A expectativa de vida dos palestinos caiu mais de 11 anos nos primeiros três meses do genocídio | Carta semanal 5 (2025)
O genocídio apoiado pelos EUA em Gaza levou a uma grande redução na expectativa de vida da população. Mesmo que o cessar-fogo permita que ajuda entre em Gaza, essa profunda queda levará gerações para ser revertida.
Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
A ideia de um cessar-fogo é tão antiga quanto a ideia da guerra. Em registros antigos, lê-se sobre pausas nos ataques para humanos poderem comer ou dormir. As regras de combate se desenvolveram a partir de um entendimento de que ambos os lados tinham que descansar ou se refrescar. Às vezes, esse entendimento incluía a vida de animais. Durante a Revolta da Páscoa em 1916, por exemplo, os rebeldes irlandeses e as tropas britânicas pararam de atirar em St. Stephen’s Green, em Dublin, para que James Kearney, o guarda do parque, pudesse entrar e alimentar os patos. Foi essa caesura, ou pausa de tiros, que popularizou o termo “cessar-fogo”.
Para os palestinos em Gaza, qualquer cessar-fogo que prometa o fim dos bombardeios e permita a chegada de ajuda humanitária (particularmente comida, água, remédios e cobertores) é um alívio. Desde 19 de janeiro, quando um cessar-fogo temporário entrou em vigor, a ajuda em grande escala conseguiu chegar a moradores de Gaza, confirmou o porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, Jens Laerke. No primeiro dia do cessar-fogo, 630 caminhões entraram em Gaza — muito mais do que os 50 a 100 caminhões por dia que lutavam para entrar durante o bombardeio israelense. Esses caminhões estão “levando comida, abrindo padarias, assistência médica, reabastecendo hospitais, consertando redes de água e abrigos, reunindo familiares” e realizando outros trabalhos essenciais, disse Laerke. Depois de quase 500 dias de violência genocida, essa ajuda é mais do que um alívio. É uma tábua de salvação. Mas esse acordo de cessar-fogo foi primeiramente apresentado em maio de 2024, quando foi aprovado pelo governo israelense e depois aceito pelo Hamas até ser finalmente rejeitado por Netanyahu. As armas poderiam ter sido silenciadas já naquele período.
A Palestina foi profundamente impactada pelo genocídio. Usando estimativas do World Population Prospects 2024 das Nações Unidas, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Sul Global Insights analisou o declínio na expectativa de vida palestina causado pelo bombardeio israelense em Gaza e descobriu que a expectativa de vida dos palestinos ao nascer caiu 11,5 anos entre 2022 e 2023, de respeitáveis 76,7 anos em 2022 para apenas 65,2 anos em 2023. Foram apenas os primeiros três meses do bombardeio israelense apoiado pelos EUA — de outubro a dezembro de 2023 — que provocaram esse terrível declínio na expectativa de vida total. Não temos conhecimento de um declínio tão rápido na expectativa de vida em nenhum outro período da história humana moderna. Uma vida palestina é agora mais de 17 anos mais curta do que uma israelense. Essa lacuna é maior do que a que existia entre negros e brancos na África do Sul do apartheid, que era de 15 anos em 1980.
Onze anos e meio a menos por cada palestino. Isso é quase 60 milhões de anos perdidos para os 5,2 milhões de palestinos restantes que permaneceram no território e sobreviveram ao genocídio. Essa perda não pode ser facilmente recuperada. Levará anos de imenso trabalho para reconstruir a sociedade palestina e atingir algo próximo da expectativa de vida pré-genocídio. Os sistemas de saúde precisarão ser reconstruídos: não apenas hospitais e clínicas, quase todos em ruínas, mas novos médicos e enfermeiros terão que ser formados para substituir aqueles que foram mortos. Os sistemas alimentares precisarão ser recuperados: não apenas padarias, mas campos precisarão ser desintoxicados e barcos de pesca consertados. Moradias precisarão ser reconstruídas para substituir os 92% de casas em Gaza que foram destruídas ou danificadas (o que a ONU chamou de “domicídio”). Escolas precisarão ser reconstruídas. O trauma mental que aflige as crianças precisará ser curado para que sintam que essas estruturas não são sepulturas, mas lugares seguros e de aprendizado.
Os dados são confusos. Dezenas de milhares de palestinos foram mortos na carnificina, incluindo pelo menos 14.500 crianças. De acordo com um relatório produzido pelo Conselho Dinamarquês para Refugiados, a Associação de Desenvolvimento Agrícola e o Centro de Assuntos Femininos, entre outubro de 2023 e outubro de 2024, “mais de 90% da população de Gaza foi deslocada, com pessoas se deslocando em média seis vezes, e algumas até 19 vezes”. Além disso, o relatório afirma que os palestinos enfrentaram ordens de deslocamento forçado com “aviso inadequado” e lutaram para sobreviver, pois as “zonas seguras” foram “submetidas a bombardeios e carecem de recursos básicos”. Os problemas neurológicos enfrentados pelos sobreviventes são extremos. “Há uma preocupação contínua com a saúde mental de todos em Gaza, particularmente com as crianças que estão tão profundamente traumatizadas”, disse Nebal Farsakh, da Sociedade do Crescente Vermelho Palestino, apontando que “há pelo menos 17 mil crianças desacompanhadas ou separadas de seus pais”. Como observamos na primeira carta semanal deste ano, um relatório de dezembro de 2024 conduzido pelo Centro de Treinamento Comunitário para Gestão de Crises em Gaza descobriu que “96% das crianças em Gaza sentiam que a morte era iminente”.
Uma avaliação preliminar sugere que a reconstrução de Gaza custará 80 bilhões de dólares. O Programa de Desenvolvimento da ONU assinou um acordo com a Università Iuav di Venezia para projetar uma nova Gaza que propõe em um primeiro momento construir um “núcleo” de cidade para 50 mil pessoas em meio aos escombros, para depois construir no entorno. Há pelo menos 50 milhões de toneladas de escombros em Gaza da destruição de mais de dois terços da infraestrutura da área (incluindo 92% das unidades habitacionais), que levará anos para serem limpos. Nas ruínas, ao lado dos corpos de palestinos desaparecidos, há munições não detonadas e materiais tóxicos: não é possível simplesmente alinhar uma fileira de escavadeiras e dirigir de uma ponta a outra da Faixa de Gaza.
As instituições palestinas simplesmente não têm dinheiro para reconstruir Gaza. Os Estados árabes do Golfo, que têm dinheiro, certamente tentarão arrancar concessões políticas imperdoáveis das organizações palestinas em troca de qualquer ajuda. Os países que querem fazer Israel pagar pela devastação que causou aos palestinos não têm capacidade política para fazê-lo, nem conseguem pressionar os países que armaram Israel (como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha) a pagar pelos danos causados com suas munições.
Os perpetradores do genocídio querem converter Gaza em seu playground imobiliário. O presidente dos EUA, Donald Trump, diz que Gaza é um “lugar fenomenal” que atualmente parece um “grande local de demolição”, ecoando a avaliação de seu genro e conselheiro sobre estratégia do Oriente Médio, Jared Kushner, em fevereiro de 2024, de que a “propriedade da orla de Gaza poderia ser muito valiosa”. No ano passado, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu disse que a parte norte de Gaza, incluindo a Cidade de Gaza, permaneceria em ruínas e seria anexada, enquanto Israel controlaria o resto de Gaza e construiria assentamentos aos seus arredores. O movimento dos colonos, que está empenhado em limpar etnicamente os palestinos – e parte da base de Netanyahu – está se preparando para tomar as praias e construir seus próprios assentamentos. A pressão sobre os palestinos para deixar Gaza permanecerá intensa, apesar desse cessar-fogo momentâneo.
Os palestinos, que perderam pelo menos 11,5 anos de suas vidas como resultado desse horror, aceitarão o que puderem agora — até mesmo esse cessar-fogo esfarrapado. Mas merecem muito mais e continuarão sua luta para obtê-lo.
É por isso que, em 27 de janeiro, centenas de milhares de palestinos abrigados em Gaza começaram a marchar para o norte rumo a suas casas. Eles não sobreviverão a outra Nakba (catástrofe). Eles reconstruirão com suas próprias mãos, se necessário.
Cordialmente,
Vijay.
P.S. O gráfico acima faz parte de uma nova série do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Sul Global Insights (SGI) chamada Facts. A cada mês, lançaremos um novo visual desta série com base na pesquisa produzida pelo sistema de big data do SGI.