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Cartas Semanais

Resista, meu povo, resista | Carta semanal 52 (2024)

Após um ano marcado pelo genocídio e pelo conflito, damos as boas-vindas ao novo ano com luta; que ele nos aproxime de um mundo socialista no qual os sonhos da humanidade possam finalmente despertar.

Maysa Yousef (Gaza, Território Palestina Ocupada), Alice na Palestina #1, 2021.

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

A dor percorre as artérias da sociedade global. Dia após dia, o genocídio contra o povo palestino continua e os conflitos na região dos Grandes Lagos da África e no Sudão aumentam. Mais e mais pessoas caem na pobreza absoluta à medida que os lucros das empresas de armas aumentam. Essas realidades endureceram a sociedade, permitindo que as pessoas façam vista grossa e ignorem os horrores que acontecem no mundo todo. A indiferença pela dor dos outros se tornou uma forma de se proteger de um intenso sofrimento. O que se pode fazer com a miséria que passou a definir a vida em todo o planeta? O que posso fazer? O que você pode fazer?

Em 2015, a poetisa palestina Dareen Tatour escreveu Qawim ya sha’abi, qawimhum [Resista, meu povo, resista a eles], pelo qual foi presa e encarcerada pelo Estado israelense. Um poema que pode te mandar para a prisão é um poema poderoso. Um Estado ameaçado por um poema é um Estado imoral.

Resista, meu povo, resista a eles.
Em Jerusalém, curei minhas feridas e expressei minhas tristezas a Deus.
Eu carreguei a alma na palma da minha mão
para uma Palestina árabe.
Não sucumbirei à “solução pacífica”,
nunca abaixe minhas bandeiras
até que eu os expulse da minha terra natal
e os faça ajoelhar por um tempo vindouro.
Resista, meu povo, resista a eles.
Resista ao roubo do colono
e siga a caravana dos mártires.
Destrua a constituição vergonhosa
que impôs uma humilhação implacável
e nos impediu de restaurar nossos direitos.
Eles queimaram crianças inocentes;
Quanto a Hadeel, eles atiraram nela em público,
mataram-na em plena luz do dia.
Resista, meu povo, resista a eles.
Resista ao ataque colonialista.
Não dê atenção a seus agentes entre nós
que nos acorrentam com ilusões de paz.
Não temam os Merkava [tanques do exército israelense];
a verdade em seu coração é mais forte,
enquanto você resistir em uma terra
que sobreviveu a ataques e vitórias.
Ali gritou de seu túmulo:
resista, meu povo rebelde,
escreva-me como prosa no ágar,
pois você se tornou a resposta para meus restos mortais.
Resista, meu povo, resista a eles.
Resista, meu povo, resista a eles.

Choi Yu-jun (República Popular Democrática da Coreia), A Bela Adormecida, 2018.

“Hadeel” no poema se refere a Hadeel al-Hashlamoun (18 anos), que foi morta a tiros por um soldado israelense em 22 de setembro de 2015. Este assassinato ocorreu junto com uma onda de tiroteios – muitos fatais – contra palestinos por soldados israelenses em postos de controle na Cisjordânia. Naquele dia, Hadeel chegou ao posto de controle 56 na rua al-Shuhada em Hebron (Território Palestino Ocupado). O detector de metais apitou e os soldados disseram para ela abrir a bolsa, o que ela fez. Dentro havia um telefone, uma caneta Pilot azul, um estojo marrom e outros pertences pessoais. Um soldado gritou com ela em hebraico, e ela não entendeu. Fawaz Abu Aisheh, de 34 anos, que estava por perto, interveio e traduziu o que estava sendo dito. Mais soldados chegaram e apontaram suas armas para Hadeel e Fawaz. Um soldado disparou um tiro de advertência e depois atirou na perna esquerda de Hadeel.

Nesse momento, um soldado, alegando ter visto uma faca, disparou vários tiros no peito de Hadeel, que foi fotografada parada momentos antes. Depois de ficar no chão por algum tempo, ela foi levada para um hospital, onde morreu por hemorragia e falência múltipla dos órgãos resultante dos ferimentos à bala. Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a B’Tselem disseram que a questão da faca era irrelevante, já que Hadeel havia sido alvo de uma “execução extrajudicial” (sem falar no fato de que os depoimentos sobre a faca eram inconsistentes). A representação de Tatour da execução de Hadeel em plena luz do dia é um enorme lembrete das ondas de violência que estruturam a vida cotidiana dos palestinos.

Maksudjon Mirmukhamedov (Tadjiquistão), Meu Mustang, 2020.

Um mês depois da morte de Hadeel, conheci um grupo de adolescentes em um campo de refugiados perto de Ramallah. Eles me disseram que não veem nenhuma saída para suas frustrações e raiva. O que eles veem é a humilhação diária de suas famílias e amigos pela Ocupação, o que os leva ao desespero. “Temos que fazer alguma coisa”, diz Nabil. Seus olhos estão cansados. Ele parece mais velho do que seus anos de adolescência. Ele perdeu amigos para a violência israelense. “Marchamos até Qalandiya no ano passado em um protesto pacífico”, Nabil me conta. “Eles atiraram em nós. Meu amigo morreu”. A violência colonial pesa sobre seu espírito. Ao redor dele, crianças são executadas impunemente pelos militares israelenses. O corpo de Nabil se contorce de ansiedade e medo.

Pensei muito nesses adolescentes, especialmente no último ano, que foi definido pela escalada do genocídio dos EUA e de Israel contra os palestinos. Penso neles por causa da enxurrada de histórias sobre jovens como Hadeel e o amigo de Nabil sendo mortos por tropas israelenses não apenas em Gaza, mas na Cisjordânia.

Em 3 de novembro de 2024, Naji al-Baba, de quatorze anos, de Halhul, ao norte de Hebron, voltou da escola com seu pai, Nidal Abdel Moti al-Baba. Eles comeram molokhia, seu prato favorito, no almoço, e então Naji disse ao pai que iria jogar futebol. Naji e seus amigos brincavam perto da loja de seu avô. Soldados israelenses chegaram e atiraram nos meninos, atingindo Naji na pélvis, no pé, no coração e no ombro. Após o funeral, Nasser Merib, gerente do Halhul Sports Club, onde Naji jogava futebol, disse que ele tinha um pé direito forte. “Ele era ambicioso e sonhava em se tornar internacional como Ronaldo”. Esse sonho foi destruído pela ocupação israelense.

Chuu Wai (Myanmar), Quando Amelie e Khin encontram a revolução, 2021.

A morte de um jovem é um ato imperdoável. A morte de uma criança é particularmente difícil de entender. Naji poderia ter sido capitão do time de futebol palestino. Hadeel poderia ter se tornado uma cientista extraordinária. As famílias olham para as fotografias que restam e choram. Em Gaza, outras famílias estão sentadas em tendas sem nenhuma maneira de se lembrar de seus filhos perdidos, seus corpos destruídos ou desaparecidos e suas fotos transformadas em cinzas nos escombros. Tanta morte. Tanta desumanidade.

Se o tempo e a luta nos permitirem, seremos capazes de despertar adequadamente os sonhos da humanidade. Mas a noite antes do amanhecer será longa e difícil. Ansiamos pela humanidade, mas não esperamos que ela chegue facilmente. Pequenas vozes clamam por um novo mundo, e muitos pés marcham para construí-lo. Para chegar lá, será necessário pôr fim à guerra, à ocupação e à feiura do capitalismo e do imperialismo. Sabemos que vivemos na pré-história, na era anterior ao início da verdadeira história humana. Ansiamos por esse mundo socialista, onde Naji e Hadeel terão um futuro pela frente e não apenas um breve interlúdio em nosso mundo.

Feliz Ano Novo. Que ele nos aproxime da humanidade.

Cordialmente,

Vijay