Dossiê nº29
O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948) oferece uma visão ampla do que é ser um ser humano. Este, observa, tem “o direito a um nível de vida capaz de lhe assegurar (…) saúde e bem-estar”. Isso inclui “alimentação, vestuário, habitação, assistência médica e serviços sociais indispensáveis”. Os seres humanos também têm o “direito à segurança em caso de desemprego”, ou “outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”, o que significa que têm o direito de receber compensações nesses casos.
Poucas pessoas no mundo puderam ver estas palavras se tornarem realidade. O que os movimentos operários e anticoloniais conseguiram conquistar nos últimos cem anos tem sido destruído por um regime de austeridade que corta recursos públicos destinados à saúde e ao bem-estar e os fornece para o lucro do setor privado, transformando os direitos humanos em mercadorias que passam a estar fora do alcance daqueles sem renda suficiente.
Durante a pandemia, tem se falado muito sobre trabalhadores essenciais e reformas que aumentem o salário, diminuem a jornada e melhorem as condições de trabalho destes setores. Mas, como em crises anteriores, tudo isso provavelmente será esquecido quando este período terminar. Os governos burgueses não são capazes de tornar estas reformas permanentes ou de recompensar permanentemente os trabalhadores da área de saúde em uma situação “normal”. As classes dominantes em todo o mundo punem qualquer governo que ouse ter uma pequena dose de humanidade porque – eles argumentam – esses gastos sociais criam um “risco moral” e direitos permanentes a qualquer trabalhador e criam um mau exemplo para outros setores.
Neste dossiê n. 29, argumentamos contra o retorno à normalidade – especificamente em relação aos sistemas de saúde da ordem burguesa. Na Parte 1, examinamos o que a pandemia nos mostrou sobre o sistema de saúde; na segunda parte, damos voz às lideranças dos profissionais de saúde; na última parte, traçamos uma agenda para um novo pacto da saúde com base nas demandas dos trabalhadores e trabalhadoras da área.
Parte 1: o que o capitalismo fez com nossos sistemas de saúde
Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Alto Comissariado em Emprego em Saúde e Crescimento Econômico criado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas analisaram cuidadosamente o setor de saúde global e concluíram que “negócios, como sempre, são insustentáveis”. Um forte posicionamento. A epidemia de Ebola em 2014-2015 na África Ocidental estava fresca na mente dos membros do Comissariado; ao analisá-la, observaram no relatório final: “vimos como a inação e o subinvestimento crônico podem comprometer a saúde humana e também levar a sérios retrocessos econômicos e sociais. Investir nos trabalhadores da saúde é uma parte de um objetivo mais amplo de fortalecimento dos sistemas de saúde e de proteção social e constitui essencialmente a primeira linha de ação contra as crises sanitárias internacionais”. Em 2030, escreveram os comissários, o mundo precisará de pelo menos mais 40 milhões de trabalhadores da saúde e de serviço social; a projeção deles considerava um déficit de pelo menos 18 milhões de trabalhadores da saúde – a maior parte nos países mais pobres. Isso anos antes do coronavírus ter, rapidamente, se espalhado pelo mundo.
Em fevereiro de 2018, um grupo de 30 microbiologistas, zoólogos e especialistas em saúde pública se reuniram na sede da OMS, em Genebra. Eles criaram uma lista prioritária de vírus perigosos, particularmente aqueles contra os quais não havia vacinas; a lista final continha SARS, MERS e uma chamada Doença X. Peter Daszak, presidente do Fórum de Ameaças Microbianas das Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina, que estava na reunião, disse recentemente que a covid-19 é semelhante ao que os cientistas entenderam como a Doença X. Falando em prever a covid-19, Daszak disse ao The New York Times: “O problema não é que a prevenção fosse impossível. Foi muito possível. Mas nós não a fizemos. Os governos acharam que era muito caro. As empresas farmacêuticas operam com fins lucrativos”.
Um ano depois, em setembro de 2019, o Conselho de Monitoramento para a Preparação Global – copresidido por Gro Brundtland (ex-diretor geral da OMS) e Elhadj As Sy (chefe da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho) – alertou que “o mundo não está preparado para uma pandemia de um patógeno respiratório virulento e de rápida movimentação”. O relatório foi além:
A pandemia global de influenza de 1918 adoeceu um terço da população mundial e matou cerca de 50 milhões de pessoas – 2,8% da população total. Se um contágio semelhante ocorresse hoje, com uma população quatro vezes maior e tempos de viagem de qualquer lugar a outro do mundo de no máximo 36 horas, 50 a 80 milhões de pessoas poderiam perecer. Além dos níveis trágicos de mortalidade, essa pandemia pode causar pânico, desestabilizar a segurança nacional e impactar seriamente a economia e o comércio global.
O alerta deles não foi levado em conta.
Em 15 de fevereiro de 2020, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez um discurso apaixonado na Conferência de Segurança de Munique. “O mundo opera em um ciclo de pânico e negligência. Colocamos dinheiro em um surto e, quando acaba, o esquecemos e não fazemos nada para impedir o próximo. O mundo gasta bilhões de dólares se preparando para um ataque terrorista, mas relativamente pouco se preparando para o ataque de um vírus, o que poderia ser muito mais mortal e muito mais prejudicial economicamente, politicamente e socialmente”, disse.
Em setembro de 2019, líderes mundiais se reuniram na sede da ONU para assumir a promessa de uma assistência universal à saúde até 2030. Gro Brundtland, que chefiava a OMS, disse que a assistência médica não poderia ser deixada nas mãos do livre mercado, pois assim apenas os ricos teriam acesso à saúde e, devido ao seu custo, deixaria os pobres desassistidos ou endividados. Há uma necessidade urgente de financiamento público. Cortar os recursos para a saúde é um “grande erro”, disse Gro Brundtland na época. O atual chefe da OMS, Tedros, enfatizou que “a saúde é uma escolha política”.
Nos últimos quarenta anos, como o regime de austeridade levou os governos a cortar gastos sociais e na saúde, os sistemas de saúde foram corroídos. O impacto pode ser resumido da seguinte forma:
- Cortes nos gastos em saúde pública.
- Aumento da participação do setor privado nos serviços de saúde.
- Aumento do atendimento médico não regulamentado do tipo pagamento por serviço (fee-for-service).
- Aumento de seguros privados para pagar por serviços médicos.
- Redução de profissionais de saúde, cortes nos salários e aposentadorias e erosão da sindicalização.
- Aumento dos preços dos procedimentos médicos e medicamentos.
Uma análise de 161 relatórios de países do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018-2019 mostra que os governos dos países mais pobres estão sendo pressionados a fazer cortes substanciais no orçamento; uma das áreas atingidas de forma mais significativa é a saúde pública.
O Dr. Bernard Lown, cardiologista que inventou a desfibrilação, lecionou na Escola de Saúde Pública de Harvard e é médico sênior do Hospital Brigham e do Hospital da Mulher, em Boston (EUA), expõe claramente sua visão sobre a privatização da saúde:
A assistência em saúde não se presta às eficiências da industrialização. O senso comum indica que os pacientes não podem ser padronizados e a maioria de suas partes não é intercambiável. Saúde é um serviço personalizado que resiste à mercantilização e é incompatível com a eficiência da linha de montagem industrializada ou outras tecnologias de produção em massa. Tais princípios são ignorados pelos sumos sacerdotes da medicina de mercado. Esta, além disso, é falha porque retira recursos econômicos da comunidade, da educação médica e da pesquisa. Os lucros gerados não são reinvestidos localmente, mas distribuídos a investidores remotos e administradores na forma de grandes dividendos, bônus e salários gordos. O mercado foi apresentado como a solução, mas agora sabemos que é o problema.
Parte 2: o que dizem os profissionais de saúde
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social conversou com quatro lideranças dos movimentos de trabalhadores da saúde nos países em que estamos sediados. Cada uma dessas pessoas fala de um diferente nível de luta, nos dando uma perspectiva sobre os níveis de desafios que os trabalhadores da saúde enfrentam.
Argentina
Entender a situação da Argentina sem considerar a intervenção do Banco Mundial na América do Sul seria inadequado. Em 1993, o Banco Mundial concentrou seu Relatório Mundial de Desenvolvimento na questão da saúde pública. Embora reivindicasse abertamente um aumento nos gastos governamentais em saúde, deu relevo ao que chamou de “promoção da diversidade e da concorrência”. Por “diversidade” e “concorrência”, o banco quis dizer que a assistência à saúde deveria ser diversificada pelo aumento do setor com fins lucrativos, o que proporcionaria competição contra o setor público. Em vez de cobertura universal de saúde, o banco incentivava a criação de sistemas de seguro saúde privados, o surgimento de serviços médicos com fins lucrativos e o fim das proteções para as empresas farmacêuticas domésticas.
Viviana Garcia, dirigente da Federação Sindical dos Profissionais da Saúde da República Argentina (Fesprosa, sigla em espanhol), nos conta que o impacto da política do Banco Mundial atingiu em cheio a maioria dos países da América do Sul. Ela dá os exemplos do Chile, Colômbia, Peru e Equador, que viram o aumento de parcerias público-privadas na saúde, a entrada de sistemas de convênios e seguro saúde com fins lucrativos e a mercantilização geral dos serviços de saúde. Nesses países, a pandemia de Covid-19 torna mais visível o desastre causado pela destruição dos sistemas públicos de saúde. O sistema equatoriano entrou em colapso total, com corpos de vítimas fatais da Covid-19 se acumulando nas ruas.
Na Argentina, a Constituição Nacional de 1994 estabeleceu que a saúde é um direito essencial. Em 1946, o país desenvolveu um sistema inspirado no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. Desde então, houve várias tentativas de reformá-lo, particularmente nas décadas de 1970 e 1980. O sistema hoje é misto, com um setor público (acessível a todos), um setor vinculado aos sindicatos (chamado de “obras sociales”) e um setor privado (usado predominantemente pelos ricos). Apesar de sua fragmentação, o sistema misto atende quase toda a população.
A pressão após o relatório do Banco Mundial de 1993 levou o governo a sucatear as instituições públicas, o que se fez notar com a criação de hospitais autogeridos que dependem de financiamento privado e da privatização de serviços, bem como a criação de uma força de trabalho precarizada. O novo plano descentralizou a assistência médica para as províncias e municípios, mas sem um mecanismo de financiamento adequado. Na prática, isso significa que nessas esferas a assistência médica passou a depender de fundos privados, gerando um sistema desigual.
Os modelos chileno e colombiano altamente privatizados e desiguais não puderam ser aplicados na Argentina graças à ação decisiva dos trabalhadores organizados. Foi por causa dos sindicatos e do surgimento de governos progressistas de 2003 a 2015 que importantes avanços foram feitos na defesa do direito do povo à saúde e dos direitos dos trabalhadores da saúde. Foi concedido, por exemplo, um subsídio universal para famílias com crianças, foram desenvolvidos programas voltados à saúde sexual e reprodutiva, um plano nacional de vacinação, foi garantida a segurança laboral para os 26 mil profissionais de saúde do país e foi aberto um caminho para a melhoria de suas condições de trabalho. Mesmo sendo reformas importantes, foram insuficientes para responder às necessidades coletivas de uma sociedade segmentada e desigual produzida pelas políticas neoliberais da década de 1990
O governo de Mauricio Macri (2015-2019) girou o pêndulo político para a direita, levando a saúde a um limite insustentável. O orçamento de 2016 para a pasta subfinanciava enormemente o trabalho de assistência médica durante uma epidemia de dengue letal, e o governo cortou ainda mais o orçamento em 2017 e 2018. Durante o mandato de Macri, de acordo com o Ministério da Economia, o governo cortou em 22% o orçamento de saúde. Em 1990, este correspondia a 10% do PIB; em 2015, ano em que Macri assumiu, era de 9,6%; quando deixou o cargo, havia caído para 8% do PIB, calcula a OMS.
O governo Macri cortou o orçamento de programas voltados para combate e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis (o que gerou um aumento dramático da sífilis congênita e HIV-AIDS), doenças transmitidas por vetores (dengue, chikungunya e zika) e doenças evitáveis por vacinas (doses foram descontinuadas no programa nacional); o governo também fez cortes em programas de tratamento de câncer. Macri pediu um empréstimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI), cujos juros sozinhos poderiam ter financiado 3.200 hospitais modernos. O trabalho em quatro hospitais da periferia de Buenos Aires teve que ser suspenso. Durante os anos Macri, o sistema médico na Argentina viu também um aumento no trabalho informal, a destruição de serviços hospitalares, a falta de recursos para equipamentos, cortes de salários e demissões de 1.600 trabalhadores do icônico Hospital Nacional Posadas.
O atual governo progressista, liderado pelo presidente Alberto Fernández, assumiu o comando do país em dezembro de 2019, pouco antes da pandemia invadir a América do Sul. Um dos primeiros atos do novo governo foi restaurar a plena estatura do Ministério da Saúde, ainda que seja necessário tempo para o governo e os sindicatos recuperarem a devastação deixada por Macri.
Índia
Se não fosse pelos 900 mil trabalhadores da Ativistas Sociais de Saúde Credenciados (Accredited Social Health Activist – ASHA), a resposta da Índia ao coronavírus seria muito menos robusta. Essas trabalhadoras – majoritariamente mulheres e com uma função semelhante à dos agentes comunitários de saúde – não receberam equipamentos de proteção individual (EPI) e trabalham por uma modesta remuneração – até recentemente de 1.000 a 1.500 rúpias por mês (aproximadamente 13 a 20 dólares) pagos apenas uma vez ao ano ou a cada dois anos. Elas vão de casa em casa em todo o país para fazer visitas, entregar remédios, examinar e realizar os cuidados médicos básicos. Elas se tornaram as pessoas mais importantes na luta contra a Covid-19 na Índia. No entanto, há registros de agressões contra esses profissionais pela polícia e ameaças em suas comunidades – incluindo dentro de casa, por parte de seus próprios maridos. As autoridades, em vez de garantir proteção adequada, lhes ordenou que fizessem seus próprios EPI, e assim se viram obrigadas a improvisar sua própria proteção.
Estudos de surtos epidêmicos mostram que os agentes comunitários de saúde, como é o caso das trabalhadoras da ASHA, são essenciais para rastrear o padrão da infecção e para transmitir informações sobre como quebrar a cadeia de infecção. Cada trabalhadora da ASHA deve cobrir trinta famílias em sua área no período de uma semana, mantendo contato constante com as pessoas para monitorar a propagação da doença. No entanto, na Índia, essas trabalhadoras não são tratadas como tal, mas como “voluntárias” e são rotineiramente desrespeitadas. Em 18 de abril, realizaram um protesto simbólico: amarraram uma fita ou um lenço preto (chunni) para indicar sua insatisfação com a falta de apoio do governo.
Surekha Rani, Secretária Geral do Sindicato dos Trabalhadores da ASHA (afiliada a Central de Sindicatos da Índia – CITU, sigla em inglês) no estado indiano de Haryana (26 milhões de habitantes), nos falou sobre as lutas dessas trabalhadoras. O programa em que trabalham foi criado pela Missão Nacional de Saúde Rural em 2005; o sindicato em Haryana foi formado em 2009. Atualmente, existem 20 mil trabalhadoras no estado, 15 mil sindicalizadas e mais 3 mil ativas no movimento das trabalhadoras contra o governo. A organização surgiu pela primeira vez durante a luta para que as trabalhadoras da ASHA fossem reconhecidas como tal – e não como voluntárias – e recebessem um salário mínimo, seguridade social e outros benefícios. Essas trabalhadoras realizam pelo menos quarenta tarefas diferentes – como atendimento pré-natal e imunização para crianças – em nome do departamento de saúde.
Em 2013, o sindicato iniciou uma mobilização para garantir que as trabalhadoras fossem pagas regularmente. Quatorze mil trabalhadoras saíram às ruas. Em resposta, oo ministro chefe de Haryana, Bhupinder Singh Hooda, disse que uma das integrantes da CITU deveria ser queimada até a morte. Depois disse que não podia concordar com as exigências do sindicato porque estava passando fome, e então o sindicato coletou farinha de trigo nas casas de cada integrante da ASHA. “Fizemos um pacote com essa farinha e a enviamos ao ministro-chefe”, disse Surekha Rani. “Isso o envergonhou, nos chamou em sua casa, pediu desculpas e concordou em aumentar os incentivos e o salário”. Foi um começo, mas “insuficiente”, nos contou Surekha Rani.
Em 2015-2016, o governo disse que as trabalhadoras da ASHA deveriam registrar seu trabalho digitalmente, mas – como Surekha Rani explicou – “não forneceu nenhum dispositivo, tampouco nos treinou em relação ao uso do software para atualizar informação”.
Em 2017, se iniciou uma mobilização na Índia, à qual o sindicato de Haryana se uniu, mantendo-se em greve por tempo indeterminado. Nesse período, o sindicato negociou com o governo estadual em cinco ocasiões; em 2 de fevereiro, concordou em pagar às trabalhadoras um salário mensal de 4 mil rúpias – o dobro do que estavam recebendo – mais incentivos do governo federal; também concordaram em dar seguro de vida às trabalhadoras para que, em caso de morte, suas famílias recebessem 300 mil rúpias. Para facilitar sua própria política de digitalização, o governo forneceu um celular Android para cada uma. Mas, “fiel à sua natureza”, disse Surekha Rani, “o governo voltou atrás em suas promessas”. As trabalhadoras se manifestaram de março a junho de 2018 e, como as promessas não se efetivaram, as trabalhadoras iniciaram uma greve por tempo indeterminado a partir de 7 de junho. A greve durou oito dias. Quando o sindicato ameaçou intensificar as manifestações, o governo disse que implementaria o acordo e forneceu uma garantia por escrito. A greve terminou dia 15 de junho.
Mais uma vez, o governo voltou atrás no acordo. Quando o sindicato descobriu que o ministro-chefe de Haryana na época, Manohar Lal Khattar, estaria em uma reunião em Karnal (Haryana), as membras do sindicato montaram um acampamento e realizaram um protesto por tempo indeterminado. Khattar se reuniu com o sindicato e disse que as demandas haviam sido aceitas e que o departamento financeiro em breve emitiria uma notificação. “Dissemos ao ministro-chefe que até que a notificação chegasse, protestaríamos na sede do distrito”, relata Surekha Rani. E assim o fizeram. Os funcionários no governo depreciavam as trabalhadoras, fazendo comentários machistas sobre a determinação delas em receber seus salários. Mas elas não se intimidam. “Protestamos a cada dois meses exigindo a liberação de nossos salários. Somos conhecidas como uma força [ladaku] de combate”, conta Surekha Rani.
A luta das trabalhadoras da ASHA inspirou outras em Haryana. Os trabalhadores Anganwadi (creches) iniciaram suas próprias greves – assim como os servidores municipais e os trabalhadores de transporte público. O ministro-chefe acusou os grevistas de serem comunistas e bandidos [badmash]. “Criamos uma palavra de ordem para combatê-lo”, disse Surekha Rani. “Se lutar por nossos direitos, pedir emprego e alimentação são obras de bandidos, então essa nossa famosa bandeira vermelha é carregada por bandidos e continuaremos sendo bandidos”. O ministro chefe foi forçado a pedir desculpas.
Hoje, diante da pandemia que se espalha rapidamente, “as trabalhadoras da ASHA estão tristes e desmoralizadas”, disse Surekha Rani. “Elas acreditam que somos as responsáveis por quebrar a cadeia de infecção e, no entanto, os funcionários do governo não estão ouvindo nossos problemas”.
África do Sul
Em 22 de abril, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, anunciou um pacote de estímulos de 500 bilhões de rands. Surpreendentemente, esse pacote não fornecia recursos para os profissionais de saúde que estão na linha de frente na luta para conter a covid-19. Lerato Madumo, presidente do Sindicato Indaba de Jovens Enfermeiras (YNITU, sigla em inglês), filiado à Federação Sindical da África do Sul (SAFTU, sigla em inglês), disse que essa atitude estimulou seu sindicato a iniciar uma campanha pedindo para que as enfermeiras ficassem em casa. O YNITU havia planejado ações para o 1º de maio, mas as cancelaram um dia antes e convocaram uma coletiva de imprensa. Escreveram ao presidente pedindo atenção urgente para os profissionais de saúde; se suas reivindicações por compensações e condições seguras de trabalho não forem atendidas, “não teremos outra opção a não ser cruzar os braços e ficar em casa”.
Kits de teste e EPI não estão disponíveis de maneira suficiente. Testagem dos profissionais da linha de frente é essencial e ainda assim não está acontecendo na quantidade desejada, diz Madumo. “Se uma enfermeira contrai o vírus, todas enfermeiras que compartilham daquele turno acabam contraindo covid-19”, relata. O sindicato dos médicos, a Associação Médica da África do Sul, disse que a qualidade do EPI fornecido é tão ruim que, quando um médico caminha, a vestimenta rasga. No Hospital Chris Hani Baragwanath, em Joanesburgo, as enfermeiras tiveram que vir trabalhar com capas de chuva que compraram e que tiveram que desinfetar; tudo isso em vez de EPI adequado. O dinheiro para esse EPI improvisado vem das enfermeiras, que recebem salários baixíssimos. Seja qual for o EPI que está sendo fornecido pelo governo, ele parece não ter chegado às enfermeiras.
O presidente respondeu às reivindicações do sindicato com a declaração de que fazer greve seria crime segundo a Lei de Gerenciamento de Desastres (2002). Madumo nos disse que a Lei de Segurança e Saúde Ocupacional (1993) deixa claro que “se você acredita que o ambiente em que trabalha é inseguro, tem o direito de se retirar. Portanto, não se trata de um ato criminoso, mas de dizermos que nosso governo é que está cometendo um crime contra a humanidade. Enfermeiras são seres humanos. Você não pode pedir a um soldado para lutar em uma guerra e não dar proteção a ele como coletes à prova de balas; simplesmente não está correto. Se a linha de frente continuar doente significa que, no final da pandemia, teremos um sistema de saúde que sequer terá trabalhadores da saúde”, observa Madumo.
“Antes mesmo de entrarmos na pandemia”, conta Madumo, “nosso sistema de saúde já estava doente. No topo da lista estava a escassez de enfermeiros. Entramos nessa pandemia com uma equipe de enfermagem exígua”. Na África do Sul, 84% da população é atendida pelo setor público e, no entanto, o setor privado – que atende apenas os 16% restantes – contrata 60% destes profissionais; existe uma falta de pessoal estrutural no sistema público de saúde. O sindicato realizou uma pesquisa que mostra que existem enfermeiros qualificados e desempregados. Como o governo se recusa a contratá-los, os que estão empregados trabalham mais do que é saudável. “Os enfermeiros – além de contrair o coronavírus – estão ficando emocional e psicologicamente destroçados; não há outra palavra para usar”, relata Madumo.
O nível de atrito entre os enfermeiros e outros integrantes das equipes médicas é extremamente alto e muitas vezes está relacionado ao excesso de trabalho, sofrimento emocional, insatisfação e exaustão. Gerentes de hospitais obtém sua autoridade à custa de médicos e enfermeiros; eles administram os hospitais como um negócio e contratam agências de enfermagem que exploram o trabalho de enfermeiros. Madumo sugere que essas agências são perigosas porque enviam profissionais de um hospital para outro, e se estes contraírem a doença – e não forem testados –, poderão transmitir a doença entre hospitais. “Torna-se muito difícil controlar as infecções”, diz.
Os enfermeiros têm exigido que, em vez de todos os hospitais terem enfermarias de covid-19, que alguns hospitais sejam designados para tratar pacientes com a doença. “Vamos escolher um hospital que admita todos os casos suspeitos e infectados; então a equipe deve entrar em um sistema de rodízio, uma lista que permitirá que eles sejam acomodados nessa instalação”, propõe Madumo. Nesse hospital, os enfermeiros e médicos devem receber o equipamento adequado e serem testados regularmente. Os profissionais da linha de frente em geral têm conhecimento em primeira mão do tratamento de uma doença, mas a classe política não leva a sério suas propostas.
Atualmente, o YNITU está em campanha por equipamentos de proteção individual adequados para todos os profissionais de saúde e para que os enfermeiros que entram em contato com uma pessoa com covid-19-19 sejam testados e isolados por 14 dias. Embora o governo esteja testando atualmente enfermeiras que tiveram expostas ao covid-19, a determinação é que continuem trabalhando até receberem os resultados – o que pode colocar outras pessoas em risco.
Por fim, Madumo nos disse que seu sindicato, YNITU, argumenta que essa pandemia evidencia por que a saúde deveria ser nacionalizada. Cada distrito, cada província, faz o que quer, comenta. “A nacionalização garantirá que todas as instalações fiquem sob o olhar de águia do nosso departamento nacional de saúde. Consideramos que não podemos permitir que o setor privado faça o que bem entender, como faz há anos. O foco deles é obter lucro: eles insistem que suas enfermeiras usem uma máscara por cinco dias”, ela disse, mesmo quando a indicação é que seja usada por muito menos tempo. Embora as máscaras devam ser descartadas após o tratamento de cada paciente, a orientação é que as reciclem, colocando a si e a seus pacientes em maior risco.
Brasil
O Brasil possui um dos mais fortes sistemas universais de saúde do mundo, resultado de lutas sociais e populares. Após mais de 20 anos de ditadura, a Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu as bases para o Sistema Único de Saúde (SUS), um sistema universal, gratuito e que abrange todo o país. O SUS inclui programas de vigilância sanitária, imunização, controle do HIV-AIDS, atendimento por meio do Programa de Saúde da Família e uma variedade de outras intervenções médicas cruciais. No entanto, os governos de direita e os neofascistas vêm atacando sistematicamente seu sistema de saúde nos últimos anos. A Emenda Constitucional 95 (2016) – o ano do “golpe brando” que derrubou Dilma Rousseff e recolocou a direita no poder – forçou uma política de austeridade que congela os gastos públicos por 20 anos. Esse mecanismo aprofundou o subfinanciamento do sistema de saúde, tornando-o ainda mais vulnerável diante da pandemia.
Hugo Bethsaida Leme, médico de família e comunidade que trabalha em uma Unidade Básica de Saúde pública de Londrina (Paraná) e membro da Rede Nacional de Médicos Populares, falou conosco sobre o impacto da Covid-19 no Brasil. Segundo Leme, o SUS tem sido “historicamente estrangulado devido ao subfinanciamento (aproximadamente 4% do PIB), um processo que se aprofundou após o golpe de 2016”. Essa falta de recursos aliada à saída dos médicos cubanos, já no governo Bolsonaro, fez com que “muitas comunidades ficassem sem acesso ao Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB), o que gera uma sobrecarga em atendimento de urgência e emergência de casos que poderiam ter sido atendidos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS)”.
O SUS é um sistema cuidadosamente elaborado e, se adequadamente financiado e gerenciado, certamente seria capaz de lidar com a pandemia global. No entanto, tem recursos insuficientes e, por vezes, estes também são distribuídos de forma desigual, já que a maioria das unidades de terapia intensiva e médicos intensivistas estão localizados no eixo sul-sudeste do país.
Ao problema de subfinanciamento crônico se soma o apoio governamental dado ao setor privado. Metade dos leitos de UTI estão em hospitais da rede particular, que alcança apenas um quarto da população. Esse setor, afirma Hugo, “suga recursos do SUS e tem sido cada vez mais priorizado em detrimento da saúde pública”. O setor privado “sempre foi parasitário em relação ao SUS; está comprometido apenas com seus acionistas, enquanto a maioria da população continua a depender exclusivamente do sistema público”, complementa o médico. Para enfrentar essas desigualdades, foi iniciada a Campanha Leitos para Todos no contexto da pandemia; esta campanha busca reunir todos os leitos hospitalares (públicos e privados) para atender a essa demanda de forma a não esgotar os hospitais do setor público e encaminhar pacientes para o setor privado.
O grande obstáculo dos profissionais da saúde tem sido enfrentar a insensível atitude anticientífica dos neofascistas, cujo maior expoente é o próprio presidente Jair Bolsonaro. “O governo federal neofascista fez um desserviço ignorando a gravidade da situação, convocando os trabalhadores da linha de frente a morrerem e/ou matando pessoas com fatores de risco [que são forçados] a voltar ao trabalho para beneficiar os interesses econômicos dos poucos”, lamenta Hugo.
O Brasil não tem feito testes suficientes, o que obviamente significa que os casos confirmados de Covid-19 possuem alta taxa de subnotificação, o que “gera confusão entre o povo em relação à gravidade da doença e [diminui a] adesão às medidas para romper a cadeia”. A testagem baixa significa que os trabalhadores da saúde “trabalham frequentemente no escuro, sem ter uma dimensão real da situação, incluindo se estão contaminados ou não”, disse Hugo. Em suma, não há EPI e equipamento médico suficiente e qualquer ação científica do governo.
Hugo insiste que a questão médica não deve ser reduzida à própria doença. A saúde, diz ele, deve ser vista em um sentido amplo e social. Devido ao grande número de trabalhadores desempregados e informais e à ausência de direitos trabalhistas e políticas sociais, houve um aumento da fome que enfraquece o corpo o deixa mais vulnerável a doenças. Como consequência do patriarcado arraigado, também houve um aumento nas taxas de violência contra as mulheres durante o isolamento. Aqueles com doenças crônicas – como hipertensão e diabetes – não podem consultar médicos durante a quarentena e, portanto, correm o risco de deteriorar sua saúde.
Tanto para Hugo como para Teodros, a saúde é uma questão política. “É urgente”, diz Hugo, “lutar por um governo soberano, democrático e popular que reconstrua o SUS com fundos adequados para que possa oferecer os serviços necessários e adequados ao povo” – apesar das mensagens propagadas pela mídia corporativa, “que desmoraliza o sistema público de saúde e elogia o setor privado”. Esse governo precisa melhorar as condições sociais de seu povo e defender os direitos dos trabalhadores. Somente então a sociedade “se desenvolverá de maneira digna, humana e saudável, para que, se surgir uma nova situação como essa, possamos estar mais preparados e sempre colocar a vida, os direitos e o bem-estar de nosso povo como prioridade. O SUS deve ser uma parte permanente da luta pelo nosso povo”, finaliza Hugo
Parte 3: O que os profissionais de saúde querem
O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social estudou as reivindicações dos sindicatos dos trabalhadores da saúde em todo o mundo e, com base nelas, construiu uma lista. A maior parte dos sindicatos tem demandas muito amplas que vão muito além das de sua própria categoria. Isso inclui uma transformação social e econômica mais ampla, que fornece uma nova base para a vida social e minimiza os riscos à saúde produzidos pelas relações sociais capitalistas. Por exemplo, a abolição da condição de sem-teto (e não de pessoas sem-teto, como fazem os governos neoliberais) ajudaria as pessoas a praticar o distanciamento social, mas também melhoraria as condições de saúde daqueles que são forçados – pela falta de dinheiro – a viver nas ruas.
- Priorizar imediatamente a capacidade de todos os serviços de saúde – públicos e privados – no tratamento de casos graves de Covid-19.
- Prestar assistência especial a regiões e comunidades severamente afetadas pela pandemia.
- Aplicar políticas como o isolamento para conter a propagação do vírus; instituir os subsídios e as políticas necessárias para permitir que os trabalhadores obedeçam à quarentena sem passar fome – incluindo trabalhadores informais – como programas de renda mínima, renda social, seguro-desemprego (mesmo para não-contribuintes) e permitir acesso emergencial a propriedades ociosas para fornecer moradia aqueles que precisam.
- Proteger os trabalhadores, fornecendo EPIs e máscaras de alta qualidade, além de outros equipamentos necessários. Os trabalhadores da linha de frente devem ser adequadamente treinados para enfrentar a doença.
- Garantir cartões de identificação adequados para os profissionais de saúde da linha de frente, para que possam realizar seus trabalhos essenciais de saúde sem enfrentar multas, violência ou outras punições por parte do Estado sob isolamento e quarentena.
- Aumentar substancialmente os testes Covid-19 para profissionais de saúde.
- Aumentar o equipamento em hospitais e centros médicos, incluindo respiradores e leitos da unidade de terapia intensiva.
- Reconhecimento do direito dos trabalhadores de se retirar do trabalho se assim decidirem devido a um risco iminente à sua saúde ou vida (com base nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho 155 e 187).
- Desembolso imediato de fundos para a criação de escolas de treinamento para profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros e profissionais de saúde pública.
- Aumento dos salários dos profissionais de saúde, que devem ser pagos com regularidade.
- Os profissionais de saúde devem ter acesso aos melhores tratamentos, caso adoeçam, e seguros de vida, caso venham a falecer por conta da doença. Todos devem ter assistência médica gratuita e universal garantida.
- Garantir a inclusão dos sindicatos dos trabalhadores da saúde em comitês que formulam políticas para o setor da saúde em geral e para a crise da Covid-19 em particular, e que tenham voz para ajudar a determinar tais políticas.
- Destinar imediatamente recursos significativos para a expansão dos programas de saúde pública, incluindo a atenção primária, e fim das políticas de austeridade.
- Transferência de todo o setor da saúde – de hospitais para clínicas rurais, de fabricantes de equipamentos médicos até fabricantes de produtos farmacêuticos – para o setor público.
- Entrega imediata de recursos adequados para pesquisas relacionadas a esse vírus e a vírus semelhantes.
- Garantir que as medidas alcançadas no período da epidemia sejam mantidas após sua resolução.