O golpe contra o Terceiro Mundo: Chile, 1973
Dossiê no. 68
As obras apresentadas neste dossiê também são sobreviventes do golpe de 1973 contra o Chile. Antes do golpe, elas faziam parte do acervo do Museu da Solidariedade, projeto criado pelo governo da Unidade Popular para incentivar a doação de obras de arte das Américas e da Europa. A visão desse projeto, que vigorou de 1971 até o golpe de 1973, era criar um museu de arte internacional para o povo chileno. Após o golpe, no entanto, muitas dessas obras foram destruídas.
Apesar das tentativas do regime golpista de apagar o museu, trabalhadores culturais chilenos que estavam na clandestinidade e no exílio reviveram o instituto no exterior entre 1975 e 1990 sob o nome de Museu Internacional da Resistência Salvador Allende. O projeto foi restaurado em 1991 após o retorno da democracia no Chile e agora é chamado de Museu da Solidariedade Salvador Allende (MSSA).
Todas as imagens incluídas neste dossiê (exceto a fotografia de soldados de Augusto Pinochet queimando livros e a serigrafia America Despierta) foram cedidas pelo MSSA.
Prólogo
Pablo Monje-Reyes, diretor do Ical – Chile
A partir do Instituto de Ciências Alejandro Lipschütz (Ical), do Chile, e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, apresentamos o dossiê n. 68 intitulado O golpe contra o Terceiro Mundo: Chile 1973 (setembro 2023). O desafio trazido por este texto é de uma enorme relevância política, na medida em que se propõe a abordar a análise do golpe de Estado no Chile considerando os efeitos que este teve para os países do Terceiro Mundo e Não Alinhados.
A relação entre o processo da Unidade Popular Chilena (UP), sua interrupção e os processos em andamento em outros países — como na região do Sul Global — têm sido sistematicamente invisibilizados em nosso país, não só pela historiografia oficial, mas também pelas narrativas midiáticas. A interdependência dos processos, a solidariedade e as contribuições ao projeto da UP, assim como as estratégias para gerar novas formas de internacionalismo desaparecem até mesmo das histórias construídas por algumas esquerdas, o que reafirma a “excepcionalidade” do Chile: uma perspectiva ideal para a consolidação do projeto neoliberal.
De um modo geral — e isso também a nível internacional — entende-se que a intervenção dos Estados Unidos (no que se refere ao financiamento, organização e execução do golpe) foi uma resposta ao processo de nacionalização do cobre. No entanto, essa perspectiva não permite avaliar o poder do projeto de nacionalização e o que ele implicava na perspectiva das relações econômicas internacionais e na visão estratégica do governo da Unidade Popular. Este dossiê desenvolve essas duas vertentes: os objetivos políticos da nacionalização do cobre e o papel que esse projeto desempenhou no quadro de uma conversa mais ampla entre os países do Terceiro Mundo para a criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI).
A nacionalização não foi um projeto inovador no quadro do desenvolvimento econômico do Chile. Ela havia sido levantada como uma necessidade e parcialmente executada pelo governo de Frei Montalva (1964-1970), mas é Salvador Allende — ainda quando era senador — quem propõe a diferenciação entre as distintas formas de nacionalizar a produção de bens nacionais. Quando o projeto é finalmente executado, o “camarada presidente” em seu discurso no Dia Nacional da Dignidade (11 de julho de 1971), expõe os números que revelam os limites da “chilenização” de Frei, e afirma:
É por isso que criticamos os acordos do cobre, criticamos a chilenização e criticamos a nacionalização pactuada, e é por isso que sempre dissemos, e confirmamos agora, que éramos partidários de uma nacionalização integral, para que grandes somas não saiam do país, para que o Chile não continue a ser um país mendigo que pede com a mão estendida alguns milhões de dólares enquanto saem de nossas fronteiras altíssimas cifras que vão fortalecer os grandes impérios internacionais do cobre.
Não queremos ser um país em desenvolvimento que exporta capital; não queremos continuar vendendo barato e comprando caro. Por isso existe o programa de Unidade Popular, que é um programa essencialmente patriótico, colocado a serviço do Chile e dos chilenos. E é por isso que estou aqui, como Presidente do povo, para cumprir incansavelmente esse programa.
Para concretizar esta proposta, Allende identifica, valoriza e capacita os trabalhadores do cobre, em seu protagonismo no processo de transformação em curso.
Além da importância econômica que indiquei, temos uma importância política sobre a qual é preciso meditar. Com o passo que vamos dar, quebramos a dependência, a dependência econômica. Isso significa independência política. Seremos donos do nosso próprio futuro, verdadeiramente soberanos em nosso destino. O que se fizer no cobre dependerá de nós, da nossa capacidade, do nosso esforço, da nossa dedicação sacrificial para que o cobre seja plantado no Chile para o progresso do país. Serão as pessoas que terão de compreender, e compreendem, que este é um grande desafio nacional, ao qual não só os mineiros, mas todo o povo deve responder.
Ao mesmo tempo, também situa esse processo no quadro das novas formas de internacionalismo presentes no projeto do Terceiro Mundo.
Quero assinalar que indiscutivelmente o preço do cobre também se manteve alto devido ao conflito no Vietnã, mas os chilenos, em nossa consciência, preferimos que o cobre baixe, desde que deixem de atacar um pequeno e digno povo que luta pela sua independência. Temos consciência revolucionária suficiente para entender que isso pode baixar o preço do cobre, e nós toleramos isso, desde que a paz chegue ao Vietnã e o povo do Vietnã tenha o direito de viver suas próprias vidas.
Não conseguimos desenvolver a capacidade do nosso povo, limitado pela tutela estrangeira que nos foi imposta por planos de desenvolvimento e exploração de fora. Também devemos entender que este é um desafio à nossa capacidade […] Isso será tratado pelos chilenos, nossos compatriotas no mercado mundial e felizmente temos uma linguagem de entendimento com a Zâmbia, Congo e Peru, e tem sido a Cipec,1constituída em escala internacional a que está destinada a defender os interesses de pequenos países produtores como o nosso.
Seguindo a perspectiva que se refere à visão do Chile e da Nova Ordem Mundial, um trecho interessante é o que foi expresso na III reunião da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), realizada em Santiago do Chile em 1972. Nessa conferência, o presidente Allende expôs a posição de seu governo e colocou os objetivos de sua política nas relações econômicas internacionais a partir de uma perspectiva revolucionária e ainda hoje necessária para se manter:
uma ordem econômico-comercial caduca e profundamente injusta para uma equitativa, que assenta numa nova concepção do homem e da sua dignidade, e reformular uma intolerável divisão internacional do trabalho para os países atrasados, porque trava o seu progresso, favorecendo apenas a nações opulentas (Allende, 1972, p. 19).
O fato de nações ricas defenderem suas vantagens traz consigo questões programáticas, políticas e ideológicas que continuam valendo até hoje. Hoje, como ontem, é legítimo e necessário continuar apoiando as sociedades que sofrem as consequências do imperialismo.
Juntamente com o que foi dito anteriormente, este dossiê também fornece uma perspectiva crítica sobre por que os golpes ocorrem. Em particular, analisa o papel dos Estados Unidos na estruturação do golpe no Chile, com base em documentação que, na época, era mantida em segredo, pois sempre se tratou de uma conspiração e ingerência de uma nação imperialista em um país democrático e que definia sua autonomia para construir um novo projeto de sociedade para seu povo. O projeto de Unidade Popular, encabeçado por Salvador Allende, era sem dúvida emancipatório, integracionista e terceiro mundista, era a construção de uma sociedade socialista por meios econômicos democráticos e soberanos. Para o imperialismo, isso era simplesmente inaceitável e este texto aborda magistralmente o papel do imperialismo e suas ações golpistas.
Por último, cabe destacar que os textos incluídos neste dossiê têm a finalidade de serem divulgados e cumprem uma função educativa porque contêm lições que os povos do Terceiro Mundo devem ter presente hoje e sempre.
Em 11 de setembro de 1973, setores reacionários do exército chileno, liderados pelo general Augusto Pinochet, deixaram os quartéis e derrubaram o governo democraticamente eleito do presidente Salvador Allende, da coalizão Unidade Popular. Nos tumultos gerados pelo ataque ao palácio presidencial conhecido como La Moneda, Allende morreu. Os militares e outras forças de segurança iniciaram um ataque aos setores organizados da sociedade, realizando prisões em massa e estabelecendo um regime repressivo, que incluía centros permanentes de tortura e assassinato. Pessoas de amplos setores da esquerda chilena, quando não assassinadas, foram acolhidas em outros países, nos quais se reagruparam e iniciaram uma luta contra a ditadura. Os movimentos dos trabalhadores – agora privados de suas lideranças – tornaram-se alvo da recente administração golpista e neoliberal. Muitos dos membros dessa nova administração, liderada por Pinochet (que se referia a si mesmo como o “Chefe Supremo da Nação”), haviam sido formados nos Estados Unidos; vários deles trabalharam com Milton Friedman na Universidade de Chicago e ficaram conhecidos como Chicago Boys. Os programas e políticas socialistas do governo da Unidade Popular foram desmantelados. O Chile entrou em uma fase crepuscular e tornou-se um laboratório neoliberal.
Por que os soldados deixaram o quartel na manhã de 11 de setembro? Os argumentos apresentados pelo general Pinochet e por aqueles que o cercavam sobre a lei e a ordem não encontram respaldo nos fatos. A verdade é que o golpe – concebido, preparado e executado pelos EUA, como mostram vários documentos desclassificados – não ocorreu apenas naquele dia de 1973. O governo dos Estados Unidos, agindo em nome das corporações transnacionais sediadas nos EUA e da burguesia chilena dependente, nunca desejou a vitória de Allende – o que aconteceu, em 4 de setembro de 1970 – e, por isso, decidiu desestabilizar o governo da Unidade Popular a partir do primeiro dia que a coalizão assumiu a administração, em novembro de 1970.
A motivação do golpe foi a política do governo de Allende de nacionalização do cobre, aprovada no Congresso em julho de 1971, que fazia parte de um debate mais amplo no Terceiro Mundo em relação à criação de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), que reestruturaria o sistema econômico internacional neocolonial de acordo com diretrizes democráticas e daria peso às ideias e aos povos do Terceiro Mundo. A NOEI foi elaborada pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), liderada pelo economista argentino Raúl Prebisch, e aperfeiçoada na terceira sessão da Unctad (ou Unctad III) em Santiago, Chile, realizada de abril a maio de 1972. Essa minuta foi então discutida na quarta cúpula do Movimento dos Não Alinhados (MNA), realizada em Argel (Argélia) entre 5 e 9 de setembro de 1973, na qual a primeira-ministra indiana Indira Gandhi informou aos outros líderes que Allende estava enfrentando um grande desafio em seu país. “Esperamos uma normalização rápida”, afirmou. Em 1º de maio de 1974, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração do Estabelecimento de uma Nova Ordem Internacional, mas o clima para levar adiante tais ideias simplesmente não era favorável naquele momento. O golpe contra o governo de Allende ocorreu não apenas contra sua própria política de nacionalização do cobre, mas também porque Allende havia se colocado como liderança e exemplo a outros países em desenvolvimento que buscavam implementar os princípios da NOEI. Nesse sentido, o golpe dos EUA contra o Chile foi precisamente um golpe contra o Terceiro Mundo.
Soberania e dignidade no Chile
Em 17 de dezembro de 1969, os seis partidos que formaram a coalizão Unidade Popular divulgaram seu programa. Esses seis partidos – o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Partido Radical, o Partido Social-Democrata, o Movimento de Ação Popular Unitária e a Ação Popular Independente – uniram-se em torno desse programa e o utilizaram em sua campanha para eleger Allende nas eleições presidenciais, realizada em 4 de setembro de 1970. O programa expôs o problema de forma precisa e direta:
O Chile vive uma crise profunda que se manifesta na estagnação econômica e social, na pobreza generalizada e nas negligências de todo tipo sofridas por operários, camponeses e demais camadas exploradas, assim como nas crescentes dificuldades que enfrentam empregados, profissionais, pequenos e médios empresários e nas mínimas oportunidades disponíveis para as mulheres e os jovens (Unidade Popular, 1970, p. 3).
Nada aqui surpreenderia nenhum dos povos da África, Ásia e outros países da América Latina. Na Unctad II, em 1968, os 121 governos participantes já estavam desanimados com a baixa taxa média anual de crescimento econômico dos países em desenvolvimento, que havia começado a cair em meados da década de 1960 (Nações Unidas, 1968, p. 7). “Problemas tremendos de pobreza, desnutrição, desemprego e subemprego continuam a afetar milhões de pessoas no mundo”, escreveu a Unctad em uma declaração resumida da conferência. “Isso é desmotivante, mas também um desafio; necessidades devem ser combinadas com ação – ação urgente e concertada”. Os autores desse apelo à ação – que encontrou eco com a linha da campanha eleitoral da Unidade Popular – estavam cientes, entretanto, das limitações impostas pelo sistema mundial neocolonial. “Não se deve esquecer”, continuaram os países participantes, “que a situação existente foi causada por certas potências agindo em seus próprios interesses – potências que continuaram a controlar uma grande parte da economia internacional e a dificultar o desenvolvimento das jovens nações” (Nações Unidas, 1968, p. 77-78).
O programa da Unidade Popular procurou explicar por que a população do Chile – um país rico em recursos naturais (especialmente cobre) – estava lutando para sobreviver:
O que fracassou no Chile foi um sistema que não atende às necessidades de nosso tempo. O Chile é um país capitalista, dependente do imperialismo, dominado por setores da burguesia que estão estruturalmente ligados ao capital estrangeiro. Esses setores são incapazes de resolver os problemas fundamentais do país, problemas que são derivados precisamente dos privilégios de classe dos quais eles nunca abrirão mão voluntariamente (Unidade Popular, 1970, p. 4).
Para a coalizão Unidade Popular de Allende, o foco era o cobre, um dos metais comerciais não ferrosos mais importantes do mundo moderno. Cerca de 20% das reservas mundiais de cobre conhecidas na época estavam no Chile, com reservas substanciais também nos Estados Unidos, na União Soviética, na Zâmbia, no Zaire e no Canadá (Tesar; Tesar, 1973, p. 9). Os EUA eram o maior importador mundial de cobre, que era processado para uso industrial, e a Gran Minería, formada por três empresas multinacionais estadunidenses (Anaconda, Kennecott e Cerro), era responsável por mais de 80% da produção de cobre do Chile.1
Os altos preços do cobre e os altos lucros da Gran Minería na década de 1960 aumentaram a pressão por uma rápida nacionalização. Em 1966, o presidente do Chile, Eduardo Frei, em resposta à crescente pressão, iniciou uma política de “chilenização” do cobre, o que significava que as empresas estadunidenses iriam gradualmente se desfazer da propriedade (embora, apesar dessa nova política, os lucros da Gran Minería tenham aumentado drasticamente entre 1965 e 1971) (Johnson, 1973, p. 28). Como resultado da crescente pressão popular para usar os recursos naturais do Chile em benefício de seu povo, ambos os candidatos à eleição presidencial de 1970 – Allende pela Unidade Popular e Radomiro Tomic pelos Democratas Cristãos – apoiaram a nacionalização (Zauschquevich, Sutilov, 1975; Gorvan, 1972).
Em dezembro de 1970, o governo da Unidade Popular apresentou uma emenda constitucional ao Congresso para nacionalizar as minas de cobre de propriedade da Gran Minería, que não receberia nenhuma indenização adicional. O argumento apresentado pelo governo da Unidade Popular para essa recusa em pagar a indenização – validado pela Comissão Econômica da América Latina (Cepal) da ONU – foi que a Gran Minería já havia se beneficiado de décadas de lucros excessivos que haviam sido remetidos para fora do país e que haviam deixado as minas significativamente esgotadas (Cepal, 1972). A recusa do governo da Unidade Popular em pagar uma indenização adicional à Gran Minería marcou um forte afastamento dos outros partidos políticos, que achavam que as mineradoras teriam que ser indenizadas.
Em 21 de dezembro, Allende discursou na Plaza de la Constitución. “Quero entregar alguns números” (Allende, 1971, p. 71). Depois de mostrar como o Chile havia sido “sangrado”, afirmou categoricamente: “nenhuma compensação será paga pelos jazimentos [de cobre]. […] Estamos agindo dentro dos canais legais e jurídicos. Além disso, é importante ressaltar que as Nações Unidas reconheceram o direito dos povos de nacionalizar as riquezas fundamentais que estão nas mãos do capital estrangeiro” (referindo-se à resolução da Assembleia Geral da ONU, a “Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais”) (Allende, 1971, p. 74 e 76-77). Em 11 de julho de 1971, comemorado hoje como o Dia da Dignidade Nacional, o Congresso Nacional do Chile aprovou a lei n. 17.450, ratificando assim a nacionalização do cobre.
O governo da Unidade Popular esperava usar o aumento das receitas das exportações de cobre para financiar seu programa de transformação da vida no Chile. E foi o que fez, instituindo reformas sanitárias, educacionais e agrárias, construindo casas para a classe trabalhadora e os camponeses e implementando um programa que fornecia meio litro de leite gratuito por dia para as crianças. Em 1973, 3,6 milhões de crianças receberam leite por meio desse esquema, reduzindo drasticamente a taxa de desnutrição entre as crianças, que, antes da Unidade Popular assumir o poder, girava em torno de 20% (Quiles, 2008; Barros, 2003).
Em 13 de janeiro de 1971, na inauguração de uma nova escola sindical na Universidade do Chile, em Valparaíso, Allende declarou que seu país era um “laboratório social” e que estava no meio de “um processo profundamente revolucionário […] que tem as características essenciais de ser realizado dentro da realidade chilena” (Allende, 1971, p. 99-100). O estabelecimento da soberania do Chile sobre sua economia abriria agora a via chilena, a estrada chilena para o socialismo. Dos afuerinos [camponeses sem terra] às enfermeras [enfermeiras], o governo de Allende prometeu uma nova realidade, um futuro socialista.
O Chile e a nova ordem econômica internacional
Em 1971, o Chile tornou-se o 55º membro pleno do Movimento dos Não Alinhados (MNA), cerca de uma década após a formação do grupo em 1961. Até a terceira cúpula do MNA, em Lusaka (Zâmbia), em 1970, na qual o Chile era uma das 12 nações observadoras, Cuba era o único país latino-americano a ser membro pleno. O MNA e a Unctad incubaram debates sobre a Nova Ordem Econômica Internacional, uma proposta por meio da qual os países do Terceiro Mundo buscavam transformar o sistema mundial neocolonial unindo-se em torno da necessidade de controlar seus recursos naturais e estabelecer sua própria capacidade industrial. Parte desse novo dinamismo foi exercido politicamente, pois os países africanos e asiáticos insistiram para que a terceira sessão da Unctad fosse realizada em um país em desenvolvimento, e não em Genebra. Allende fez uma proposta para que Santiago sediasse a sessão, que, após deliberação, foi aceita (Harmer, 2011, p. 82-83). Quando Allende participou da inauguração do prédio onde o fórum seria realizado (em La Alameda, no centro de Santiago), ele disse que esse fórum internacional permitiria que as nações em desenvolvimento “divulgassem de forma enfática a situação dramática de seus países subdesenvolvidos” (Unctad, 1961-1971).2
O novo prédio da Unctad ficava a menos de dez quilômetros do escritório da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), onde economistas de toda a América Latina haviam, desde sua fundação, em 1948, desenvolvido uma teoria da dependência. Essa teoria afirmava que o mundo é movido por um sistema neocolonial no qual os países centrais (as potências imperialistas) dominam a periferia (países em desenvolvimento) por meio da reprodução dos lucros da era colonial; por meio de termos de troca desiguais determinados que usavam a periferia como recurso para matérias-primas e mercado para produtos finais; e também por meio do uso da ajuda ao desenvolvimento para impulsionar um ciclo de endividamento-austeridade que aprisionava os países periféricos (Tricontinental, 2023; Fajardo, 2022). Pedro Vuskovic (1970, 1972), um dos cepalistas, tornou-se ministro de assuntos econômicos de Allende, trazendo essa teoria para o programa da Unidade Popular e para a política do governo. Por um período, o Chile foi o centro do projeto para romper o sistema mundial neocolonial e estabelecer a NOEI. Esses são alguns dos principais elementos que o governo dos EUA e as corporações transnacionais tentaram ignorar como motivos para o golpe de Estado civil-militar.
Na abertura da Unctad III, em 1972, Allende fez um discurso monumental. A missão básica da conferência, segundo ele, era “substituir uma Ordem econômico-comercial caduca e profundamente injusta por uma equitativa que se baseie em um novo conceito de homem e de sua dignidade, e reformular uma divisão internacional do trabalho intolerável para os países atrasados, porque detém seu progresso, enquanto favorece unicamente às nações opulentas” (Nações Unidas, 1973, p. 16). As nações ricas iriam defender suas vantagens com “tenacidade incansável”, nas palavras de Allende, e é por isso que as nações mais pobres precisavam estar unidas e ter clareza sobre seus objetivos. Aqueles presentes não tinham escolha porque, continuou ele, “se o atual estado de coisas persistir, 15% da população do Terceiro Mundo está condenada a morrer de fome” (Allende, 1972b). Allende levantou cinco questões fundamentais que, segundo ele, precisavam ser abordadas na transformação da ordem mundial neocolonial e capitalista em uma ordem baseada no avanço da humanidade:
1. Reformar os sistemas monetário e comercial. Os países do Terceiro Mundo tiveram uma representação mínima na Conferência de Bretton Woods, realizada em 1944 nos Estados Unidos, na qual foram criados o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e estavam totalmente ausentes (exceto por algumas colônias) quando os países ocidentais criaram o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (Gatt) em 1947. Como resultado, esses sistemas monetários e comerciais foram projetados para beneficiar as nações ricas. O Terceiro Mundo criou a Unctad como a plataforma para repensar esses sistemas, mas, desde sua fundação, em 1964, o Ocidente tentou marginalizar a Unctad e impedir que os Estados pós-coloniais introduzissem suas políticas no debate sobre políticas monetárias e comerciais. Em 1971, os Estados Unidos abandonaram unilateralmente o padrão ouro, consagrando o dólar como a moeda fiduciária global e, em 1973, na Rodada de Tóquio de negociações do Gatt, os Estados Unidos, a Comunidade Econômica Europeia e o Japão começaram a reconsiderar o sistema monetário e comercial sem nenhuma contribuição do Terceiro Mundo. Diante desse cenário, disse Allende, a Unctad precisava construir um sistema de comércio que priorizasse o aumento do consumo popular, a erradicação da fome e do analfabetismo e a regulamentação do poder das corporações transnacionais.
2. Cancelar os ônus da dívida. Na reunião do Banco Mundial em Nairóbi (Quênia), em 1973, cerca de um ano após o discurso de Allende na Unctad III, o presidente do banco, Robert McNamara, afirmou que a “essência do problema da dívida” não é seu volume, mas sim o fato de que “a dívida e os seus pagamentos estão crescendo mais rapidamente do que as receitas necessárias para pagá-la” (McNamara, 1973, p. 8). Os países do mundo em desenvolvimento estavam tentando atrair financiamento não para fins de investimento de capital, mas para pagar o serviço de suas dívidas.
Na Unctad III, Allende apontou que as dívidas dos países em desenvolvimento já haviam chegado a 70 bilhões de dólares. Elas, segundo ele, eram “em grande parte contraídas para compensar os danos causados por um sistema de comércio injusto, para custear o estabelecimento de empresas estrangeiras em nosso território, e para lidar com a exploração especulativa de nossas reservas” (Nações Unidas, 1973, p. 354). Documentos importantes, como a Declaração de Lima do G-77 e a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas O fardo crescente dos serviços da dívida (ambas publicadas em 1971), já haviam levantado esse sentimento, instando os credores a reconsiderar suas ações “para evitar crises de dívida em longo prazo”, como expressou a ONU (Assembleia Geral das Nações Unidas, 1971).
3. Consolidar o controle sobre os recursos naturais. Em maio de 1969, em Viña del Mar (Chile), os governos da América Latina enfatizaram a necessidade de obter o controle sobre seus próprios recursos naturais. O texto que surgiu dessa reunião, o Consenso de Viña del Mar, influenciou a Declaração de Lima (1971), que Allende citou durante a Unctad III: “o reconhecimento de que todos os países têm o direito soberano de dispor livremente de seus recursos naturais para o benefício do desenvolvimento econômico e do bem-estar de seu próprio povo [e que] qualquer medida ou pressão externa, política ou econômica, aplicada sobre o exercício desse direito é uma violação flagrante dos princípios de autodeterminação dos povos e de não intervenção, conforme estabelecido na Carta das Nações Unidas e, se for buscada, pode constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais” (Nações Unidas, 1973, p. 355). “O Chile nacionalizou o cobre”, disse Allende, e essa nacionalização foi paga com os lucros excessivos roubados pelo conglomerado de cobre. O governo da Unidade Popular não estava apenas afirmando ideais, disse Allende – ele havia colocado essas ideias em prática com “profunda convicção” (Nações Unidas, 1973, p. 351-355).
4. Afirmar o direito das nações à tecnologia e à ciência. Os países do Terceiro Mundo, disse Allende, “foram deixados à margem do avanço tecnológico e nos exportaram uma tecnologia que muitas vezes constituiu um meio de alienação cultural e de incremento da dependência”. Países como o Chile precisavam desenvolver sua própria capacidade científica e tecnológica e colaborar com outros países para criar tecnologias “em função de nossas necessidades e de nossos planos de desenvolvimento” (Allende, 1972a).
5. Construir uma economia de paz. A necessidade do momento, disse Allende, era “transformar uma economia de guerra em uma economia de paz”, usar os gastos desperdiçados em guerras e armamentos para “criar as bases de uma economia solidária em escala mundial” (Nações Unidas, 1973, p. 357). Em 1970, o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) observou que 7% do Produto Interno Bruto global era destinado a despesas militares, “equivalente à renda total da metade mais pobre da população mundial” (Sipri, 1970, p. 3). Um corte nos gastos com armas, disse Allende, “financiaria grandes projetos e programas para os países [do Terceiro Mundo]” (Nações Unidas, 1973, p. 357).
Em abril de 1972, William Jorden, assistente do assessor de segurança nacional para assuntos latino-americanos dos EUA, Henry Kissinger, escreveu que Allende estava “cada vez mais se posicionando como líder do Terceiro Mundo” (Harmer, 2011, p. 161). O exemplo da via chilena, ou o caminho chileno para o socialismo, fortalecido pela nacionalização incisiva de suas reservas de metal, proporcionou a Allende o prestígio necessário para emergir como uma voz clara para o Terceiro Mundo, à medida que impulsionava a NOEI. Como resultado, a liderança do Chile, com o persistente trabalho diplomático de outros países do Terceiro Mundo (incluindo o México), pressionou a Unctad III a aprovar a “Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados”, que acabou sendo adotada pela Assembleia Geral da ONU como uma resolução em dezembro de 1974.3
Embora esses exemplos de avanço na Unctad III tenham sido mínimos, a sensibilidade geral no Terceiro Mundo era, no entanto, de que a mudança era inevitável.4 A Tríade (Estados Unidos, Europa e Japão) esforçou-se muito para deter a NOEI e, para isso, formou o G-7 em 1973. Na primeira reunião do G-7, Helmut Schmidt, da Alemanha Ocidental, disse que os líderes ocidentais não podem permitir que as decisões sobre a economia mundial sejam tomadas por “funcionários em algum lugar da África ou em alguma capital asiática”. O primeiro-ministro Harold Wilson, do Reino Unido, concordou, acrescentando que essas decisões devem ser tomadas pelo “tipo de pessoas sentadas ao redor desta mesa” (Prashad, 2013, p. 53-54).
O que os golpes fazem
Em 5 de agosto de 1970, um mês antes de Allende vencer a eleição presidencial, o governo dos Estados Unidos já estava pensando em tomar “medidas para derrubar Allende”, conforme escreveu o secretário de Estado adjunto dos EUA, John Crimmins, ao embaixador dos EUA, Edward Korry (Kornbluh, 2013, p. 7). Duzentos anos atrás, em 1823, os Estados Unidos apresentaram a Doutrina Monroe, uma afirmação clara de que a Europa não deveria interferir nas Américas, pois o hemisfério era o “quintal” dos Estados Unidos.5 As intervenções na América Latina – da tomada de pouco mais da metade dos territórios do México, em 1848, à anexação de Cuba e Porto Rico em 1898, passando pela derrubada de uma série de governos em todo o hemisfério – tornaram-se comuns. Em 1964, o governo dos Estados Unidos ajudou abertamente os militares brasileiros a remover o governo democraticamente eleito de João Goulart, estabelecendo uma ditadura militar que durou 21 anos e auxiliou os EUA na instalação de ditaduras militares em toda a América do Sul (Bolívia, 1971; Uruguai, 1973; Chile, 1973; Peru, 1975; Argentina, 1976) por meio do que ficou conhecido como Operação Condor.
Apesar de gastar milhões de dólares com os democratas-cristãos na década de 1960, o governo dos Estados Unidos não conseguiu impedir a vitória de Allende. Treze dias após as eleições, o governo dos EUA criou o Projeto Fubelt para tentar impedir que Allende assumisse o poder e caso ele fosse empossado desestabilizar o Chile e retirá-lo do cargo. Como a força-tarefa da CIA para o Chile escreveu no Relatório de Situação n. 2, “há uma possibilidade iminente de golpe” (Kornbluh, 2013, p. 2).
O governo dos Estados Unidos tentou derrubar Allende de todos os meios possíveis. Isso incluiu um complô militar que resultou no assassinato do mais alto oficial militar do Chile, o general René Schneider, bem como uma campanha de pressão para que o antecessor de Allende, o ex-presidente Frei, anulasse a eleição e tomasse o poder. O embaixador dos EUA, Edward Korry, reuniu os líderes empresariais na embaixada e lhes disse que “nem uma porca ou parafuso será permitido chegar ao Chile sob Allende” (Kornbluh, 2013, p. 7). Korry e seu sucessor, Nathaniel Davis, trabalharam em estreita colaboração com os membros do Monday Club, um grupo de líderes empresariais chilenos, proprietários de jornais (especialmente El Mercurio) e políticos de direita que se reuniam todas as segundas-feiras no escritório de Hernan Cubillos (que se tornaria ministro das Relações Exteriores de Pinochet de 1978 a 1980) na rua Lord Cochrane (Santiago). Korry, que dirigia o clube, não perdeu tempo em colocar em prática a instrução do presidente dos EUA, Richard Nixon, de 15 de setembro de 1970, de “fazer a economia gritar” (Kornbluh, 2013, p. 36).
O governo dos Estados Unidos impediu que o Chile tivesse acesso a dólares por meio de canais comerciais e encerrou a ajuda, pressionou as empresas de transporte marítimo a cobrarem taxas de frete mais altas e incentivou as empresas transnacionais expropriadas a confiscarem os ativos chilenos no exterior. O fato de os preços do cobre terem entrado em colapso em 1971 não ajudou o governo de Allende, que lutou contra esse estrangulamento econômico, mas ainda assim conseguiu se manter. De fato, como um indicador de sua resiliência política, a chapa da Unidade Popular obteve 43,39% dos votos nas eleições parlamentares de março de 1973 – mais do que Allende obteve em 1970 e muito mais do que o esperado pelo próprio partido ou pelo governo dos EUA. Como o embaixador dos EUA, Nathaniel Davis, disse a Washington, as políticas do governo da Unidade Popular fizeram com que a população ficasse “materialmente melhor” e “sem dúvida preparada para pagar algum preço econômico” por um “maior senso de dignidade e satisfação por abater as classes altas” (Harmer, 2011, p. 205). Um mês depois, Frei e outras forças políticas pró-capitalistas, como a CIA as descreveu, chegaram à conclusão de que, em todo o chamado Terceiro Mundo, o sistema capitalista tradicionalista não é capaz de realizar as metas e aspirações de desenvolvimento. Frei também ficou impressionado com o relativo sucesso e a rapidez com que Allende […] desmantelou os bastiões do poder econômico anteriormente existentes […] Frei reconhece que não pode reverter muito do que a UP [Unidade Popular] fez (Harmer, 2011, p. 205-206).
Em outras palavras, os partidos clássicos da direita chilena haviam admitido a derrota e, portanto, outras forças – mais duras – teriam de ser convocadas para esmagar a via chilena e o Projeto do Terceiro Mundo. Essas forças se reuniram em torno de Pinochet, que enviou seus tanques para fora dos quartéis em 11 de setembro para derrubar o governo da Unidade Popular. Dois anos depois, o papel dos Estados Unidos na fomentação do golpe ficou disponível para todos verem devido às revelações do relatório do Comitê Church do Congresso dos EUA (embora as implicações do relatório não tenham sido totalmente digeridas em todo o mundo) (Senado dos EUA, 1976).6
Antes do golpe, grupos de extrema direita pintaram o sinistro slogan Ya viene Yakarta7 nos muros de Santiago (Corvalán, 2003, p. 247), evocando a memória do assassinato de mais de um milhão de comunistas, sindicalistas, militantes camponeses, artistas e simpatizantes da esquerda na Indonésia pelo regime golpista do General Suharto, instalado em 1965 para destituir o governo de esquerda do presidente Sukarno (Bevins, 2020). As palavras nos muros de Santiago prenunciavam a violência que se repetiria no Chile, quando o regime golpista de Pinochet assassinou milhares de pessoas, prendeu outras dezenas de milhares e exilou centenas de milhares, trabalhando em estreita colaboração com a CIA para eliminar clinicamente a esquerda do país e dar uma lição a qualquer projeto do Terceiro Mundo que tentasse estabelecer sua soberania e autodeterminação.8
A violência do regime golpista moldou as instituições estatais do Chile e a impunidade da polícia, os carabineros, nas décadas seguintes. O assassinato brutal de artistas de renome mundial, como Pablo Neruda e Víctor Jara, ilustrou o profundo ódio do regime golpista pela esquerda e a falta de preocupação com a condenação internacional da violência do regime. A Constituição de Pinochet de 1980 – que permanece em vigor apesar do retorno à democracia em 1990 e dos esforços subsequentes para alterá-la – continua a dar ao poder executivo poderes emergenciais para suspender os direitos civis (que foram usados com efeito letal contra os protestos de 2011-2013 e 2019).
Em 1969, um grupo de economistas no Chile concluiu o relatório El ladrillo [O tijolo].9 O prólogo foi escrito por Sergio de Castro, formado na Universidade de Chicago, que se tornaria o ministro da economia de Pinochet. Castro, juntamente com Carlos Massad (que foi chefe do Banco Central de 1967 a 1970 e de 1996 a 2003), foi a Chicago como parte de um programa estabelecido com a Fundação Ford e a Fundação Rockefeller (Edwards, 2023; Gavilán, 2013). Castro, Massad e o restante dos Chicago Boys conduziram uma agenda de “terapia de choque” que incluía cortes severos nos gastos do governo, liberalização das importações e uso de entidades estatais para oferecer vantagens a grandes conglomerados empresariais. Esses conglomerados incluíam corporações transnacionais e casas comerciais de propriedade de comparsas de Pinochet, como o Banco Hipotecario y de Fomento de Chile e o império Cruzat-Larraín, conhecidos coletivamente como “Pirañas”. Em 1978, Cruzat-Larraín controlava 37 das 250 principais empresas do Chile, enquanto Vial controlava 25 delas (Monckeberg, 1980, p. 25-29). José Piñera, um dos Chicago Boys e irmão mais velho de Sebastián Piñera (que foi presidente de 2010 a 2014 e de 2018 a 2022), decidiu destruir as leis trabalhistas e desmobilizar os sindicatos por meio de seu cargo como chefe do Ministério do Trabalho. Os Chicago Boys usaram o Chile como um laboratório para sua religião neoliberal, convidando os dois sacerdotes do neoliberalismo para se encontrarem com Pinochet: Milton Friedman, em 1975, juntamente com o economista brasileiro golpista Carlos Langoni, e Friedrich Hayek, em 1977.10 As políticas de Pinochet produziram um boom para os ricos e um grande sofrimento para a grande maioria da população.
Apesar da imensa repressão do regime golpista, as linhagens que produziram o governo da Unidade Popular se reconstituíram e iniciaram um processo de resistência que, por fim, derrotou o golpe. O Partido Comunista (cuja liderança havia sido assassinada quatro vezes), a Frente Patriótica Manuel Rodríguez, o Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR) e outros grupos de esquerda reuniram corajosamente suas fileiras e iniciaram um processo de organização e sabotagem, bem como de socorro a uma população desesperada e aterrorizada. Um movimento sindical abalado, que há muito tempo era a espinha dorsal da esquerda chilena, encontrou seu alento com novos líderes, como Oscar Piño, na fábrica da Goodyear em Santiago. Esses avanços são exatamente o motivo pelo qual alguns desses líderes foram assassinados, como Tucapel Jiménez, fundador da federação trabalhista Grupo dos Dez, que representava 500 mil trabalhadores quando foi morto em 1982.
Inúmeros atos de solidariedade aos trabalhadores chilenos se espalharam pelo mundo, com vários sindicatos e organizações participando de um movimento de solidariedade comparável apenas ao movimento pela paz e contra a guerra dos EUA contra o Vietnã. Os governos e movimentos políticos dos países não alinhados mantiveram uma atitude de simpatia e colaboração com os democratas no Chile e no mundo. Esse movimento de solidariedade internacional, inclusive no Terceiro Mundo, nunca permitiu que Pinochet se tornasse respeitável.
Se o slogan do bloco imperialista em antecipação ao golpe foi “Jacarta está chegando”, a palavra de ordem de qualquer projeto que queira estabelecer a soberania do Terceiro Mundo e a dignidade dos povos é “Chile está chegando”.
Notas
Prólogo
1 Consórcio Intergovernamental de Países Exportadores de Cobre.
1 Em 1970, apenas seis corporações multinacionais detinham 60% da produção mundial de cobre, sendo três empresas estadunidenses, duas britânicas (British Insulated Callender’s Cables e IMI Refiners) e uma belga (Metallurgie Hoboken-Overpelt). Ver: Tesar e Tesar, 1973, p. 9.
2 O prédio onde foi realizada a conferência foi construído em tempo recorde, com a ajuda de voluntários. Após o golpe, como o La Moneda havia sido danificado, o edifício foi usado como sede da junta militar. Parte do edifício é hoje o Centro Cultural Gabriela Mistral.
3 Em 1970, a Comissão de Direitos Humanos da ONU nomeou o diplomata iraniano Manouchehr Ganji como Relator Especial. O relatório de Ganji,The Widening Gap: A Study of the Realisation of Economic, Social, and Cultural Rights [A brecha cada vez maior: um estudo sobre a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais], de 1973, enfatizou as fraquezas econômicas e políticas do Terceiro Mundo e sugeriu que a luta pelos direitos humanos deveria estar relacionada à luta por uma nova ordem econômica internacional.
4 O ministro das relações exteriores da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, disse em 1972 que “o caminho para a emancipação econômica do Terceiro Mundo (…) não passa pela Unctad”; no entanto ele desempenhou um papel de destaque na IV Cúpula do MNA, na Argélia, na qual foi estabelecida a base para a resolução da NOEI na Assembleia Geral da ONU. Ver Harmer, Allende’s Chile, p. 163.
5No entanto, entre 1810 e 1814, o governo dos EUA enviou Joel Roberts Poinsett à Argentina e ao Chile para ajudar na guerra contra o Império Espanhol e instalar os interesses dos EUA na vanguarda.
6 Grande parte desse material – e mais liberações da CIA e dos documentos de Nixon – foi coletado em The Pinochet Files. Para uma visão mais ampla da interferência e das intervenções de Washington, consulte Vijay Prashad, Balas de Washington – uma história da CIA, golpes e assassinatos. São Paulo: Expressão Popular, 2021.
7 Em tradução literal, “Jacarta está chegando” [N.T.]
8Embora esses números permaneçam em disputa, os números oficiais podem ser encontrados no Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación [Relatório da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação do Chile]. Santiago: Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, 1991, também conhecida como Comissão Retting, e Informe de la Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura [Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura]. Santiago: Comisión Nacional sobre Prisión Politica y Tortura, 2004, também conhecida como Comissão Valech; The Pinochet Files, p. 220-225.
9 O livro foi publicado em 1992 pelo Centro de Estudios Públicos, criado em 1980 para coordenar o trabalho dos Chicago Boys.
10 A viagem de Friedman é bem conhecida, mas o mesmo não ocorre no caso de Hayek. Sobre essa viagem. Ver: Bruce Caldwell e Leonidas Montes, “Friedrich Hayek and his Visits to Chile”, Review of Austrian Economics 28, n. 3, 2015.
Referências bibliográficas:
“Discurso del doctor Salvador Allende G. Presidente de Chile”. Pronunciado el 13 de abril de 1972 en Santiago, con motivo de la inauguración de la Tercera Conferencia Mundial de Comercio y Desarrollo. Santiago: Centro de Estudios Miguel Enríquez (CEME), Archivo Chile. Disponible en: https://www.archivochile.com/S_Allende_UP/doc_de_sallende/SAde0027.pdf.
__________. “El desarrollo del Tercer Mundo y las relaciones internacionales”, discurso inaugural na Unctad III. Santiago, 13 abr. 1972b. Disponível em: https://www.marxists.org/espanol/allende/1972/abril13.htm
__________. “Nacionalización del cobre”. In: La vía chilena hacia el socialismo. Santiago: Editorial Fundamentos, 1971.
Assembleia Geral das Nações Unidas. “The Increasing Burden of Debt Services”, A/RES/2807, 14 dez. 1971.
Barros, F. M. “Prevención de la desnutrición en Chile. Experiencia vivida por un actor y espectador”, Revista Chilena de Nutrición 30, n. 1, 2003.
Bastías, M. Sociedad civil en dictadura: Relaciones transnacionales, organizaciones y socialización política en Chile. Santiago: Universidad Alberto Hurtado, 2013.
Bevins, V. The Jakarta Method: Washington’s Anticommunist Crusade and the Mass Murder Program that Shaped Our World. New York: Public Affairs, 2020.
Caldwell, B.; Montes, L. “Friedrich Hayek and his Visits to Chile”. Review of Austrian Economics v. 28, n. 3, 2015.
Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Estudio económico de América Latina 1971. New York: Nações Unidas, 1972.
Edwards, S. The Chile Project: The Story of the Chicago Boys and the Downfall of Neoliberalism. Princeton: Princeton University Press, 2023.
Fajardo, M. The World That Latin America Created: The United Nations Economic Commission for Latin America in the Development Era. Cambridge: Harvard University Press, 2022.
Gavilán, J. C. Antecedentes del neoliberalismo en Chile (1955–1975): El autoritarismo como camino a la libertad económica. Santiago: Universidad de Chile, Facultad de Derecho, 2013.
Girvan, N. Copper in Chile. Mona: University of the West Indies, Institute of Social and Economic Research, 1972.
Harmer, T. Allende’s Chile and the Inter-American Cold War. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.Dependência e superexploração: a relação entre o capital estrangeiro e as lutas sociais na América Latina, dossier n. 67, ago 2023. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/dossier-67-teoria-marxista-dependencia/
Johnson, D. (ed.). The Chilean Road to Socialism. Garden City: Anchor Press, 1973.
Kornbluh, P. The Pinochet File. A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability. New York: The New Press, 2013.
Monckeberg, M. O. “El mapa del imperio Cruzat-Larraín’, Hoy, n. 145, 30 abr. 1980.
McNamara, R. Address to the Board of Governors. Nairobi: World Bank Group, 1973.
Nações Unidas. Proceedings of the United Nations Conference on Trade and Development. Third Session, v. 1. New York: United Nations, 1973.
__________. “Series S-0858: Commissions, Committees, and Conferences”. Arquivos do Secretário-Geral U. Thant, Unctad, 1961–1971. Disponível em: https://search.archives.un.org/commissions-committees-and-conferences
__________. Proceedings of the United Nations Conference on Trade and Development. Second Session, v. 1, New York: United Nations, 1968.
Prashad, V. The Poorer Nations: A Possible History of the Global South. Verso Books, 2013.
__________. Balas de Washington – uma história da CIA, golpes e assassinatos. São Paulo: Expressão Popular, 2021.
Quiles, M. A. Compañero Presidente: Salvador Allende, una vida por la democracia y el socialismo. València: València University, 2008.
Senado dos Estados Unidos. Senate Select Committee to Study Governmental Operations with Respect to Intelligence Activities. Washington, 1976. Disponível em: https://www.senate.gov/about/powers-procedures/investigations/church-committee.htm
Stockholm International Peace Research Institute (Sipri). SIPRI Yearbook of World Armaments and Disarmament 1969/70. Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1970.
Tesar, C. J.; Tesar, S. C. “Recent Chilean Copper Policy”, Geography, v. 58, n. 1, jan. 1973.
Unidade Popular. Programa básico de gobierno de la Unidad Popular. Candidatura presidencial de Salvador Allende. Santiago: Instituto Geográfico Militar, 1970.
Vuskovic, P. “Algunas experiencias del desarrollo latinoamericano”. In: Dos polémicas sobre el desarrollo de América Latina. Santiago: Editorial Universitaria, 1970.
__________. “La política de transformación y el corto plazo”. In: Martner, G. (ed.). El pensamiento económico del gobierno de Allende. Santiago: Editorial Universitaria, 1972.
Zauschquevich, A.; Sutulov, A. El cobre chileno. Santiago: Corporación del Cobre, 1975.
https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/