CoronaChoque: um vírus e o mundo
Dossiê n°28
Em 1 de dezembro de 2019, médicos em Wuhan (China) começaram a atender pacientes com uma espécie de pneumonia viral. No final do mês, uma investigação se iniciou e as autoridades de saúde chinesas enviaram um aviso público e notificaram a Organização Mundial da Saúde (OMS). As autoridades chinesas isolaram um novo tipo de coronavírus no dia 7 de janeiro e no dia 12 do mesmo mês compartilharam sua sequência genética para uso no desenvolvimento de kits de diagnóstico. O governo, o Partido Comunista e o povo chinês iniciaram um grande esforço para conter sua disseminação. Esse misterioso agente patógeno recebeu o nome oficial de SARS-CoV-2; ao contrário de outros vírus respiratórios, este é capaz de viver tanto no nariz quanto na garganta – onde é altamente contagioso – e nos pulmões – onde pode tornar-se mortal para o hospedeiro e para quem geralmente não apresenta sintomas imediatamente. O vírus se espalhou rapidamente pelo mundo, atingindo quase todos os países, causando lockdowns e quarentenas e, portanto, tendo um imenso – e contínuo – impacto na vida social e econômica. Mesmo que pareça estar contido em muitas partes do mundo, o retorno dessa cepa e de outras milhares de cepas do coronavírus é esperado. Essa pandemia global, como o surto de cólera em 1832 e o da gripe de 1918, retornará em ciclos.
Diversos países, um depois do outro, aderiram a várias formas e tamanhos de isolamentos, enquanto o vírus infecta cada vez mais pessoas e mata milhares. Como resultado das quarentenas e ordens de isolamento, a atividade econômica estremeceu quase ao ponto de parar. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou um relatório sugerindo que 25 milhões de empregos serão perdidos devido ao choque do corona e que os trabalhadores perderão cerca de 3,4 trilhões de dólares em renda até o final do ano. Isso pode piorar, já que empresas e corporações estão aproveitando a crise para reestruturar suas operações e tornar-se mais “eficientes” com menos funcionários. Uma consequência do desemprego de longo prazo e do subemprego, bem como da incerteza no mercado de petróleo, é que a taxa de crescimento global provavelmente cairá para cerca de 1%, como sugere o Fundo Monetário Internacional (FMI); essa estimativa se baseia no crescimento chinês que, embora afetado, deve aumentar à medida que o SARS-CoV-2 parece ter sido controlado dentro das fronteiras do país asiático. As bolsas de valores, de Hang Seng a Wall Street, sofreram perdas significativas, com seus valores já inflados em colapso.
Vastas quantias de financiamento de emergência foram resgatadas por governos e organismos internacionais. O dinheiro foi acumulado pelo Fundo Central de Resposta de Emergência das Nações Unidas (15 milhões de dólares), pelo Banco Mundial (12 bilhões de dólares) e pelo Fundo Monetário Internacional (1 trilhão de dólares), e os bancos centrais abriram novas possibilidades para emprestar dinheiro a instituições financeiras e empresas. O Congresso dos Estados Unidos aprovou um projeto de lei de astronômicos 2,2 trilhões de dólares em fundos de emergência, boa parte dele destinado a fortalecer as corporações. Ficou muito claro que o problema não era a falta de liquidez nos mercados financeiros, uma das causas da crise financeira de 2008-09, mas uma concatenação de eventos: a falta de certeza sobre o coronavírus, o rápido declínio nos preços do petróleo e os problemas de longo prazo do desemprego e subemprego. O dinheiro arrecadado deve ser empregado para lidar com o CoronaChoque, mas o problema é precisamente como ele será gasto. Na sociedade capitalista, existe o hábito de se destinar o dinheiro a bancos e grandes corporações. A experiência nos mostra, no entanto, que essas entidades raramente usam essa verba para atender os principais problemas da nossa situação: aliviar as dificuldades do povo em geral – incluindo a provisão de renda e emprego – e fornecer uma solução a longo prazo para a desigualdade social. É por isso que o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e a Assembleia Internacional dos Povos produziu um documento, cujos 16 pontos reproduzimos na parte 2 deste dossiê, que busca responder ao choque do corona do ponto de vista dos povos do mundo.
Este dossiê está dividido em três partes. Na parte 1, falamos das características estruturais que resultaram em nossa crise atual. A parte 2 traz o programa de 16 pontos da Assembleia Internacional dos Povos e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Um dos pontos é a Renda Básica Universal, uma proposta complexa que requer um debate. Na Parte 3 do nosso dossiê, fornecemos uma breve introdução à ideia da Renda Básica Universal (RBU) e oferecemos algumas críticas ao conceito e algumas formas de pensá-la e aprimorá-la.
Parte 1. O vírus da austeridade.
A pandemia global deixa às claras as tendências destrutivas do capitalismo em sua fase neoliberal. A conjuntura, com a desaceleração da atividade econômica e a turbulência nas bolsas de valores, transformou líderes capitalistas neoliberais e instituições multilaterais em keynesianos – sejam Angela Merkel (Alemanha) e Emmanuel Macron (França) ou o Banco Mundial e o FMI. Cada um abriu janelas em seus bancos centrais e em seus ministérios de Finanças para despejar dinheiro no setor privado (e expandir programas estatais). Em contrapartida, fez com que líderes da extrema direita – como Donald Trump (EUA), Narendra Modi (Índia), Jair Bolsonaro (Brasil), Recep Tayyip Erdoğan (Turquia) e Viktor Orbán (Hungria) – se aferrassem ainda mais a seus programas já obscenos, o que inclui a xenofobia. Para eles, é muito mais fácil culpar a China pelo vírus que assumir a responsabilidade em relação a suas próprias falhas ao lidar com a pandemia, mesmo depois de serem amplamente advertidos. Esses líderes dos Estados do Atlântico Norte e as instituições que controlam criaram as condições para essa crise, que levou a uma situação social insustentável para as pessoas de todo o mundo – principalmente no Sul Global. Eles trataram a crise como se esta tivesse emergido meramente de uma confluência de circunstâncias que poderiam ser totalmente explicadas pela pandemia; as manchetes anunciaram que “a crise é provocada pelo coronavírus”. Este vírus – como outros desse tipo – levanta a questão fundamental da invasão humana nas florestas e o equilíbrio entre a civilização (agricultura e cidades) e a natureza. Como escrevem Miguel Tinker Salas e Victor Silverman, no La Jornada, o vírus é o produto da natureza, enquanto a crise é o produto do neoliberalismo.
No entanto, desde a década de 1970 (e mais intensamente desde a queda do Muro de Berlim, em 1991), o projeto de globalização neoliberal mostrou níveis cada vez mais impressionantes de desumanização – incluindo cortes nas instituições públicas e austeridade em relação às políticas sociais. Essa desumanização convulsionou em um ciclo de crise, muitas vezes motivadas pela turbulência gerada pelo trabalho precário, pelo crédito insustentável concedido a pessoas com renda reduzida para produzir demanda e pela transferência do capital industrial para o setor financeiro. As crises que surgiram não vieram de um ciclo de lutas populares que desafiaram o capitalismo; elas vieram, em vez disso, da lógica desumanizada do capital em sua fase neoliberal e foram resolvidas através de remédios que eram frequentemente piores que a doença.
O novo coronavírus revela a decadência da civilização capitalista. Talvez o mundo não seja o mesmo depois que a pandemia for controlada. O estado neoliberal erodido pode ser suplantado por uma estrutura estatal que favoreça o projeto neofascista, ou por uma outra que construa instituições e ações públicas que coloquem as necessidades das pessoas acima do lucro. Será uma escolha importante. Existe um receio em setores do bloco neoliberal de que quaisquer políticas de natureza social que sejam postas em prática em caráter de emergência durante o choque do corona possam se tornar difíceis de desfazer; será necessário mais que inércia para garantir que quaisquer ganhos obtidos nesse período permaneçam em vigor quando a crise imediata terminar.
A crise gerada pela pandemia global excede em muito a questão da saúde. Além do caos e da incerteza do presente, coloca-se a questão da possibilidade de um novo modelo social e ordem política em um futuro próximo. Em uma discussão entre os filósofos Slavoj Žižek e Byung-Chul Han, eles colocaram uma ideia de futuro: o que virá se assemelhará a algum tipo de “comunismo refundado” ou um tipo de Estado policial baseado no uso de big data?
Não há resposta a priori para essas perguntas. A crise atual faz parte de uma série de tendências acumuladas ao longo das últimas décadas e que explodiram no contexto da pandemia global. Quatro características estruturais da crise precisam ser elaboradas: aprofundamento da financeirização, declínio da hegemonia dos EUA, deslocamento de mão de obra por meio da tecnologia e aumento de produtividade e, por fim, a crise do Estado neoliberal.
Uma nova onda de financeirização
O que foi apresentado como uma saída para o colapso financeiro de 2008 não era de fato uma saída. A política de resgate para bancos de investimento e grandes empresas não financeiras adotadas pelos países da zona do euro, assim como pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, gerou um processo de hiper liquidez global (ou seja, uma abundância excessiva de dólares). Sempre que o capital enfrenta baixa rentabilidade, ele prefere atividades fictícias especulativas – correndo, por exemplo, para as bolsas de valores; no período atual, a extensão quantitativa do setor financeiro em relação à economia real é impressionante, e é isso que a torna única.
Existem vários elementos no processo de financeirização. Por processo nos referimos ao inchaço do setor financeiro desde os anos 1980, com grandes volumes de mais-valia criados pelo setor produtivo sendo absorvidos pelas empresas financeiras. Imensas dívidas de vários tipos são acumuladas pelas famílias – principalmente as da classe trabalhadora – para financiar a vida cotidiana; essa dívida é transformada em pacotes de títulos e vai para o gigantesco cassino do mundo financeiro. O que observamos é uma mudança qualitativa na atividade econômica, para que novas crises se desenvolvam a partir da instabilidade das finanças no campo da circulação, ao lado das antigas crises de rentabilidade das atividades produtivas.
Essa grande abundância de dinheiro não desencadeou um processo global de investimentos produtivos. Ao contrário, a maior parte do dinheiro do mundo acabou mais uma vez aumentando a dívida soberana e os ativos financeiros (inclusive por meio de compras de ações renovadas), fazendo com que o processo de financeirização se acelere. Novas bolhas de ativos foram infladas por meio de instrumentos como os títulos do governo, e as finanças se deslocaram para capitalizar as empresas nos novos setores de tecnologia.
As empresas de tecnologia começaram a dominar as bolsas de valores e absorveram uma parte considerável da liquidez do mundo; essa absorção era geralmente caracterizada pela centralização do capital, especialmente por empresas estadunidenses (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook eram as empresas que tinham as maiores avaliações). Essas empresas de tecnologia dos EUA foram fundamentalmente desafiadas pelo crescimento das chinesas do ramo – como a Huawei, cujo avanço em áreas como o 5G ameaçam o domínio das empresas estadunidenses em relação aos direitos de propriedade intelectual, o que lhe confere a vantagem dos impostos monopolista sobre esses direitos. A guerra comercial dos Estados Unidos contra a China pode ser entendida diretamente pela ameaça representada pelas empresas de tecnologia chinesas contra as poderosas empresas de tecnologia dos EUA.
O Norte e o Sul viram o aumento da financeirização. Enquanto as finanças no Norte canalizavam capital para novos setores hiperlucrativos (como capitalismo de plataforma e tecnologia), as finanças do Sul assumiam a dinâmica do endividamento seguida pela fuga de capitais. Em 2015, o Federal Reserve dos EUA adotou a política de fortalecer o dólar americano, aumentando a taxa de fundos federais (ou seja, a taxa overnight que as instituições depositárias cobram mutuamente por empréstimos), o que tirou dinheiro do resto do mundo para os EUA, fortalecendo-os. Como resultado de tais políticas, os Estados Unidos recuperaram seu papel de líder como destino de capital após mais de uma década dos “mercados emergentes” atraírem o capital mundial. Em 2018, os três países com maior entrada de capital líquido foram Estados Unidos (258 bilhões de dólares), China (203 bilhões de dólares) e Alemanha (105 bilhões de dólares). Os Estados Unidos atraíram grande parte da liquidez do mundo, sobretudo devido à política do Federal Reserve dos EUA de praticar taxas de juros mais altas, o que atraiu capital do Sul para o Norte.
O aprofundamento do poder das finanças sobre a sociedade e a economia levou a três resultados: a dependência política dos países do Sul, economicamente endividados, a estagnação dos setores produtivos da economia no Norte Global e a instabilidade crônica do sistema mundial, que coloca o interesse do capital sobre as necessidades das pessoas. A aparição do coronavírus acelerou esse processo. As fábricas chinesas se tornaram centrais globalmente; a interrupção da produção na China, que levou a uma queda de 15% em sua produção industrial (em comparação com o desempenho do ano anterior), dificulta a compreensão de como a liquidez dos grandes bancos do Norte Global espera reviver não só a cadeia de suprimentos, mas também agregar a demanda global.
A aceleração do declínio dos Estados Unidos
Giovanni Arrighi, em Adam Smith, em Pequim: origens e fundamentos do século XXI (2007), considera o aumento e a aceleração do processo de financeirização como um indicador da crise de hegemonia dos EUA. Este conduziu uma guerra híbrida contra vários Estados não alinhados (Irã e Venezuela), a fim de ganhar domínio sobre a China na Eurásia, e usaram seu poder financeiro para esse processo, além de restabelecer sua posição de eminência sobre seus aliados. Esse impulso, no entanto, marca a debilidade do unilateralismo de Washington.
A crise humanitária e de saúde agravada por esta pandemia global fortaleceu o papel da China, em particular, como um Estado capaz de controlar o vírus dentro de suas fronteiras e, depois, de usar sua experiência e recursos para ajudar as pessoas que sofrem para além de seu território. Em contrapartida, a atitude insensível de Trump em relação ao seu próprio povo – colocando o “cuidado” com a economia antes do desastre humanitário – tornou evidente o declínio da liderança dos EUA, uma vez que não conseguiram liderar qualquer tipo de reação, mesmo uma mais flexível via G20. Qualquer que seja a falta de clareza sobre o que virá no futuro – se entramos no século asiático, na era bipolar ou no período multipolar –, é evidente que a civilização liberal ocidental não foi sequer capaz de responder às necessidades do povo em sua própria parte do mundo.
Digitalização contra o trabalho
A concentração de capital no setor de tecnologia não deve passar despercebida. Ela levanta ao menos dois debates importantes: primeiro, gera uma bolha especulativa de ativos focada nas empresas de alta tecnologia; segundo, expande a influência do capitalismo global em todo o mundo e permite o controle de dados que por sua vez são usados para gerenciar pessoas. O crescimento exponencial do “capitalismo de plataforma” – ou atividade econômica enraizada nas plataformas baseadas na Internet – e da coleta e análise de big data produz novas lógicas de consumismo; essa é uma parte essencial do que é conhecido como a quarta revolução industrial. Esse capitalismo de plataforma molda e canaliza as necessidades do consumidor, produz novas formas de subjetividade e até intervém na produção de identidades políticas. A criação generalizada da individualização através da atomização da atividade social cria novas maneiras de ser no mundo.
A pandemia global e as políticas de isolamento que ela ocasionou em diversas partes do mundo propiciam o desenvolvimento do capitalismo de plataforma. O trabalho remoto por meio da Internet possibilita dar continuidade ao trabalho durante a quarentena. Google, Amazon, Facebook e Zoom tornaram possível trabalhar de casa e sugerem que isso é benéfico para os trabalhadores do mundo. Dizem, por exemplo, que assim podemos usar nosso tempo com mais liberdade e que, por meio de contratos flexíveis, é possível mudar de emprego com maior frequência. Certamente, a ideia de emprego vitalício para os trabalhadores, sob o capitalismo de hoje, é anacrônica, e o trabalho flexível tornou-se o paradigma desse período neoliberal. Dentre os trabalhos que se pode realizar remotamente, ignora-se a carga crescente de mão de obra não remunerada que o acompanha – como o cuidado com as crianças que estão sem aulas devido à crise e o cuidado de membros da família com risco de adoecimento. Além disso, o papel central desempenhado pelo capitalismo de plataforma no meio desse período de isolamento faz avançar a agenda neoliberal – notadamente a segmentação da força de trabalho e a fragmentação dos trabalhadores – subordinando ainda mais a força de trabalho aos interesses irrestritos do capital.
A crise do Estado neoliberal
O sistema do Estado neoliberal mostrou que é incapaz de resolver os problemas que seu modelo cria. Em 2008, por exemplo, esse sistema, liderado pelos Estados Unidos, apressou-se em injetar enormes quantidades de capital no sistema financeiro e em grandes corporações em particular (como a General Motors). Essa intervenção era conhecida como “keynesianismo financeiro” ou intervenção estatal para sustentar a arquitetura projetada por empresas financeiras para promover e beneficiar o projeto neoliberal. As questões subjacentes – ou seja, a falta de renda para bilhões de pessoas que vivem com crédito caro e insustentável – não foram abordadas.
Em muitos países, políticos neoliberais e da “terceira via” (ou centristas) desacreditados deram lugar a projetos da extrema direita e neofascistas. Álvaro García Linera, ex-vice-presidente da Bolívia, chama esse estágio do capitalismo de neoliberalismo zumbi – um projeto que favorece o ódio e o ressentimento. Nesse contexto, o Estado burguês entra em crise, pois não pode reconhecer as demandas democráticas do povo, muito menos dar atenção a elas; um “Estado de exceção” prevalece, com o autoritarismo neofascista eclipsando as instituições democráticas liberais já desgastadas. O teórico político William Davies chama isso de neoliberalismo punitivo – um neoliberalismo que responde à crise aprofundando suas políticas de austeridade e rigor fiscal e impondo maior endividamento, especialmente no Sul Global. Nas palavras de Davies, isso leva a “uma condição melancólica na qual governos e sociedades desencadeiam ódio e violência contra membros de suas próprias populações”.
Parte 2. À luz da epidemia global, focar a atenção nas necessidades do povo.
Aqueles com poder dentro do sistema são os primeiros a projetar mecanismos para se protegerem durante uma crise. Sempre que há uma crise financeira, por exemplo, a causa real do colapso não é abordada; o que é colocado às pressas sobre a mesa é um enorme resgate financeiro para aqueles que provocaram a crise em primeiro lugar. À medida que a pandemia global se desenrola, os governos mais uma vez reservam grandes somas de dinheiro para os interesses de autoproteção do capital, enquanto os bancos centrais – seguindo a liderança do Federal Reserve dos EUA – cortam as taxas de juros para entregar liquidez às bolsas de valores. Assim, os ricos podem garantir a saúde de seus investimentos, em vez de garantir a saúde das pessoas. Os recursos do povo, que neste período raramente são destinados ao bem público, são rapidamente disponibilizados para salvar o setor privado.
Os estados com orientação socialista (de governos nacionais como na China a governos estaduais como em Kerala) mobilizaram todos os recursos disponíveis – independentemente de perdas econômicas – para conter a pandemia. A OMS disse que a atuação da China tenha sido “talvez o esforço de contenção de doenças mais ambicioso, ágil e agressivo da história”. Enquanto isso, o Estado da ordem burguesa falhou totalmente em usar seus recursos e falhou em preparar um plano racional para eles; as taxas de mortalidade da Itália e Estados Unidos da América são catastróficas, um crime político contra a humanidade.
Nos últimos trinta anos, desde a queda da URSS e o enfraquecimento da esquerda global, forças progressistas estão em desvantagem. Os governos, ansiosos por agradar os interesses dos bilionários, cortaram impostos e aplicaram medidas de austeridade, privatizaram bens públicos preciosos e desregulamentaram a indústria e o comércio. Em nome da eficiência, o Estado burguês intensificou a luta de classes, atacando sindicatos e organizações de esquerda, tentando fragmentar seus reservatórios. O crescimento de organizações não-governamentais (ONGs), frequentemente apoiadas pela plutocracia, minou a esquerda política, pois desviou a atenção das pessoas da totalidade de seus problemas para campanhas de uma única questão; uma pessoa se interessa pelo fornecimento de água, outra pela educação, mas nenhuma entidade atrai pessoas para um ataque frontal ao sistema como um todo – principalmente contra o capitalismo.
Uma consequência do enfraquecimento da esquerda em um período de luta de classe intensa e o desenvolvimento de um ataque midiático que vendeu mercadorias como sonhos foi que a esquerda foi forçada a dedicar considerável energia a lutas de curto prazo. O alívio contra o regime de austeridade veio acompanhado de lutas contra a crescente brutalidade dos processos capitalistas de produção e da violência estatal. Sem as forças de esquerda desempenhando um papel alinhado ao sentimento popular contrário aos cortes e à violência, à brutalização do trabalho e ao empobrecimento dos trabalhadores, o impacto do neoliberalismo e da globalização na classe despossuída e operária teria sido muito pior. Uma esquerda enfraquecida, impulsionada pela realidade e concentrada no curto prazo produziu muitos programas para uma abordagem socialista das várias crises; esses programas tinham elementos importantes que requerem estudo. Onde a esquerda esteve no governo, experimentou novas abordagens à crise endêmica do capitalismo e procurou mobilizar seus recursos para o bem social e desenvolver ações públicas para transformar a sociedade e avançar na luta de classes.
À medida que a pandemia global escalava além das fronteiras da China, ficou claro que as sociedades que haviam minado suas instituições públicas sofreriam imensamente com o vírus. O governo chinês utilizou recursos consideráveis para testar sua população, estabelecer com quem os pacientes infectados haviam estado em contato, tratar e monitorar pacientes, atender às necessidades das cidades fechadas e garantir que a sociedade não sofresse desnecessariamente com as interrupções. Dos Estados Unidos à Índia, passando pelo Brasil, no entanto, a evisceração das instituições públicas – particularmente instituições de saúde – deixou a sociedade vulnerável. A privatização das faculdades de medicina leva os recém-formados a cobrar caro pelos seus serviços, como forma de quitar suas dívidas, ao passo que a privatização dos hospitais provoca cortes no excedente ou aumento da capacidade; nesses hospitais, todas as camas e máquinas são tratadas como bens imobiliários para maximizar a cobrança de aluguel. A medicina just-in-time para ganho privado tornou-se a fórmula.
O fracasso do sistema de saúde sob a austeridade é agora claramente visível. O mesmo pode se dizer do fracasso total em estabelecer instituições para cuidar dos vulneráveis em tempos de emergência, e o fracasso universal em nutrir uma cultura de ação pública que levaria as organizações de trabalhadores e os grupos sociais a ajudar a sustentar comunidades no meio da crise. Esse fracasso do Estado e da sociedade em países que assistiram ao neoliberalismo e à austeridade canibalizar recursos públicos não poderia ser justificado pela ira do próprio vírus; por que os países com Estados mais robustos e com uma tradição de atuação pública têm conseguido reduzir o vírus com mais eficácia?
Uma das principais realizações dos muito ricos foi deslegitimar a ideia de instituições estatais. No Ocidente, a atitude típica tem sido atacar o governo como inimigo do progresso; encolher instituições governamentais – exceto militares – tem sido o objetivo. Qualquer país com uma estrutura robusta de governo e Estado foi caracterizado como “autoritário”. Mas essa crise abalou essa visão. Países com instituições estatais intactas que foram capazes de lidar com a pandemia – como a China – não podem ser facilmente descartados como autoritários; chegou-se a um entendimento geral de que esses governos e suas instituições são eficientes. É impossível seguir afirmando que essa forma de Estado burguesa esclerosada e oca é mais eficiente que um sistema de instituições estatais que vão se aperfeiçoando em um processo de tentativa e erro.
O que aprendemos não apenas da China, mas também de Cuba, Venezuela e do estado indiano de Kerala, é que, se uma sociedade é organizada por suas organizações populares (sindicatos, associações de mulheres, estudantes, jovens e cooperativas), então há capacidade para ação pública. Uma sociedade organizada é aquela que desenvolve a capacidade das pessoas de aprender a agir coletivamente em tempos normais – mas ainda mais quando em uma crise. O projeto socialista é desenvolvido apenas parcialmente pelas instituições do Estado; a outra parte – a mais vital – é que a sociedade seja organizada, energizada e preparada para o trabalho cotidiano e extraordinário da construção social.
À medida que a pandemia global crescia, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e a Assembleia Internacional dos Povos (IPA), uma plataforma de mais de duzentas organizações de quase cem países, abriu uma discussão sobre a crise e sobre as situações mais urgentes e as necessidades imediatas para a classe trabalhadora global. O documento que produzimos inclui um programa de dezesseis pontos, baseado na experiência de luta e governança que emergiu desses movimentos, sindicatos e partidos políticos. Mais que um debate sobre cada política e ponto separados, o programa inicia um debate sobre a própria natureza de como entender o Estado e suas instituições.
- Suspensão imediata de todos os tipos de trabalho, com exceção do setor médico e logístico essencial e dos funcionários necessários para produzir e distribuir alimentos e artigos de necessidades básicas, sem nenhuma perda de salário. O Estado deve arcar com o custo dos salários durante o período de quarentena.
- Os serviços de saúde, abastecimento de alimentos e segurança pública devem continuar funcionando de maneira organizada. As reservas de grãos de emergência devem ser imediatamente liberadas para distribuição entre os pobres.
- Todas as escolas devem suspender as aulas.
- Socialização imediata de hospitais e centros médicos, para que não tenham que se preocupar com seus lucros à medida que a crise se desenvolve. Esses centros médicos devem estar sob o controle de uma coordenação centralizada da campanha de saúde do governo.
- Nacionalização imediata das empresas farmacêuticas e cooperação internacional imediata entre elas para encontrar uma vacina mais simples e dispositivos para testes mais simples. Eliminação da propriedade intelectual no campo da medicina.
- Fazer o exame do coronavírus em todas as pessoas. Mobilização imediata de kits de teste, recursos e apoio às equipes médicas que estão à frente desta pandemia.
- Aceleração imediata da produção de materiais necessários para enfrentar a crise (kits de teste, máscaras, respiradores).
- Fechamento imediato dos mercados financeiros mundiais.
- Arrecadação imediata de recursos para evitar a falência dos governos.
- Anulação imediata de todas as dívidas não corporativas.
- Fim imediato de todos os pagamentos de aluguel e hipoteca, bem como o fim dos despejos. A moradia decente deve ser um direito para todos os cidadãos e deve ser garantido pelos Estados nacionais.
- Absorção imediata pelo Estado de todos os pagamentos de serviços úteis — água, eletricidade e comunicações, uma vez que são direitos humanos básicos.
- Fim imediato do criminoso regime de sanções unilaterais que afetam países como Cuba, Irã e Venezuela e os impedem de importar os suprimentos médicos necessários.
- Apoio urgente aos camponeses para aumentar a produção de alimentos saudáveis e fornecê-los ao governo para sua distribuição direcionada.
- Suspender o dólar como moeda internacional e exigir das Nações Unidas que convoquem com urgência uma nova conferência internacional para propor uma moeda internacional comum.
- Garantir uma renda básica universal em todos os países. Isto possibilita garantir o apoio do Estado a milhões de famílias que estão desempregadas, trabalhando em condições extremamente precárias ou por conta própria. O atual sistema capitalista exclui milhões de pessoas de empregos formais. O Estado deve proporcionar emprego e uma vida digna para a população. O custo da renda básica universal pode ser coberto pelos orçamentos de defesa, em particular as despesas destinadas a armas, munições e outras aquisições de equipamentos bélicos.
Esses 16 pontos são uma carta para debate de modo a começar a direcionar a atenção em direção às lutas e políticas para um futuro pós-capitalista.
Parte 3. Renda Básica Universal
Ao longo do último meio século, tornou-se claro que todo o sistema de emprego entrou em colapso. Na sociedade capitalista moderna, uma certa margem de desemprego é vista como aceitável (ideia que se tornou até uma teoria, a da “taxa natural de desemprego”); o Estado fornece várias formas de assistência social para compensar a falta de salários. Agora, como consequência da globalização do trabalho e do aumento da produtividade induzido pela tecnologia, bilhões de trabalhadores estão desempregados, subempregados ou em situações de grande precariedade (como trabalhadores com contrato de trabalho temporário ou diaristas). Há pelo menos 157 milhões de trabalhadores migrantes dentre 258 milhões de migrantes internacionais – de acordo com a Organização Internacional do Trabalho – que são frequentemente excluídos do sistema de seguridade social; esse estado precário raramente é trazido à discussão. A desigualdade social aumentou dramaticamente e a pobreza bate às portas da maioria da população do mundo.
Uma porcentagem dos trabalhadores – o exército de reserva – está desempregada, mesmo na fase mais dinâmica do capitalismo; mas, cada vez mais, à medida que o capitalismo enfrenta uma crise de lucratividade a longo prazo, a maioria dos trabalhadores experimenta extrema precariedade. Dentro da lógica do capitalismo, esses trabalhadores estão sendo superexplorados ou se tornaram uma população excedente. A sobrevivência deles está no nível do desespero.
Para enfrentar esses problemas da pobreza e da desigualdade nas relações sociais capitalistas surgiu a ideia de uma Renda Básica Universal (RBU). Se os capitalistas não usarão seus recursos financeiros para investir em empregos, essa população excedente terá que obter seu sustento de outros lugares, como do Estado. Esse pagamento patrocinado pelo Estado seria a RBU, que aparece no 16º ponto da declaração anteriormente mencionada.
Devemos ser claros sobre as limitações da RBU. Ela libertaria a enorme população excedente do desemprego e da miséria, mas não emanciparia as pessoas da forma dinheiro ou do poder do Estado capitalista. O desembolso de dinheiro significa que este ainda seria necessário para comprar bens e serviços essenciais que, de outra forma, poderiam ser fornecidos de acordo com a necessidade, sem a troca de dinheiro (educação pública, por exemplo, ou sistemas públicos de distribuição de alimentos). Parte da atração de uma RBU para o bloco neoliberal é que colocariam dinheiro nas mãos da população excedente, que então poderia comprar bens e serviços que de outra forma não comprariam. As relações sociais do capitalismo não são ameaçadas pelo RBU, que é apenas um programa de bem-estar dentro das normas do sistema capitalista. No contexto de fome e desespero generalizados, essa proposta não deve ser menosprezada, mesmo que tenha imensas limitações de escopo e implementação.
Ao longo das últimas décadas, as feministas marxistas desenvolveram poderosas teorias sobre a reprodução social – a saber, a produção de força de trabalho. A reprodução social, ou o setor de cuidados que renova a vida humana, é uma parte essencial da existência social e econômica. Apesar disso, normalmente é negligenciado nas discussões sobre renda e salários.
As análises da reprodução social buscam explicar as ligações entre os circuitos de acumulação do capitalismo e as estruturas patriarcais para a renovação e reprodução da força de trabalho humana. Uma compensação para quem faz o trabalho de reprodução social – mulheres sobretudo – raramente está disponível, a menos que o trabalho seja comoditizado (como serviços de doméstica, cozinheira ou serviços de entrega). A reprodução da classe trabalhadora é uma condição vital para a produção capitalista, mas as reprodutoras da classe trabalhadora não são elas próprias compensadas de forma mercantilizada (monetária). O debate sobre a RBU provocou uma discussão sobre “salários pelo trabalho doméstico” e sobre uma renda básica que substituiria efetivamente os salários. O argumento para RBU ou uma forma equivalente de compensação para remunerar o trabalho de reprodução social e cobrir os meios de subsistência daqueles com deficiências ou doentes é forte e poderoso. No entanto, a compensação pelo trabalho de cuidado por si só não superará a longa história de depreciação desse trabalho; será necessária uma forte luta antipatriarcal para quebrar a ideia da divisão de trabalho por gênero.
O apoio à RBU é impressionante, de socialistas à extrema direita. Cada um tem uma visão diferente, e essas diferenças são importantes de ter em conta.
- Substituição versus suplemento. A ala neoliberal (e a extrema direita) aceitaria uma RBU se esta substituísse todos os outros programas de bem-estar social. Eles veem a RBU como um substituto para uma série de políticas como saúde, educação, transporte públicos, além de distribuição pública de alimentos. Ao dar dinheiro em vez de serviços, eles querem mercantilizar essas áreas da vida social e, em seguida, privatizá-las. Há dinheiro a ser ganho com a venda de bens e serviços para as populações excedentes. Esse também é um mecanismo para desmantelar e privatizar a rede de segurança social. O argumento socialista é que a RBU não é um substituto para esses programas, mas um complemento a eles. Esses programas sociais – como educação pública e distribuição de alimentos – devem ser aprimorados e gerenciados adequadamente, com a RBU apenas como um adicional para outros usos, como lazer.
- Comprovação de necessidade versus universalidade. A ala neoliberal aceita a RBU, mas depois ataca o espírito da proposta. Defende que a renda básica não deve ser universal, ou seja, nem todos devem recebê-la, apenas os mais necessitados. Essa ideia joga por terra todo o objetivo de uma renda universal, que tenta promover a unidade social, em vez de mais uma vez dividir a população entre “pobres merecedores” e “não merecedores”.
Há algo particularmente estranho em garantir uma renda a todas as pessoas. Por que o apoio à renda seria dado aos muito ricos? Existem vários argumentos para um desembolso universal de renda ou bens:
- Evitar o problema moral de ter que decidir quem é o “pobre que merece” ou o “necessitado”. Isso cria divisões na sociedade e, além disso, estigmatiza aqueles que recebem pagamentos da assistência social.
- Evitar os enormes problemas de implementação criados pelo fato dessa decisão moral caber a um sistema institucional que nem sempre é capaz de tomar essas decisões democraticamente ou ser eficiente na transferência desses fundos ou bens, dependendo se a renda vem em dinheiro ou não.
- Um pagamento em dinheiro aos ricos prejudicaria os objetivos da redistribuição da riqueza? De maneira alguma, pois os ricos pagariam um imposto sobre a riqueza para financiar tal esquema e sua carga tributária superaria em muito o apoio à renda que eles receberiam.
Se o programa da RBU não substituir o salário social, mas for um complemento a ele, e se for universal, pode potencialmente ser uma reivindicação valiosa dentro do sistema capitalista. Se substituir o salário social e se for direcionado, não é mais uma renda básica universal, mas um mecanismo perigoso para mercantilizar e privatizar os benefícios sociais e exacerbar as divisões da classe trabalhadora.
Outra das questões levantadas sobre a proposta é como se espera que os Estados paguem pela renda básica e, com base nisso, qual seria o pagamento real por indivíduo em idade ativa. A solução neoliberal é encerrar outros programas sociais, incorporar esse dinheiro em uma grande conta e efetuar pagamentos em dinheiro a partir daí; isso é inaceitável do ponto de vista socialista porque privatiza os bens sociais. Em vez disso, um mecanismo socialista de pagamentos contaria com pelo menos quatro fontes diferentes:
- Imposto sobre fortunas.
- Aprimorar a jurisdição tributária e desmantelar os paraísos e os abrigos fiscais.
- Aumentar impostos de setores socialmente indesejáveis (armamentos, por exemplo).
- Aumentar os impostos sobre lucros.
Para garantir que o Estado seja capaz de cobrar essa renda, que de outra forma voaria para paraísos fiscais, o Estado precisará iniciar controles de capital. Um esquema de RBU que não seja implantado com um conjunto de medidas para desenvolver a soberania econômica se tornaria simplesmente inexequível e, portanto, visto como um fracasso, porque seria inadequado (se não financiado) ou seria um fardo excessivo para o orçamento existente (se não houver novos impostos).
O choque do Corona exacerbou o problema do desemprego, a precariedade e a fome. O que antes era considerado como uma solução para a crise normal do desemprego no capitalismo – a RBU – agora se tornou uma medida para a crise emergencial ocasionada pela doença. Mais uma vez, os neoliberais e a extrema direita estão felizes com um pagamento único em dinheiro para amenizar a bronca entre os precarizados e os desempregados e para fornecer dinheiro e criar demanda para empresas paralisadas; há pouco apetite por um programa de RBU genuíno que daria mais segurança para a classe trabalhadora.
Certamente, em muitas partes do mundo, existe um grave perigo de que a crise do desemprego se torne imediatamente uma crise de miséria e fome. As medidas de emergência são essenciais, incluindo transferências de dinheiro e distribuição pública de alimentos; em tempos de emergência, todas as medidas devem ser utilizadas para evitar sofrimento evitável.