Caros amigos e amigas,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Em 2019, 613 milhões de indianos votaram para nomear seus representantes ao parlamento da Índia (Lok Sabha). Durante a campanha eleitoral, os partidos políticos gastaram Rs. 60 mil crores de rúpias (cerca de R$ 44 bilhões), 45% dos quais foram gastos pelo governo, o Partido Bharatiya Janata (BJP), que obteve 37% dos votos, o que se traduziu em 303 dos 545 assentos no Lok Sabha. Um ano depois, a enorme quantia equivalente a R$ 76 bilhões foi gasta nas eleições presidenciais e para o Congresso dos EUA, com o vencedor do Partido Democrata liderando os gastos. São quantias gigantescas de dinheiro, cujo controle sobre o processo democrático está bastante claro agora. É possível falar de “democracia” sem ser franco sobre a erosão do espírito democrático por esta avalanche de dinheiro?
O dinheiro inunda o sistema, devora a lealdade dos políticos, corrompe as instituições da sociedade civil e molda as narrativas da mídia. É essencial para as classes dominantes ter posse dos principais meios de comunicação e que esses meios modelem a maneira como as pessoas decifram o mundo ao seu redor. Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas afirme que “todos têm direito à liberdade de opinião e expressão” (Artigo 19), o fato é que a concentração da mídia nas mãos de algumas entidades corporativas circunscreve a liberdade para “transmitir informações e ideias através de qualquer mídia”. Por essa razão, a ONG Repórteres Sem Fronteiras tem um Monitor permanente sobre a propriedade dos meios de comunicação que rastreia a consolidação dos veículos do poder corporativo, responsável por liderar uma agenda política dentro dos sistemas governamentais existentes.
Aijaz Ahmad, membro sênior do Instituto Tricontinental, argumenta que os projetos políticos da extrema direita encontram a possibilidade de impulsionar sua agenda por meio de instituições democráticas, uma vez que as estruturas políticas desses países – dos Estados Unidos à Índia – assistiram a uma erosão considerável de seu conteúdo democrático. Como Ahmad explica, a extrema direita em países como os EUA e Índia não desafia a forma democrática liberal e constitucional, mas estrangula as instituições formais ao transformar a sociedade “em todos os domínios da cultura, religião e civilização”.
Na América Latina, a extrema direita tem usado todas as armas para deslegitimar seus adversários, inclusive utilizando-se de leis de combate à corrupção de forma maliciosa contra as lideranças de esquerda. Essa é uma estratégia chamada “lawfare”, na qual a lei é usada – muitas vezes sem evidências – para destituir líderes de esquerda eleitos democraticamente ou para impedi-los de concorrer a cargos públicos. O lawfare foi usado para destituir o presidente hondurenho José Manuel Zelaya em 2009, o paraguaio Fernando Lugo em 2012 e a presidente brasileira Dilma Rousseff em 2016; esses líderes foram todos vítimas de golpes de Estado judiciais. O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, teve o direito negado de concorrer à presidência em 2018 por uma ação sem qualquer mérito em meio a pesquisas de opinião que o apontavam como favorito naquela corrida presidencial. A ex-presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, enfrentou uma série de processos a partir de 2016, tudo isso a impediu de concorrer novamente em 2019 (hoje é vice-presidente, prova de sua popularidade no país).
No Equador, a oligarquia usou as técnicas da guerra jurídica para deslegitimar toda a esquerda, especialmente o ex-presidente Rafael Correa (2007-2017). Correa foi acusado de suborno – com a bizarra noção de “influência psíquica” na raiz do processo. Ele foi condenado a oito anos de prisão, o que o impediu de concorrer a um cargo no Equador.
Por que Correa foi um anátema tanto para a classe dominante do Equador quanto para os EUA? A Revolução dos Cidadãos liderada por Correa aprovou uma constituição progressista em 2008, que colocou o princípio do “bem viver” (buen vivir em espanhol e sumak kawsay em quíchua) em seu cerne. O investimento do governo para fortalecer os direitos sociais e econômicos veio junto com a repressão à corrupção corporativa (incluindo de multinacionais). A receita do petróleo não foi depositada em bancos estrangeiros, mas destinada para investimentos em educação, saúde, estradas e outras infraestruturas básicas. Dos 17 milhões de habitantes do Equador, quase 2 milhões de pessoas foram tiradas da pobreza nos anos de Correa.
Seu governo foi uma aberração para as empresas multinacionais – como a petrolífera americana Chevron – e para a oligarquia equatoriana. O perigoso caso de indenização da Chevron contra o Equador, apresentado antes de Correa assumir o cargo, teve a feroz resistência do ex-presidente. A campanha Mão Suja (Mano Negra) colocou uma enorme pressão internacional contra a Chevron, que trabalhou em estreita colaboração com a embaixada dos Estados Unidos em Quito e com o governo estadunidense para minar Correa e sua campanha contra a gigante do petróleo.
Eles não queriam apenas Correa fora, mas toda a esquerda. Lenín Moreno, outrora próximo de Correa, ascendeu à presidência em 2017, mudou de lado, tornou-se o principal instrumento de fragmentação da esquerda equatoriana e devolveu o Equador às elites e aos Estados Unidos. Moreno arrasou o setor público ao cortar gastos com educação e saúde, retirando os direitos trabalhistas e de moradia, tentando vender a refinaria do Equador e desregulamentando partes do sistema financeiro. O colapso dos preços do petróleo, que levou a cortes nos subsídios ao setor e a um grande empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) à custa de medidas de austeridade e à má administração da pandemia, abalou a legitimidade de Moreno. Uma consequência dessas políticas tem sido a terrível resposta do Equador à pandemia, que inclui acusações de subnotificação deliberada de até 20 mil mortes por COVID-19.
Para conquistar os EUA, Moreno expulsou o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, da embaixada do Equador em Londres, prendeu o programador de computador e ativista digital Ola Bini em um caso forjado e lançou um ataque frontal contra os correístas. A organização política dos correístas foi desfeita, seus líderes presos e qualquer tentativa de reagrupamento para as eleições negada. Outro exemplo é a Força de Compromisso Social, por meio da qual os correístas concorreram às eleições autárquicas em 2019; esta plataforma foi então banida em 2020. Um referendo de fevereiro de 2018 foi travado em todo o país, permitindo ao governo destruir as estruturas democráticas do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Tribunal Constitucional, Tribunal Supremo, Conselho Judiciário, procurador-geral, controladoria geral e outros. A democracia foi esvaziada.
Um mês antes da eleição presidencial de 7 de fevereiro de 2021, parecia claro que, em uma eleição justa, o candidato da esquerda, Andrés Arauz Galarza, prevaleceria. Várias pesquisas sugeriram que Arauz venceria no primeiro turno com mais de 40%. Arauz (35 anos) é um candidato carismático, sem nenhum histórico de corrupção ou incompetência ao seu redor por sua década de serviço no Banco Central e como ministro nos últimos dois anos turbulentos do governo de Correa. Quando Correa deixou o cargo, Arauz foi ao México para fazer um doutorado na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). A oligarquia utilizou todos os meios para bloquear sua vitória.
Em 14 de janeiro, a Corporação Financeira Internacional para o Desenvolvimento (DFC) dos Estados Unidos concedeu ao Equador um empréstimo de 2,8 bilhões de dólares a ser usado para saldar a dívida do Equador com a China e garantir que o país sulamericano se comprometesse a romper os laços comerciais com o país asiático. Sabendo que Arauz poderia vencer, os EUA e a oligarquia do Equador decidiram amarrar o país andino a um arranjo que poderia sufocar qualquer governo progressista. Formado em 2018, o DFC desenvolveu um projeto denominado América Cresce, cujo arcabouço político visa a diferenciar os negócios chineses do hemisfério americano. Desde então, Quito assinou contrato com a “Rede Limpa” de Washington, um projeto do Departamento de Estado dos EUA para forçar os países a construírem redes de telecomunicações sem um provedor de telecomunicações chinês envolvido nelas. Isso se aplica particularmente às redes de alta velocidade de quinta geração (5G). O Equador aderiu à Rede Limpa em novembro de 2020, o que abriu as portas para o empréstimo do DFC.
Correa retirou 5 bilhões de dólares de bancos chineses para melhorar a infraestrutura do Equador (principalmente para a construção de hidrelétricas); a dívida externa total do Equador é de 52 bilhões de dólares. Moreno e os EUA pintaram os fundos chineses como uma “armadilha da dívida”, embora não haja evidências de que os bancos chineses tenham feito qualquer coisa além de acomodatícias. Nos últimos seis meses de 2020, os bancos chineses estiveram dispostos a suspender os pagamentos do empréstimo até 2022 (isso inclui um atraso no reembolso do empréstimo de 474 milhões de dólares ao Banco de Exportação e Importação da China e o empréstimo de 417 milhões de dólares ao Banco da China de Desenvolvimento). O Ministério da Fazenda do Equador diz que, por enquanto, o plano é que a amortização comece em março de 2022 e termine até 2029. Moreno acessou o Twitter para anunciar esses dois atrasos. Não foram tomadas medidas agressivas por parte desses dois bancos nem por qualquer outra entidade financeira chinesa.
Essencialmente, o empréstimo do DFC tenta sabotar a presidência de Arauz. Esse conflito imposto pelos EUA contra a China na América Latina é parte de um ataque mais amplo. Dia 30 de janeiro, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social realizou um seminário ao lado do Instituto Simón Bolívar, da ALBA dos movimentos sociais e a plataforma No Cold War para refletir sobre o campo de batalha latino-americano nesta guerra híbrida.
Os palestrantes incluíram Alicia Castro (Argentina), Eduardo Regaldo Florido (Cuba), João Pedro Stedile (Brasil), Ricardo Menéndez (Venezuela), Monica Bruckmann (Peru / Brasil), Embaixador Li Baorong (China) e Fernando Haddad (Brasil).
Apesar do esvaziamento da democracia, as eleições continuam sendo uma frente na disputa política e, nessa disputa, a esquerda luta para convocar o espírito democrático. Talvez a poesia seja a melhor maneira de articular a textura desse conflito. Da rica tradição de pensamento emancipatório do Equador, surgiu o escritor e comunista Jorge Enrique Adoum. Aqui está uma parte de seu poderoso poema, Fugaz retorno:
E corremos, como dois fugitivos,
para a orla onde as estrelas
desmoronou. Pescadores nos contaram
sobre as vitórias sucessivas nas províncias vizinhas.
E nossos pés ficaram molhados com um spray de amanhecer,
cheio de raízes que eram nossas e do mundo.
“Quando é a felicidade?”, Pergunta o poeta. Amanhã. Não estamos todos em busca do amanhã?
Cordialmente,
Vijay