A usina siderúrgica do povo e a luta contra a privatização em Visakhapatnam

Dossiê n. 55

 

A história da Usina Siderúrgica de Visakhapatnam não é apenas uma história sobre seus trabalhadores. Suas resistências, aspirações e vitórias fazem parte de um quadro mais amplo que se entrelaça com as lutas pela defesa do setor público, os conflitos com o neoliberalismo e a luta pela realização de um projeto nacional de modernização. Cada colagem deste dossiê combina elementos de três perspectivas diferentes: o interior da planta siderúrgica, a partir de fotografias tiradas pelos próprios trabalhadores; mobilizações de rua que envolvem crianças, idosos e amplos setores da sociedade; e imagens históricas e contextuais que refletem o contexto mais amplo dessa luta. Lida em conjunto, a obra destaca a natureza interconectada e intergeracional da luta de Visakhapatnam, levando-nos do chão de fábrica para as ruas, da Índia para o mundo.

As fotografias apresentadas neste dossiê foram fornecidas por Kunchem Rajesh, do jornal Prajasakti, com sede em Andhra Pradesh, bem como por trabalhadores da usina siderúrgica de Visakhapatnam e transformadas em colagens pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

 

A usina siderúrgica do povo e a luta contra a privatização em Visakhapatnam

 Quando a tempestade neoliberal varreu a Índia há três décadas, o setor industrial público do país foi o primeiro a sofrer um impacto frontal. Para aqueles que desencadearam a tempestade – uma aliança entre o capital internacional e o grande capital indiano –, as empresas estatais representavam um suculento buffet de ativos e recursos a serem engolidos. Havia centenas de empresas do setor público que poderiam ser privatizadas para alimentar a fome de ativos do grande capital; essas empresas incluíam portos, indústrias de transporte e construção naval, aeroportos, companhias aéreas, ferrovias, indústrias de extração de petróleo e gás, refinarias petroquímicas, rede de telecomunicações, rede ferroviária nacional, indústrias de máquinas pesadas e equipamentos elétricos, hotéis, geração e distribuição de energia, grandes seguradoras, uma enorme rede de bancos públicos e, por último, mas não menos importante, usinas siderúrgicas.

Durante esses trinta anos de neoliberalismo, o Estado indiano, a mando do grande capital, tem lançado uma ofensiva persistente e perniciosa para minar as empresas do setor público. No entanto, essa ofensiva não tem sido tão tranquila ou frutífera como o campo neoliberal desejaria, já que a classe trabalhadora sindicalizada tem lutado com unhas e dentes contra cada movimento em direção a privatizações, seja ela grande ou pequena, colecionando muito mais êxitos que fracassos. Embora o governo indiano tenha privatizado ou fechado dezenas de empresas do setor público, muitas outras – particularmente as maiores, como as siderúrgicas – permanecem no setor público como resultado da resistência dos trabalhadores. Essa luta entre a classe trabalhadora indiana e o grande capital, mediada pelo Estado, é um relato ilustrativo da luta contra o neoliberalismo – uma luta cujos êxitos raramente são contados.

A história da usina siderúrgica Visakhapatnam é um exemplo importante dessa luta obstinada. Localizada na costa da Baía de Bengala, na cidade portuária de Visakhapatnam, no sudeste do estado indiano de Andhra Pradesh, a Visakha Steel, como a planta é carinhosamente chamada pelo povo do estado, ou Rashtriya Ispat Nigam Limited (RINL), como foi oficialmente batizada pelo governo indiano, traz orgulho à paisagem industrial do estado. A história de nascimento da Visakha Steel é em si uma ilustração das raízes profundas da indústria do setor público na sociedade indiana e das razões para sua sobrevivência.

Essa única usina siderúrgica, que nasceu da vontade popular, em 1982, sobreviveu a múltiplas tentativas de privatização e prosperou diante de muitos desafios. Com base na situação política e econômica em diferentes momentos, os governos têm buscado várias vias para privatizar a usina: quando ela está vulnerável, tentam empurrar o desinvestimento, a privatização de departamentos individuais e a venda de ativos; quando a planta está indo bem, seus métodos incluem desvio de recursos, sabotagem política, negar permissões e atrasar decisões vitais de negócios. Todas essas tentativas foram duramente derrotadas pelos trabalhadores da usina ao lado de movimentos aliados e pessoas da região que lutaram pela usina siderúrgica.

 

 

Aspirações para a usina siderúrgica do povo

Depois de ser brutalmente explorada e despojada de suas riquezas, recursos e vigor por dois séculos, a Índia se libertou do jugo colonial britânico e declarou independência em 1947. A rápida modernização e a industrialização estavam entre as principais agendas antes do Estado recém-formado. Embora tolhida pelo subdesenvolvimento, pobreza generalizada, uma situação cambial apertada e atraso tecnológico, a Índia iniciou um ambicioso projeto de industrialização, com o Estado indiano montando as indústrias pesadas e de desenvolvimento a longo prazo necessárias para a modernização e expansão da economia. Com a ajuda da União Soviética e de outros países, o Estado indiano montou usinas siderúrgicas, refinarias de petróleo, minas, usinas e indústrias que produzem equipamentos de engenharia pesada, equipamentos elétricos, equipamentos de defesa e produtos farmacêuticos. Quase todas essas indústrias foram criadas como empresas do setor público.

Entre esses projetos, a criação de usinas siderúrgicas foi um marco crucial no desenvolvimento econômico da Índia. A autossuficiência na produção de aço foi central para o projeto de modernização do país, já que o aço era vital na construção da grande rede ferroviária, bem como no desenvolvimento de portos, construção de indústria pesada e de grandes projetos de irrigação que levam água do canal a milhões de hectares de terras áridas. Para os indianos, o aço – uma liga de ferro com um pouco de carbono – tornou-se muito mais que isso, e as usinas siderúrgicas tornaram-se emblemas das aspirações por independência da Índia.

As usinas siderúrgicas que foram construídas nos cinturões ricos em ferro do norte e leste da Índia eram vistas com inveja e aspiração pelo povo do sul. A seus olhos, as enormes usinas siderúrgicas do setor público, criadas em milhares de acres de terra e produtoras de milhões de toneladas de aço para forjar uma Nova Índia, não eram menos que templos. O emprego considerável gerado por elas e as indústrias auxiliares que surgiram ao redor eram altamente desejáveis, levando o povo de Andhra Pradesh a almejar sua própria usina siderúrgica.

Em 1965, o governo indiano, liderado pelo então primeiro-ministro Lal Bahadur Shastri, anunciou a intenção de criar a primeira usina siderúrgica na costa da Índia, em Visakhapatnam, por recomendação do Consórcio Anglo-Americano, que foi contratado para selecionar um local adequado para uma usina siderúrgica no sul do país. Isso se tornou motivo de júbilo em Andhra Pradesh, particularmente para os jovens, que aspiravam a empregos modernos e industriais.

Embora seja uma cidade portuária movimentada, Visakhapatnam está localizada em uma das regiões mais subdesenvolvidas e pobres do país. Na época, a região norte de Andhra Pradesh em torno de Visakhapatnam era predominantemente pobre, com uma grande população de tribos florestais. A região estava tomada pela fome, doenças e desnutrição, e milhares eram frequentemente dizimados por febres epidêmicas. A indústria existente em Visakhapatnam – algumas do setores públicos, mas a maioria sendo do  setor privado – era insuficiente para tirar as pessoas da pobreza. Uma usina siderúrgica integrada significaria uma reserva de empregos e uma perspectiva de desenvolvimento muito maior. Isso foi motivo para o povo da região se alegrar.

No entanto, o júbilo logo se transformou em decepção e indignação quando a então primeira-ministra Indira Gandhi recuou na promessa de montar a usina siderúrgica, em 1966, alegando escassez de recursos. Com uma alternância de posições e promessas de mudança, o governo central tentou desencadear uma disputa entre os estados do sul da Índia por uma usina siderúrgica. Insatisfeitos com o que eles sentiam como discriminação e negligência do sul, o povo de Andhra Pradesh reagiu com raiva e lançou uma batalha pela usina siderúrgica.

 

 

Visakha Ukku, Andhrula Hakku

“Visakha Steel é direito do povo de Andhra”

Mesmo antes de sua luta pela usina siderúrgica, o povo de Andhra Pradesh tinha um histórico de liderança em movimentos políticos pela modernização, como sua luta bem sucedida pela represa Nagarjuna Sagar, construída no rio Krishna em 1955. Tendo testemunhado a transformação que as águas de irrigação da represa trouxeram para os vilarejos rio abaixo, as esperanças do povo por uma usina siderúrgica não eram menores. Uma vez mais, eles começaram a lutar por esse novo projeto.

Em 1966, estudantes da Universidade de Andhra, Andhra Medical College, e outras faculdades e escolas de ensino médio em Visakhapatnam foram às ruas em protesto para exigir que uma usina de aço fosse construída na cidade e para apoiar uma greve de fome indefinida feita pelo proeminente líder telugu T. Amrutha Rao, voltada para o mesmo objetivo, desencadeando um movimento mais amplo. Muito rapidamente, a agitação se espalhou para o resto de Andhra Pradesh, com estudantes e jovens em todos os lugares protestando nas ruas por meses, entoando Visakha Ukku, Andhrula Hakku (“Visakha Steel é direito do povo de Andhra”).

O movimento foi firmemente apoiado pelos comunistas, que tinham uma forte presença em Andhra Pradesh. Com 51 membros na assembleia estadual, o Partido Comunista da Índia (Marxista) – PCI (M) – e o Partido Comunista da Índia (PCI) constituíram juntos a principal oposição política no estado. Os comunistas acreditavam profundamente na importância da industrialização para se libertar dos grilhões do subdesenvolvimento e da exploração feudal que estrangulavam impulsos progressistas na sociedade. Eles também reconheceram como a industrialização era vital para o surgimento de uma classe operária organizada que é substancial em números e forte o suficiente para assumir uma liderança conjunta na luta contra a exploração capitalista-senhorial das massas indianas. Esse entendimento levou-os a emprestar sua considerável força política e organizacional a esse movimento para a indústria moderna, e sua intervenção desempenhou um papel crucial na transformação dos sentimentos espontâneos do povo em um movimento sustentado em todo o estado. As mobilizações estudantis improvisadas rapidamente se tornaram mais organizadas após o envolvimento dos comunistas, cuja presença dominante no movimento tanto lhe deu força como ajudou a alcançar os agricultores e trabalhadores que já estavam organizados sob a liderança dos comunistas. Logo, uma mobilização mais ampla de pessoas ganhou impulso.

Enfurecido com a resistência popular, o governo central convocou o Exército indiano para conter os protestos. Isso irritou ainda mais o povo, que sentia que o governo central os tratava como inimigos nacionais: o Exército, que deveria defender as fronteiras do país, estava sendo enviado contra seu próprio povo. Quando as pessoas foram protestar em grande número contra a presença do Exército em Visakhapatnam, as Forças Armadas abriram fogo indiscriminadamente. Entre as vítimas do Exército estava um menino de nove anos; enquanto ele estava deitado em uma poça de sangue, gritando por água, as Forças Armadas atiraram nos manifestantes que tentaram chegar a ele, matando mais nove pessoas naquele dia.

A ira popular contra a chacina do Exército se espalhou pelo estado, e mais pessoas saíram às ruas como parte das manifestações e greves de fome em cidades de Andhra Pradesh. Distrito após distrito, as administrações não puderam funcionar, e o transporte ferroviário e rodoviário parou. O movimento não poderia ser reprimido apesar da escalada da violência estatal que matou 32 pessoas e deixou milhares de feridos e das prisões e torturas generalizadas de ativistas sob custódia policial. Quanto mais severa a repressão, mais determinadas as pessoas ficavam. Trabalhadores cortaram energia dedepartamentos do governo, sabotaram a comunicação e interromperam a transmissão pública. Houve greves e paralisações.1 Sessenta e sete membros da oposição na Assembleia Legislativa, dos quais 51 eram de partidos comunistas, renunciaram aos seus assentos, intensificando a pressão sobre o governo.

Após os primeiros meses de protestos nas ruas, a luta pela usina siderúrgica continuou de diferentes formas até que o governo central, liderado por Indira Gandhi, foi obrigado a se curvar à vontade popular, finalmente acatando a reivindicação de construir uma usina siderúrgica em Visakhapatnam e estabelecendo sua primeira torre, em 1971, no local selecionado. Exultante em sua vitória, o povo de Andhra Pradesh não tinha pensado que isso seria apenas o início de sua luta, nem que a usina de aço que foi concebida e criada a partir de sua vontade exigiria lutas, apoio e solidariedade constantes para sua existência e viabilidade contínuas.

 

 

Abandonado pelo neoliberalismo

Nos anos seguintes, o governo central fez corpo mole, atrasando a construção da usina, apesar de uma campanha incansável de líderes proeminentes como Tenneti Viswanatham. No entanto, a derrota do Congresso Nacional Indiano liderado por Indira Gandhi (comumente referido como Congresso) nas eleições de 1977, bem como a formação do governo do Partido Janata no mesmo ano ajudaram a acelerar esse processo: o novo governo concordou em construir a usina, para a qual alocou 10 bilhões de rúpias e assinou um acordo com a União Soviética para sua construção.2 Mas isso não iria para durar: na década de 1980, o país estava novamente sob o domínio do Congresso, com Rajiv Gandhi como primeiro-ministro de 1984 a 1989. Nessa época, o grande capital indiano tinha crescido em tamanho e estava impaciente por maior poder econômico e por um maior quinhão da riqueza do país. Seu poder sobre os principais blocos políticos estava aumentando, e sua influência, combinada com a pressão do capital ocidental, levou a Índia a se afastar do caminho da autossuficiência e do desenvolvimento liderado pelo setor público e a se aproximar da liberalização e privatização.

A Visakha Steel foi talvez a primeira empresa do setor público indiano a experimentar o gosto amargo da liberalização, pois o governo Rajiv Gandhi procurou acabar com a fábrica antes mesmo desta tomar sua forma final. O zelo pela liberalização das importações governou os corredores do poder, e o governo não via lugar para a usina siderúrgica em ascensão, pois poderia importar muitas commodities, incluindo o aço, a preços muito mais baratos nos mercados internacionais. Essa também foi uma época em que as indústrias siderúrgicas nos EUA e na Europa estavam operando com excesso de capacidade e procuravam despejar seu aço nos mercados de países em desenvolvimento. A Índia era um destino atraente para despejar aço a preços muito baixos, e o governo indiano sentia-se bem em jogar a busca por autossuficiência aos ventos e se entregar aos caprichos do capital internacional e dos mercados que controla. As oscilações selvagens das commodities no mercado internacional, de baratíssimas um dia para os olhos da cara em outro, nunca deixaram terreno suficiente para a nação se levantar.

Apesar de já ter gasto 17 bilhões de rúpias no projeto Visakha Steel, o governo de Rajiv Gandhi estava pronto para abandoná-lo.3 No entanto, reconhecendo que tal decisão provocaria a ira das pessoas que lutaram por e que deram suas terras para a usina, funcionários da siderúrgica socialmente comprometidos fizeram uma proposta alternativa. Para chegar a um consenso, a Visakha Steel seria substancialmente reduzida em relação ao projeto original, que previa altos-fornos e uma oficina de derretimento de aço com capacidade para produzir 3,4 milhões de toneladas de aço por ano, várias siderúrgicas para transformar o aço em produtos de alto valor, como vigas, um porto de uso exclusivo (também conhecido como porto exclusivo) nas proximidades de Gangavaram, e uma mina de minério de ferro exclusiva em Bailadila (que era então em Madhya Pradesh, e agora em Chhattisgarh). Em vez disso, o governo só permitiria que a usina siderúrgica fosse construída com capacidade para produzir menos de 3 milhões de toneladas de aço com uma gama reduzida de produtos de valor agregado, empregando uma força de trabalho muito menor. Além disso, a usina não teria um porto ou mina exclusivos.

Isso significava que a siderúrgica não teria uma capacidade de excelência e estaria em desvantagem econômica, pois enfrentaria custos mais elevados para transportar matérias primas e produtos de valor agregado, sendo forçada a pagar de quatro a dez vezes mais para comprar minério de ferro no mercado aberto do que pagaria se estivesse operando com uma mina exclusiva. Uma vez que o custo do minério representa cerca de um quarto do custo total da produção de aço, a posse ou ausência de minas exclusivas poderia tornar possível ou inviabilizar uma usina siderúrgica.

Uma siderúrgica é um projeto de longa gestação que leva anos para ser elaborado, materializar-se e operacionalizar-se, e ainda mais tempo para se tornar financeiramente viável. Por um lado, o mercado de aço depende do clima de investimento e é propenso a mudanças cíclicas. Por outro lado, a produção de aço, que envolve a operação de uma variedade de fornos, não pode ser facilmente ajustada com base na demanda do mercado. Devido às suas propriedades físicas peculiares, o resfriamento e o reaquecimento dos fornos obedecendo à demanda causam danos físicos significativos à sua estrutura em razão do estresse térmico, ampliando os custos associados às flutuações de produção; apenas a produção contínua evita tais custos. Se um alto-forno produz ferro bruto em capacidade total ou um pouco abaixo da capacidade, o custo de operação varia pouco. Isso leva a uma situação incongruente em que um boom no mercado e os altos preços dos produtos siderúrgicos são acompanhados de um custo de produção menor por tonelada, enquanto a demanda lenta do mercado e a diminuição dos preços do aço caminham lado a lado com um aumento no custo de produção por tonelada. Embora esse seja o caso também da indústria mais pesada, esse problema é mais agudo na indústria siderúrgica.

É precisamente por isso que o governo indiano tinha uma política de destinar minas exclusivas para plantas siderúrgicas integradas desde sua criação, seja no setor público ou privado, permitindo que elas produzissem seu próprio minério de ferro a partir das minas atribuídas a elas. Essa capacidade de obter minério de ferro de alta qualidade de minas indianas ricas ao custo de produção protege suas margens de lucro e aumenta suas chances de sobreviver em um mercado imprevisível. A Visakha Steel tornou-se a primeira empresa a suportar o peso do ataque do neoliberalismo ao setor público quando lhe foram negadas minas exclusivas, forçando-a a depender da compra de minério caro enquanto suas concorrentes no mercado tinham suas próprias minas.

Além disso, o governo adiou o envio de recursos para a conclusão da usina, levando a sobrecarga de tempo e custos. À medida que a construção se arrastava por uma década devido à recusa do governo em fornecer fundos adequados, a Visakha Steel foi forçada a emprestar grandes somas para concluir a usina, em contraste com todas as outras siderúrgicas do setor público, que tinham sido totalmente financiadas pelo governo. Consequentemente, Visakha Steel ficou sobrecarregada com uma grande soma de 37 bilhões de rúpias em dívidas em seu comissionamento, em 1992.4

Até então, a economia indiana estava passando por uma grave crise, e o projeto de globalização neoliberal no país estava a todo vapor, sob a orientação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. A desregulamentação do setor financeiro indiano começou, fazendo com que as taxas de juros disparassem ao longo da década de 1990. Desde o primeiro dia, a fábrica ficou sobrecarregada com enormes custos de manutenção da dívida que comeram seus lucros operacionais, que eram escassos de qualquer forma devido às condições econômicas adversas na Índia e no mundo durante a década de 1990.

Quando a usina entrou em operação, o alto-forno tinha capacidade para produzir 3,4 milhões de toneladas de ferro bruto por ano, enquanto a usina de derretimento de aço tinha significativamente menos capacidade para processar o ferro bruto em aço. Como resultado, a usina foi forçada a vender uma quantidade substancial de ferro bruto proveniente dos altos-fornos sem transformá-lo em aço. Uma vez que as margens de lucro na venda de ferro bruto são muito menores que as do aço acabado, a falta de capacidade adequada no derretimento do aço foi um sério impedimento para a viabilidade financeira da planta.

Apesar da pressão sobre as margens de lucro devido à falta de minas exclusivas e à escassez de capacidade da usina de derretimento de aço, a Visakha Steel ainda tinha o menor custo de produção de aço por tonelada no país, em grande parte devido ao compromisso de seus trabalhadores e engenheiros que incansavelmente ajustavam processos e buscavam maneiras de aumentar a produção e reduzir custos. Além disso, apesar da mão de obra altamente produtiva, a usina teve que arcar com uma dívida tão grande que seus custos de manutenção adicionaram pelo menos 60 rúpias a cada 100 rúpias gastas na produção de aço. Como resultado, já no primeiro ano de sua operação, a siderúrgica reportou perdas de 5,6 bilhões de rúpias e continuou acumulando perdas líquidas ao longo de sua primeira década de operação.5

 

 

Vitórias iniciais

A luta popular que deu origem à usina siderúrgica, juntamente com a forte presença do movimento comunista dentro do movimento operário em Visakhapatnam, garantiu que os trabalhadores da Visakha Steel tivessem um perfil fortemente militante desde o início. Eles perceberam muito cedo que lutar por seus direitos como trabalhadores não seria sustentável a menos que sua luta estivesse ligada ao movimento popular mais amplo e ancorada em uma visão alternativa para sua própria indústria e para a independência econômica e desenvolvimento do país como um todo. Essa visão tornou-se a base para sua luta contra todos os esforços para enfraquecer, sabotar e privatizar a Visakha Steel.

Nos primeiros anos, os trabalhadores, liderados pela Central de Sindicatos Indianos (Centre of Indian Trade Unions – CITU), mobilizavam-se continuamente por três reivindicações relativas à fábrica, direcionadas ao governo:

  • Reestruturação dos empréstimos, convertendo-os em patrimônio estatal.
  • Destinação de minas de minério de ferro exclusivas para a usina.
  • Aumento da capacidade da usina de derretimento de aço para elevá-la ao mesmo nível do alto-

A primeira medida reduziria a carga de juros sobre a usina, enquanto as duas últimas aumentariam consideravelmente suas margens de lucro, tornando a Visakha Steel uma instituição viável e lucrativa.

Em vez disso, o governo se propôs a subverter a demanda dos trabalhadores por uma oficina adicional de derretimento de aço, transformando-a em uma oportunidade de privatizar gradualmente a usina siderúrgica Visakha. Em 1994, o governo assinou um memorando de entendimento com uma empresa privada que permitiu que esta montasse uma oficina de derretimento de aço com uma capacidade de 1,5 tonelada dentro das instalações da Visakha Steel. O plano era que o ferro derretido dos altos-fornos da Visakha Steel fosse canalizado diretamente para a usina privada, que poderia então vender o aço processado no mercado com altas margens de lucro. Isso significava que a Visakha Steel teria o ônus das complexas e perigosas operações de manuseio de minério de ferro, usinas de sedimento calcário (sinter), fornos de coque, usinas de separação do ar, usinas térmicas e altos-fornos, tudo isso para receber preços baixos pelo ferro bruto, enquanto a empresa privada assumiria o segmento de produção mais rentável que também envolvia investimento relativamente menor. Ou seja: nada mais que roubar de Pedro para pagar a Paulo – uma tentativa flagrante de drenar o sangue vital da Visakha Steel para reforçar os lucros privados.

Em resposta, a CITU organizou uma grande oficina, reunindo trabalhadores, sindicalistas e até funcionários públicos da siderúrgica e convocou-os a lutar contra a privatização a portas fechadas das operações da empresa. Os trabalhadores organizaram greves na oficina a fim de impedir qualquer intromissão de interesses privados na Visakha Steel, forçando o governo a pôr fim aos seus planos e a permitir que a Visakha Steel criasse oficinas adicionais de derretimento de aço por conta própria em 1997.

 

 

Um teste crítico e uma vitória decisiva

Devido às várias desvantagens às quais a Visakha Steel foi submetida, em 1999 ela havia acumulado perdas no valor de 46 bilhões de rúpias, dando um motivo conveniente para o governo forçar a privatização.6 Desconsiderando o fato de que foi o desgaste da Visakha Steel por parte do governo que levou a esses problemas financeiros, a mídia também desencadeou uma campanha para preparar o cenário para a privatização. Encontrando uma situação favorável, o governo central, liderado pelo Partido Bharatiya Janata (BJP), procurou compradores para a fábrica entre empresas indianas e estrangeiras, oferecendo até mesmo limpar seus balancetes, perdoando empréstimos da usina siderúrgica para tornar sua venda atraente. O governo, que por anos se recusou a reestruturar os empréstimos ou a reduzir as taxas de juros, estava agora disposto a renunciar a eles para facilitar a venda da Visakha Steel para empresas privadas e estrangeiras. Isso enfureceu os trabalhadores, que se opuseram fortemente à mudança.

Na tentativa de dividir os trabalhadores, algumas pessoas na administração, orientadas pelo governo, tentaram convencê-los de que se a Visakha Steel fosse comprada por uma “boa empresa” como o Grupo Tata, o maior conglomerado da Índia, seu futuro estaria assegurado. Essa campanha ludibriou um grande segmento de trabalhadores e sindicatos, mas trabalhadores e militantes filiados à CITU entraram em ação, visitando cada chão de fábrica na siderúrgica, realizando reuniões e falando com os trabalhadores como parte de uma campanha que durou várias semanas. Eles argumentaram que, sejam designadas como “boas” ou “más”, as empresas capitalistas estão preocupadas com seus lucros imediatos – não com os interesses da nação, do povo ou dos trabalhadores. Eles conseguiram convencer os trabalhadores de que o argumento “bom capitalista” não passava de uma tentativa de manipulá-los para a complacência com a privatização contra seus próprios interesses como trabalhadores e para trair os desejos do povo do estado que lutou pela usina.

Uma vez unidos, os trabalhadores rapidamente lançaram um movimento contra a venda da fábrica e saíram às ruas no início dos anos 2000. Houve paralisações apoiadas pelo povo da cidade. Movimentos de estudantes, jovens e mulheres da região se mobilizaram em apoio aos trabalhadores para organizar protestos e greves de fome. Os proeminentes combatentes da liberdade Patti Seshayya e Bairagi Naidu entraram em greve de fome por tempo indeterminado, marchando para o mar com pedras no pescoço, com milhares de trabalhadores e populares ao seu lado, enquanto o governo não cedia. Mesmo quando a polícia foi acusada de utilizar o lathi (cassetete) e prendeu os trabalhadores e os combatentes pela liberdade, eles não cederam, continuando o protesto de várias formas com pessoas se unindo a eles a cada passo. Os protestos se difundiram e se tornaram tão frequentes que a polícia não conseguiu controlar sua intensidade, mesmo quando prenderam os líderes. Quando o ministro-chefe do estado veio à cidade para uma campanha eleitoral, os trabalhadores bloquearam vias públicas por toda a cidade. Para evitar enfrentar os trabalhadores, o ministro-chefe pegou um helicóptero para chegar ao local da reunião pública, mas lá, também, enfrentou trabalhadores em protesto. A ansiedade do governo estadual em agir para aplacar a raiva do ministro-chefe resultou em uma onda de violência policial na reunião contra os trabalhadores, deixando-os com ferimentos como hemorragias severas a crânios e membros fraturados. Os que estavam em greve de fome também não foram poupados e foram severamente espancados pela polícia.

A violência policial colocou a questão da Visakha Steel em foco, e o povo de Andhra Pradesh se uniu em torno da causa dos metalúrgicos com mais vigor. Isso levou o Partido Telugu Desam (Telugu Desam Party – TDP, que estava no poder no estado) e o BJP, aliado ao TDP, a ter um desempenho ruim nas eleições locais. O TDP aprendeu uma lição sobre a ira popular e repensou sua posição anterior pró-privatização. À medida que as corporações perceberam que teriam que enfrentar a resistência dos trabalhadores, como ocupações de fábricas, bem como uma opinião pública hostil às tentativas de que eles assumissem a usina siderúrgica, reduziram seus esforços para fazê-lo. Esses desenvolvimentos obrigaram o governo central liderado pelo BJP, que dependia do apoio do TDP, a concordar com as demandas dos trabalhadores. Finalmente, os trabalhadores obtiveram uma grande vitória junto ao governo nacional, liderado pelo primeiro-ministro Atal Bihari Vajpayee, que desistiu de vender a fábrica e concordou com a reestruturação de capital.

 

Uma década frutífera

Graças às árduas lutas dos trabalhadores, a Usina Siderúrgica Visakha ficou relativamente livre da necessidade de combater a privatização na década que se seguiu à vitória dos trabalhadores de 2000. Além disso, a força dos partidos comunistas no parlamento de 2004 a 2009 forneceu às indústrias do setor público um escudo contra a privatização, uma vez que a coalizão da Aliança Progressista Unida (United Progressive Alliance – UPA), liderada pelo Congresso, precisava do apoio da esquerda para formar o governo após as eleições de 2004 e para sustentar o governo, evitava os impulsos de privatização.

Tendo frustrado ambas as tentativas de privatização, a Visakha Steel aumentou suas margens de lucro e viabilidade à medida que a demanda global por aço aumentava. O movimento para expandir a capacidade da oficina de derretimento de aço por conta própria rendeu frutos, e o aço de alta qualidade da Visakha estava em alta demanda, pois o crescimento econômico global exigia cada vez mais aço. A fábrica não só teve lucros substanciais e pagou seus empréstimos, como em 2004 tinha excedentes para uma maior expansão.

Os metalúrgicos exigiram que o governo permitisse que a usina se expandisse. Sob pressão do lobby corporativo, o governo da UPA atrasou continuamente a permissão, mas a pressão dos partidos de esquerda forçou a autorização da expansão em 2006. Nos anos seguintes, usando seus próprios lucros, bem como fundos emprestados de bancos, a Visakha Steel ampliou sua capacidade de produção de 3,4 milhões de toneladas para 6,3 milhões de toneladas de aço por ano entre 2006 a 2015.7

Nesse contexto, é importante observar o fato de que os trabalhadores da Visakha Steel não só têm lutado contra a privatização, mas também têm estado fortemente comprometidos com o crescimento da empresa como uma planta tecnicamente eficiente e financeiramente viável, seja lutando para expandir a fábrica, obter minas exclusivas ou resolver falhas técnicas e problemas. Sempre que um problema técnico na fábrica surgia, seja com fornos de coque, usinas, derretimento de aço etc., os trabalhadores e sindicatos têm realizado incansavelmente um estudo e análise minuciosos para chegar e implementar soluções adequadas.

 

Uma ameaça renovada

 

Três estratégias de privatização

A proteção conferida ao setor público pela influência que os partidos de esquerda exerciam durante o primeiro mandato do governo da UPA desapareceu quando esta foi eleita para um segundo mandato, em 2009, e a força dos partidos comunistas no parlamento enfraqueceu, levando a novos esforços para privatizar a Visakha Steel.

O primeiro deles foi em 2010, quando o governo designou a Usina Siderúrgica Visakha como uma Navratna  do setor público.8 Esse status permitiu que o conselho da Visakha Steel gastasse até 10 bilhões de rúpias em decisões operacionais sem a autorização do governo e, portanto, para realizar a expansão como e quando necessário sem esperar por permissões.9 Mas o governo acrescentou uma ressalva: para manter o status de Navratna, a Visakha Steel teria que vender 10% de suas ações no mercado nos dois anos seguintes. Em 2012, quando uma oferta pública inicial (na qual as ações de uma empresa são vendidas ao público pela primeira vez) foi adiada para a venda de 10% das ações da Visakha Steel, os 36 mil trabalhadores da fábrica entraram em uma greve de um dia em julho e anunciaram um cronograma de novas paralisações. Como resultado da resistência dos trabalhadores, o governo foi forçado a retirar a oferta.

Enquanto isso, o governo tentou uma segunda estratégia: privatizar a usina em fatias. Isso foi uma reminiscência da década de 1990, quando o governo decidiu privatizar a usina térmica e a usina de separação de ar ligada à Visakha Steel. Ambas as usinas são fundamentais para o funcionamento da Visakha Steel: a usina térmica atende às necessidades energéticas da siderúrgica e produz ar de alta pressão para os altosfornos, enquanto a usina de separação de ar produz vários gases necessários para a produção de aço. A privatização dessas usinas colocaria um ônus financeiro adicional sobre a siderúrgica, que teria que pagar custos mais altos às empresas privadas pelo fornecimento de energia e gases como o oxigênio.

Embora os trabalhadores tivessem sido capazes de resistir com sucesso às tentativas na década de 1990 de privatizar as usinas térmica e de separação de ar, em 2010, o governo finalmente conseguiu trazer a empresa francesa Air Liquide para construir, possuir e operar as duas novas unidades de separação de ar necessárias na Visakha Steel. Devido a falhas no projeto das unidades da Air Liquide, tubos de oxigênio de alta pressão explodiram durante o teste em 2012, matando e incinerando dezenove funcionários públicos e trabalhadores. Embora dez anos se passaram desde o incidente, as usinas de separação de ar ainda não se tornaram operacionais, pois a Air Liquide sente que os lucros em sua operação não são ideiais. Enquanto isso, as usinas de oxigênio mais antigas – projetadas pela empresa do setor público Bharat Heavy Plate and Vessels (BHPV) – continuam funcionando com eficiência na usina siderúrgica. Esse forte contraste fornece um entre muitos exemplos claros dos perigos da privatização.

A terceira e mais bem sucedida estratégia de privatização do governo tem sido atrasar ou negar permissões a empresas do setor público, a fim de retardar seu crescimento, permitindo assim que as empresas privadas de aço componham uma fatia maior do mercado. Por exemplo, quando a Visakha Steel decidiu montar uma usina para produzir tubos sem emenda – um segmento do mercado com alto valor agregado –, o governo pressionou a usina a arquivar esse plano, mesmo que o trabalho para a criação da usina já tivesse começado. Isso foi feito principalmente para beneficiar outras grandes siderúrgicas privadas com uma participação substancial de mercado nesse segmento. Dessa forma, foi negada à Visakha Steel permissão para expandir seu mix de produtos em vários momentos nas últimas duas décadas.

 

Sob Modi

Do início dos anos 2000 até o início da década de 2010, a economia indiana experimentou altas taxas de crescimento. Os maiores beneficiários desse crescimento foram as maiores corporações indianas, que roubaram recursos do setor público por meio de métodos tais como o uso senhorial de ativos pertencentes a empresas de telecomunicações do setor público, extração ilegal de gás de blocos de gás do setor público, exploração de minas e apropriação indevida de trilhões de rúpias em empréstimos de bancos do setor público por meio de inadimplência.10 Ao mesmo tempo, o governo alocou gratuitamente terras pertencentes a indústrias do setor público para empresas privadas, deliberadamente negligenciou o setor público da Indian Railways em benefício dos fabricantes de automóveis, e deu concessões fiscais maciças às corporações. Esse processo permitiu o crescimento anárquico e parasita do capital, transformando os grandes capitalistas da Índia em donos de mega corporações que passaram a exercer influência em uma escala sem precedentes.

A crescente influência corporativa, juntamente com o financiamento abundante que essas corporações forneceram ao BJP, contribuíram para que o primeiro-ministro Narendra Modi e o BJP passassem a comandar o governo indiano a partir de 2014. Sob seu comando, o engrandecimento das corporações continuou com vigor renovado. Com o governo autoritário de Modi e a dedicação inabalável de seu governo em promover os interesses das corporações, vários ativos públicos foram entregues a um pequeno número de corporações (a maior delas de propriedade do principal financiador de Modi, Gautam Adani, cujo patrimônio líquido aumentou 1600% sob Modi), incluindo portos altamente valorizados, aeroportos, usinas siderúrgicas, linhas ferroviárias, minas e a rede nacional de silos e infraestrutura de armazenamento pertencentes à Food Corporation of India (FCI).11

Hoje, o Grupo Adani possui e opera o Porto de Gangavaram – o mesmo porto que seria construído e operado pela Visakha Steel como seu porto exclusivo. Em vez disso, a Visakha Steel paga taxas substanciais para usar o porto da Adani, construído em 2800 acres de terra que originalmente pertenciam à usina siderúrgica. A incongruência da política do governo é ainda mais evidente pelo fato de que o porto privado de Adani é isento de pagar impostos sobre a propriedade na cidade, enquanto a Visakha Steel não é.

 

Um acordo à portas fechadascom a POSCO

 Desde que Modi chegou ao poder, a Visakha Steel tem aparecido periodicamente no noticiário como candidata à privatização. Modi tem afirmado com frequência que “o governo não tem o que fazer”12 e que a venda de empresas do setor público está no topo de sua agenda. O National Monetisation Pipeline (NMP,) lançado durante o segundo mandato de Modi, é uma manifestação extrema dessa filosofia. O NMP tem como objetivo vender ou alugar todas as infraestruturas públicas possíveis, incluindo terrenos e ativos pertencentes a empresas do setor público, até 2025.

Nesse sentido, em 2019, o governo da Índia propôs uma joint venture com a gigante siderúrgica sul-coreana POSCO para criar uma fábrica de rolamentos que produziria aço especial para automóveis em 3 mil acres de terra pertencente à usina siderúrgica Visakha, que receberia uma participação minoritária na joint venture. Embora o governo tenha alegado que este seria um empreendimento em que todos ganhariam, os trabalhadores não podiam ver algum benefício em abrir mão de uma área tão grande – com um valor de 300 bilhões de rúpias no mercado aberto – que a Visakha Steel precisaria para sua futura expansão.13 Semelhante a algumas das táticas adotadas décadas antes, a Visakha Steel estava sendo solicitada a lidar com os tipos mais complexos, perigosos e bagunçados de trabalhos – aquisição de minério, fornos de coque, plantas de oxigênio e vários altos-fornos – enquanto a POSCO assumiria a parte mais lucrativa da cadeia de valor. Além disso, desviar parte do aço das oficinas de derretimento da Visakha Steel para as usinas da POSCO resultaria em uma pequena oferta de aço para as próprias fábricas da Visakha Steel, forçando-as a fechar. O objetivo final era claro: abrir caminho para a aquisição completa da Visakha Steel pela POSCO.

Os trabalhadores entraram mais uma vez em greve para impedir que o governo permitisse a construção de uma usina da POSCO nas terras da Visakha Steel. Ao lado do maior movimento sindical, eles fizeram uma ampla campanha em todo o estado. Milhares de trabalhadores participaram de comícios com nas ruas de Visakhapatnam, bem como de uma marcha de motocicletas de 400 quilômetros em dezembro de 2019 que terminou na capital do estado, Amaravathi, passando por muitas cidades e vilas no caminho. Sindicatos e centros estudantis fizeram campanha em outras cidades e vilarejos de Andhra Pradesh, evocando as memórias da luta pela construção da Visakha Steel e os sacrifícios dos 32 mártires mortos em 1966. Todos os partidos políticos, exceto o BJP, seja na oposição ou no poder, foram obrigados a apoiar o movimento dos trabalhadores.

Quando milhares de agricultores ocuparam a capital nacional no Dia da República (26 de janeiro de 2021), toda a nação tomou conhecimento.14 Enquanto o foco estava nos agricultores, já no dia seguinte o comitê de assuntos econômicos do governo decidiu sobre a venda completa e estratégica da Usina Visakha, embora não tenha feito o anúncio imediatamente. Tendo tomado a decisão, o governo Modi começou a construir álibis para a privatização.

Esperando uma aquisição pela POSCO, o governo do BJP concedeu uma mina exclusiva em Jharkhand à Visakha Steel em 2019, três décadas após o início da fábrica. A principal atração da POSCO na Índia é o minério de ferro do país, abundante e de alta qualidade. A criação de uma usina siderúrgica na Índia com minas exclusivas também permitiria à POSCO acesso a minério de ferro barato para suas plantas em outros lugares do leste da Ásia. Quando os metalúrgicos frustraram a empreitada da POSCO, em um movimento vingativo, o governo cancelou o loteamento da mina para a Visakha Steel. Ironicamente, a POSCO, que não tem uma única usina siderúrgica na Índia no momento, retém as minas exclusivas atribuídas a ela em Odisha para uma usina que não foi nem montada – um contraste acentuado com a mina exclusiva brevemente atribuída à Visakha Steel e retirada dela antes mesmo que pudesse extrair uma colher de sopa de minério.

Até 2022, a Visakha Steel havia incorrido em uma dívida de 220 bilhões de rúpias, grande parte devido à expansão da empresa entre 2006 e 2015. A trágica desventura da Air Liquide, juntamente com os graves danos causados à usina pelo ciclone Hudhud em 2014, causou atrasos e aumentou o custo de expansão. Quando a expansão estava à beira de dar resultados, a indústria siderúrgica foi duramente atingida pela pandemia de Covid-19. A Visakha Steel, como muitas outras produtoras de aço, vem enfrentando uma grave crise devido ao colapso da demanda desde o início da pandemia. Se tivesse sido permitido manter a mina que lhe foi atribuída em 2019, o custo mais baixo do ferro poderia ter fornecido uma proteção contra perdas durante a crise da pandemia.

Assim, quando a crise começou a diminuir e a demanda começou a se recuperar, a empresa foi atingida pela escassez nos mercados internacionais de carvão, que fora intensificada pela guerra na Ucrânia. Como resultado, o preço do carvão de coque importado da Austrália disparou, mesmo excedendo o preço do minério de ferro em uma base de tonelada a tonelada. Consequentemente, as necessidades de capital de giro da Visakha Steel aumentaram substancialmente, como é o caso de todas as siderúrgicas da Índia.

Devido ao limite imposto pelo governo de 270 bilhões de rúpias em empréstimos à Visakha Steel, cujos empréstimos já chegaram a 80% desse limite, a empresa não consegue atender totalmente às suas necessidades de capital de giro. Como resultado, embora o mercado de aço tenha se reanimado, a planta tem sido forçada a produzir abaixo da capacidade: em 2021-22, produziu 5,2 milhões de toneladas de aço, bem abaixo de sua capacidade total de 7,3 milhões de toneladas.

A atual crise de capital de giro que a Visakha Steel está enfrentando é puramente fabricada pelo governo. Nas três décadas de sua operação, a Visakha Steel provou várias vezes sua capacidade de cumprir as obrigações de dívida. Na verdade, a Visakha Steel nunca faltou ao pagamento dos juros ou do principal sobre os empréstimos que tomou dos bancos. Em contraste, muitas empresas siderúrgicas privadas (como Bhushan Steel e Essar Steel) que expandiram exponencialmente, tomando empréstimos substanciais dos bancos do setor público indiano, estão inadimplentes em mais de 1 trilhão de rúpias em empréstimos no total para esses bancos.15

A recusa do governo em elevar os limites de empréstimos para a Visakha Steel é simplesmente mais um instrumento para enfraquecer a planta e, assim, diluir a oposição popular à sua venda. Apesar desses esforços, a Visakha Steel registrou  9,4 bilhões de rúpias de lucro líquido em 2021-22.16

No entanto, isso não impediu a Visakha Steel e seus trabalhadores de dar um passo à frente para fornecer auxílio às pessoas durante o verão de 2021, quando uma onda mortal Covid-19 rasgou o país, matando milhares de pessoas diariamente devido à falta de tratamento e escassez de oxigênio. Quando os hospitais públicos ficaram sobrecarregados e a maioria dos hospitais privados recusou tratamento aos pacientes com Covid-19, deixando-os sem ar nas ruas, a Visakha Steel foi uma das primeiras do setor industrial a intervir para fornecer oxigênio médico para hospitais em Andhra Pradesh e em todo o país. Mesmo quando a usina siderúrgica passou por dificuldades devido à queda na demanda por aço induzida pela pandemia, suas plantas de oxigênio se trabalharam continuamente para fornecer milhares de toneladas de oxigênio médico aos hospitais.17

 

 

A estrada à frente

Com a maioria absoluta do BJP nas duas casas do Parlamento, Modi parece sentir que tem muito pouca razão para levar em conta os desejos do povo da região. No entanto, se a vitória espetacular dos agricultores contra o governo Modi ensinou qualquer coisa aos trabalhadores da Visakha Steel, é que o governo Modi pode ser forçado a recuar por meio de uma forte e sustentada mobilização que pode durar mais que sua intransigência. A mobilização dos agricultores e sua vitória energizaram os metalúrgicos e reafirmaram sua crença de que podem vencer esta luta – porque eles precisam vencê-la.

A solidariedade agricultor-trabalhador tornou-se vital nesse contexto. Os metalúrgicos, muitos dos quais vêm de famílias rurais, reagiram instintivamente à mobilização dos agricultores, e a apoiaram desde o primeiro dia. Em um dos muitos exemplos, uma delegação da usina siderúrgica visitou os agricultores em Delhi em janeiro de 2021 e entregou recursos arrecadados pelos metalúrgicos. O movimento sindical, em coordenação com os agricultores mobilizados, convocou greves e outras ações conjuntas, incluindo uma paralisação bem-sucedida em todo o país. Essas interações desempenharam um papel importante na persuasão da liderança do movimento dos agricultores a se posicionar contra a privatização de empresas do setor público, particularmente a da Visakha Steel. Em abril de 2021, Rakesh Tikait, Ashok Dhawale e outros líderes proeminentes do movimento dos agricultores viajaram para Visakhapatnam e lançaram seu apoio à luta dos metalúrgicos em um ato público, atraindo a atenção de todo o estado, particularmente dos agricultores. Isso deu um caráter mais amplo à luta pela defesa do setor público e da Usina Siderúrgica Visakha, angariando ainda mais a opinião pública contra o movimento de privatização da usina.

Muitas das cerca de 16 mil famílias que deram suas terras para a Visakha Steel ser construída continuam a lutar ao lado dos trabalhadores, argumentando que vender essas terras para corporações privadas seria uma traição à intenção original e à promessa dada ao povo. Ao longo dos anos, essas famílias, juntamente com os sindicatos, lutaram com êxito para garantir que 8 mil  empregos fossem criados para eles, embora continuem lutando por mais recrutamento. Na luta atual contra a privatização, eles se uniram aos trabalhadores para um protesto por tempo indeterminado na Rodovia Nacional 16, que está em curso desde 12 de fevereiro de 2021 – há mais de 500 dias.

Além disso, os sindicatos iniciaram uma campanha maciça para levar a luta de defesa à Visakha Steel em todos os cantos do Estado, reunindo pelo menos dez milhões de assinaturas em uma declaração contra a privatização da usina. As trabalhadoras sindicalizadas anganwadi (de creches infantis rurais), que estão presentes em quase todos os vilarejos do estado, afirmaram seu apoio aos metalúrgicos e prometeram coletar pelo menos dez assinaturas cada uma nas aldeias que atuam. Até maio de 2022, mais de seis milhões de pessoas no estado já haviam assinado, o prefeito e membros eleitos da câmara municipal de Visakhapatnam sendo os primeiros a assinar, conforme as assinaturas continuam a ser recolhidas nos vilarejos

Três décadas de lutas ininterruptas fortaleceram os metalúrgicos de Visakha, tornando-os combatentes políticos experientes. Hoje, os trabalhadores estão confiantes de que podem seguir seu caminho, suportar a pressão e vencer a luta contra a privatização. O apoio generalizado que eles têm recebido de um amplo espectro de pessoas e organizações no estado e em todo o país indica que eles estão se movendo na direção certa.

 

 

Agradecimentos:

Este dossiê é baseado principalmente em entrevistas com Ch. Narasinga Rao (secretária do Comitê Estadual de Andhra Pradesh da CITU), com contribuições adicionais de J. Ayodhya Ram (presidente do Sindicato dos Empregados de Usinas Siderúrgicas), U. Ramaswamy (secretário-organizador do Sindicato dos Empregados de Usinas Siderúrgicas) e D. Adi Narayana (secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores do Aço Visakha).

 

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Notas de rodapés

1 Os protestos e paralisações na Índia criaram uma paralisação de estabelecimentos comerciais, escritórios do governo e a maioria dos serviços (incluindo transporte rodoviário), exceto pelos serviços mais essenciais, como hospitais e meios de comunicação. Aqueles que convocavam os protestos muitas vezes tentavam impor a paralisação, bloqueando estradas e instando as pessoas a manterem estabelecimentos e escritórios fechados.

2 Ch. Narasinga Rao (secretário do Comitê Estadual de Andhra Pradesh da CITU), J. Ayodhya Ram (presidente do Sindicato dos Empregados de Usinas Siderúrgicas), U. Ramaswamy (secretário organizador do Sindicato dos Empregados de Usinas Siderúrgicas) e D. Adi Narayana (secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores do Aço Visakha), em discussão com os autores, 2022.

3 Ch. Narasinga Rao, Visakha Ukku Andhrula Hakku Mahodhyamam [Visakha Steel Is the Andhra People’s Right] (Vijayawada:  CITU, 2021).

4 Ch. Narasinga Rao, Visakha Ukku Andhrula Hakku Mahodhyamam.

5 Ch. Narasinga Rao, Visakha Ukku Andhrula Hakku Mahodhyamam.

6 Ch. Narasinga Rao, Visakha Ukku Andhrula Hakku Mahodhyamam.

7 Rashtriya Ispat Nigam Limited/Visakhapatnam Steel Plant, Relatório Anual (vários anos), Visakhapatnam, www.vizagsteel.com.

8Navratna (que significa “nove joias”) é um status dado pelo Governo da Índia às empresas do setor público nacionais (central public sector enterprises – CPSEs) no país com base em critérios como rentabilidade e tamanho. Há também duas outras categorias – Maharatna [grande joia] para CPSEs que são maiores e mais rentáveis que as Navratna, e Miniratna [pequena joia] para CPSEs que são menores e menos rentáveis que as Navratna.

9 Utpal Bhaskar, ‘Power Finance Corp Set to Be India’s 11th Maharatna CPSE’, Mint, 20 set. 2021, https://www.livemint.com/companies/news/power-finance-corp-set-to-be-india-s-11th-maharatna-cpse-11632161171972.html.

10 Ashish Rukhaiyar, ‘60 Listed Firms Disclose ₹75,000 Cr. Default”, The Hindu, 9 jan. 2020, https://www.thehindu.com/business/60-listed-firms-disclose-75000-cr-default/article30526706.ece; Vivek Kaul, “Banks Have Written off Bad Loans Worth Rs 10.8 Lakh Crore in Last Eight Years”, Newslaundry, 23 jul. 2021, https://www.newslaundry.com/2021/07/23/banks-have-written-off-bad-loans-worth-rs-108-lakh-crore-in-last-eight-years.

11 Calculado com base em dados publicados pela revista Forbes : ‘India Rich List 2014 – Forbes India Magazine’, Forbes India, acesso em: 26 jul. 2022, https://www.forbesindia.com/lists/india-rich-list-2014/1483/1; Chase Peterson-Withorn, ‘India’s Gautam Adani Passes Warren Buffett to Become World’s 5th Richest Person’, Forbes, 23 abr. 2022, https://www.forbes.com/sites/chasewithorn/2022/04/23/indias-gautam-adani-passes-warren-buffett-to-become-worlds-5th-richest-person/.

12 ET Bureau, ‘Red Carpet, Not Red Tape for Investors, Is the Way Out of Economic Crisis: Narendra Modi’, The Economic Times, 7 jun. 2012, https://economictimes.indiatimes.com/opinion/interviews/red-carpet-not-red-tape-for-investors-is-the-way-out-of-economic-crisis-narendra-modi/articleshow/13878238.cms; Mail Today Bureau, ‘Batting for Privatisation, Narendra Modi Presents Himself as a Right-Wing Alternative to Congress Party’s Centre-Left Policies’, India Today, 9 abr. 2013, https://www.indiatoday.in/india/north/story/narendra-modi-ficci-address-gujarat-chief-minister-right-wing-alternative-privatisation-158190-2013-04-09; Business Today Desk, ‘Government Has No Business to Do Business: PM Narendra Modi’, Business Today, 9 fev. 2022, https://www.businesstoday.in/latest/economy/story/government-has-no-business-to-do-business-pm-narendra-modi-322064-2022-02-09.

13 Ch. Narasinga Rao et al., discussions.

14 Para saber mais sobre a mobilização dos agricultores, ver: Instituto tricontinental de Pesquisa Social, A Revolta dos Agricultores na Índia, dossiê n. 41, 14 jun. 2021, https://dev.thetricontinental.org/dossier-41-india-agriculture/.

15 Abhijit Lele, ‘Steel Firms Dominate RBI’s List of 12 Defaulters’, Business Standard, 17 jun. 2017, https://www.business-standard.com/article/finance/steel-firms-dominate-list-of-rbi-s-12-defaulters-117061601393_1.html.

16 Parliament of India, Rajya Sabha, ‘Cost of Production of Steel in CPSEs’ [Question by Rajya Sabha MP G.V.L. Narasimha Rao and Answer by Faggan Singh Kulaste, Minister of State in the Ministry of Steel], Unstarred Question No. 159 for Answer on 18 jul. 2022. New Delhi: Rajya Sabha Secretariado, julho de 2022.

17 Telangana Today, ‘Visakhapatnam RINL Dispatched over 11,900 MT Oxygen So Far’, Telangana Today, 5 maio 2021, https://telanganatoday.com/visakhapatnam-rinl-dispatched-over-11900-mt-oxygen-so-far.