é que as várias técnicas de guerra híbrida para enfraquecer ou derrubar o governo simplesmente não estão disponíveis. O único meio à disposição dos Estados Unidos para manter seu poder – assustadoramente – é a força armada.

 

Alerta Vermelho n. 9. A guerra dos EUA contra a China

 

Os Estados Unidos tentam impor uma guerra à China?

Nas últimas décadas, os EUA conduziram uma guerra comercial contra a China. Existem duas questões principais que preocupam os Estados Unidos: primeiro, um desequilíbrio comercial que beneficia o país asiático e, segundo, o crescimento do setor de tecnologia chinês. As técnicas que os EUA têm usado contra a China incluem pressioná-la a reavaliar sua moeda em relação ao dólar e evitar a “pirataria” de propriedade intelectual, com a finalidade de desacelerar seu desenvolvimento tecnológico e diminuir ou mesmo finalizar a Iniciativa do Cinturão e Rota.

Os EUA agora começaram uma guerra contra a economia chinesa. A tentativa de isolar a Huawei e a ZTE de seus fornecedores e mercados terá um impacto capaz de debilitar a capacidade de crescimento da economia chinesa. Os EUA sancionaram cerca de 152 empresas que fabricam chips e outros produtos para Huawei e ZTE. O aumento dessas sanções – por meio da iniciativa Rede Limpa do governo dos EUA – impediria as empresas estadunidenses de usar os serviços de nuvem e de cabos submarinos chineses, e proibiria a exibição de aplicativos chineses nas lojas de apps. O governo dos EUA pressiona outros países para se unirem a essa campanha.

O governo dos EUA aumentou sua pressão militar ao longo da costa oriental chinesa. Isso inclui a revitalização do Quad em 2017 (Austrália, Índia, Japão e os EUA), a criação da “Estratégia Indo-Pacífico dos EUA (seu documento-chave de 2020 se chama “Recuperar a Vantagem”) e o desenvolvimento de uma série de novos armamentos, incluindo ciberarmas. Esse poder militar veio junto com a retórica hostil contra a China, com atenção voltada para Hong Kong, Xinjiang e Taiwan, e a rotulação da pandemia de Covid-19 como um “vírus chinês”. A evidência não é tão importante aqui quanto o uso de ideias racistas e anticomunistas mais antigas para demonizar a China.

 

 

Liu Xiaodong (China), Wedding Party, 1992.

Liu Xiaodong (China), Wedding Party [Festa de casamento], 1992.

Por que os EUA aumentam a pressão contra a China?

Os avanços tecnológicos da China podem resultar em uma vantagem geracional sobre o Ocidente. Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos chineses ocorreram por conta do investimento do país em ensino superior e em sua capacidade de transferir tecnologia de empresas que entraram no país para fabricar mercadorias. Em 2018, acadêmicos chineses publicaram pela primeira vez mais artigos científicos do que seus colegas nos Estados Unidos, e empresas chinesas apresentaram mais pedidos de patentes do que empresas estadunidenses. As empresas chinesas de tecnologia já fazem produtos que parecem estar à frente dos similares americanos, europeus e japoneses. Exemplos disso incluem 5G, BeiDou (uma tecnologia de mapeamento melhor que o GPS), trens de alta velocidade e robôs.

Diante da pressão dos EUA, a China elaborou uma agenda de comércio e desenvolvimento independente. Desde a crise financeira mundial, a China começou a diversificar sua economia da dependência dos mercados dos Estados Unidos e da Europa para construir seu próprio mercado interno e aumentar o envolvimento com o Sul Global. Os projetos imediatos desenvolvidos incluíram a Iniciativa do Cinturão e Rota, a Iniciativa do Colar de Pérolas, o Fórum de Cooperação China-África, a Organização de Cooperação de Xangai e o Fórum China-Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe. O governo chinês também começou a dar mais atenção à Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean). Esses movimentos vêm junto com um notável programa de erradicação da pobreza.

Atualmente, a China é altamente dependente de energia importada – como gás dos países da Asean, Austrália e Qatar. O gasoduto China-Rússia de 6 mil km “Power of Siberia” [Energia da Sibéria] trará 38 bilhões de metros cúbicos de gás natural, um aumento substancial para atender às demandas dos 90 bilhões de metros cúbicos consumidos pela China. Em 2014, a multinacional de energia russa Gazprom e a China National Petroleum Corporation assinaram um acordo de 400 bilhões de dólares por trinta anos.

Cada vez mais, a China tem tentado construir instituições fora da arquitetura de comércio e desenvolvimento controlada pelo Ocidente, incluindo o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (fundado em 2014). Como parte disso, se comprometeu com a desdolarização; propôs manter suas reservas e conduzir o comércio em outras moedas que não o dólar estadunidense. Esse é um desenvolvimento de longo prazo, mas inevitável, e que ameaça o papel geral do complexo Wall Street-Dólar. A cooperação da China com a Rússia está mais avançada nessa área, com cerca de 50% do comércio entre os dois países sendo realizado em rublos e yuans (a Rússia possui cerca de 25% das reservas globais de yuans). Tanto a Rússia quanto a China estão se desfazendo de suas reservas em dólares. Em janeiro de 2020, a Rússia vendeu 101 bilhões, o que correspondente a 50% de suas reservas em dólares, e movimentou 44 bilhões de euros e 44 bilhões de yuans. Esta moeda, no entanto, representa apenas 2% das reservas monetárias globais.

Contra a expansão da Otan para o leste e o surgimento do Quad, China e Rússia criaram um bloco de segurança militar e diplomático na Eurásia. Isso fica evidente nos negócios de armas e exercícios militares, mas também na coordenação diplomática. Por exemplo, os porta-vozes do Ministério das Relações Exteriores da Rússia e da China, Maria Zakharova e Hua Chunying, disseram no final de julho que uniriam esforços no combate à guerra de informação contra a China e a Rússia. Os diplomatas chineses foram mais diretos em suas declarações, sendo apelidados de “diplomatas lobos guerreiros”, uma alusão a um filme popular em que um soldado chinês de uma tropa de elite chamada Wolf Warrior derrota um grupo de terroristas liderados por um ex-integrante da Marinha dos EUA.

Claramente, os EUA descobriram que a liderança chinesa não está disposta a seguir o caminho de Gorbachev – ou seja, deixar o modelo chinês vulnerável à vontade dos Estados Unidos. Não há possibilidade de o Partido Comunista da China se dissolver. A classe média chinesa – possível alimento para uma “revolução colorida” – não tem nenhum apetite para derrubar o governo. Ela está satisfeita com a direção do governo, percebe que houve melhora no padrão de vida e que o Estado foi capaz – ao contrário dos governos ocidentais – de enfrentar a pandemia de Covid-19 (como escrevemos na nossa série sobre CoronaChoque). Um estudo da Universidade de Harvard mostra que o governo liderado pelo Partido Comunista da China aumentou sua aprovação de 2003 a 2016, principalmente por causa dos programas de bem-estar social e da luta contra a corrupção, promovida tanto pelo Partido quanto pelo governo chinês. A aprovação geral é de 93%.

 

 

Zhong Biao (China), Paradise, 2007.

Zhong Biao (China), Paradise [Paraíso], 2007.

Contradições da guerra dos EUA

Desenvolvimentos econômicos chineses – como a capacidade do país de gastar mais do que os EUA em ajuda ao desenvolvimento para superar as ofertas de empresas ocidentais em acordos comerciais – produziram alianças entre a China e os principais setores capitalistas em países que de outra forma seriam aliados dos EUA. Exemplos disso estão entre setores da classe capitalista nas Filipinas e no Sri Lanka, onde o investimento chinês foi bem-vindo.

O Estado chinês intensificou sua intervenção no setor de tecnologia dentro da China, com um fundo público e privado de 14 bilhões de dólares para apoiar o desenvolvimento de tecnologia. A Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC) – a maior empresa de chips da China – fez uma oferta pública inicial (IPO) em Xangai que rendeu 7.5 bilhões de dólares. Como consequência de tais fundos e de seus próprios desenvolvimentos científicos, a China em breve será capaz de ultrapassar as empresas de chips dos Estados Unidos.

A capacidade econômica da China continua a exercer pressão sobre setores do capital em diferentes países. Por exemplo, as mineradoras australianas dependem da compra de minério de ferro por parte da China. Essas empresas pressionam Canberra para que não tome uma posição hostil demais contra a China. Aproximadamente um terço do total das exportações da Austrália vai para a China; estas incluem soja, cevada, carne, frutas, gás e minerais crus. O governo australiano é forçado a reconhecer essas preocupações. A China já protegeu suas apostas, aumentando as compras de soja e carne da Argentina e do Brasil, e provavelmente comprará mais produtos da mineração do Brasil (a Vale tem usado navios enormes para transportar seus produtos para a China).

As forças armadas dos EUA se equilibram entre os conflitos na Venezuela e no Irã, e agora na China. A Marinha estadunidense teve quatro secretários em um ano, parte do caos da administração Trump. Como consequência, a Marinha se queixou da falta de capacidade para lidar com tantos teatros de guerra ao mesmo tempo. A China desenvolveu sofisticados mecanismos de defesa, como técnicas de guerra cibernética capaz de interromper as comunicações dos EUA, começando com seus satélites, além dos mísseis Dongfeng, com capacidade de atingir os navios da marinha dos EUA que estão no Mar do Sul da China .

 

 

 

O poeta chinês do século VIII, Li Bai, escreveu sobre as mazelas da guerra; no que diz respeito à isso, nada mudou ao longo dos séculos.

 

Soldados espalham seu sangue na grama seca
Enquanto generais mapeiam a próxima campanha.

Pessoas sábias sabem ganhar uma guerra
Não é melhor do que perder uma.

 

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Cordialmente,

Vijay.