A organização política do MST
Este dossiê faz um raio-x do Movimento Sem Terra no Brasil e analisa as formas de organização e de luta do MST.
As artes desse dossiê fazem parte da chamada de arte “MST 40 anos“, organizada pelo Movimento Sem Terra, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Alba Movimentos e a Assembleia Internacional dos Povos.
Agradecemos imensamente aos mais de 150 artistas inscritos. Sua contribuição e solidariedade com esse processo enriquecem e embelezam ainda mais a luta da classe trabalhadora, em especial, a luta camponesa, além de trazer reflexões sobre os desafios que temos pela frente.
Introdução
Em setembro de 1982, 30 trabalhadores rurais e 22 agentes pastorais reuniram-se em Goiânia, na região central do Brasil, em um encontro organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), um braço da Igreja Católica inspirado pela Teologia da Libertação. Estas poucas lideranças representavam as primeiras ações camponesas após 18 anos de repressão da luta camponesa pela Ditadura empresarial-militar, que governou o país por 21 anos (1964-1985).
O cenário era esperançoso. A Ditadura definhava diante do fracasso econômico e da retomada de lutas de massas no país, especialmente de um novo movimento sindical que produziria novas lideranças e resultaria na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), uma vigorosa central sindical sem paralelos na história do Brasil. Contextos semelhantes se observavam em todo o continente latino-americano e caribenho, quando outras ditaduras militares, também alinhadas aos Estados Unidos, agonizavam, enquanto a luta na Nicarágua e El Salvador despertava as mesmas inspirações que a Revolução Cubana em anos anteriores.
Os camponeses eram ainda uma força dispersa em ações locais num país de proporções continentais, e enfrentavam, além da repressão política, as consequências de uma modernização forçada da agricultura baseada em alta mecanização, uso intensivo de agrotóxicos e subsídios para grandes propriedades rurais, que estimulava o êxodo rural. Ainda assim, desde 1979, surgiam algumas ocupações de grandes propriedades de terra em alguns estados, de forma isolada. Muitas delas contaram com a contribuição e a participação da CPT. A reunião em Goiânia discutia o futuro destas ações e, ao final, indicou a necessidade de construir um movimento nacional e autônomo de camponeses para lutar pela reforma agrária. Foram necessários ainda dois anos até que estas articulações resultassem na fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), em 1984. Este primeiro encontro contou com a presença de 92 lideranças.
Doze anos depois, em 1996, o MST já estava organizado em todas as regiões do país, havia conquistado terra para milhares de famílias, os assentamentos de reforma agrária recebiam o apoio e solidariedade de outras organizações de esquerda brasileiras e internacionais, mas ainda não era considerado uma força relevante na luta política, sendo desconhecido da maior parte da população urbana do país. Naquele ano, no entanto, milhares de camponeses marchavam em direção a Belém, capital do estado do Pará, na região amazônica, exigindo uma audiência com o então governador da época. Porém, durante a caminhada, em Eldorado dos Carajás, eles foram cercados por forças policiais e pistoleiros contratados por grandes empresas da região. À frente dos marchantes estava Oziel Alves, um jovem de 19 anos, com a responsabilidade de manter o ânimo de seus companheiros com palavras de ordem e de motivação. Oziel foi uma das lideranças identificadas pelos policiais e separado do grupo. Antes de ser executado de joelhos, os policiais pediram que ele repetisse, diante das armas, o que dizia há poucos minutos no microfone. Oziel não teve dúvidas, e suas últimas palavras foram: “Viva o MST!”.
Oziel foi um dos 19 mortos no que ficou conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás”. Os dias seguintes aos assassinatos foram registrados pelo fotógrafo de renome internacional, Sebastião Salgado, ganhando repercussão mundial. As imagens, acompanhadas da música do cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, e das palavras do escritor José Saramago, atravessaram o globo em uma exposição chamada Terra.
Mas não foi a tragédia que tornou o MST reconhecido como força política, mas sua resposta à repressão. No ano seguinte, diante da impunidade dos governos e da paralisia da reforma agrária, o MST decidiu iniciar uma marcha no mês de fevereiro, com 1.300 pessoas, partindo de três pontos do país, e programada para chegar em Brasília, capital federal, no dia 17 de abril, exatamente um ano depois do Massacre de Eldorado do Carajás. Na época, o Ministro do Desenvolvimento Agrário dizia que a marcha jamais chegaria em Brasília. Entretanto, no dia previsto, os Sem Terra entraram na capital acompanhados por 100 mil pessoas, no que se tornou o maior ato político contra o governo neoliberal do então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). A demonstração de força e organização colocou o MST entre os principais protagonistas da luta política no Brasil desde então1.
Em 2005, o MST realizou uma nova marcha nacional. Agora, o presidente da República era Luiz Inácio Lula da Silva, um antigo aliado e apoiador da luta pela reforma agrária. A marcha pretendia sensibilizar o governo para as mudanças causadas pela financeirização na agricultura e reivindicar um novo Plano Nacional de Reforma Agrária2. Desta vez foram 15 mil marchantes, uma pequena cidade em movimento que erguia suas barracas em um novo lugar do trajeto a cada dia, com cozinhas para alimentar todos os marchantes, banheiros, estrutura para as crianças que acompanhavam seus pais e suas mães e estudos após os dias de caminhada. Para garantir a organização das fileiras, uma rádio transmissora itinerante acompanhava a marcha e era ouvida por 15 mil aparelhos de rádios carregados pelos camponeses. Depois da Marcha, o Exército brasileiro convidou o MST para uma palestra na Escola Superior de Guerra para entender como um movimento popular possuía aquele grau de organização3.
Ao longo destas quatro décadas de existência, completadas no ano de 2024, o MST alcançou algumas vitórias significativas: 450 mil famílias conquistaram terras, transformadas em assentamentos da reforma agrária. Nestes assentamentos, o trabalho pode ser individual ou cooperativo; um dos resultados foi a criação de 185 cooperativas de produção, de comercialização e prestação de serviços e 1900 associações de camponeses. Parte do produzido nos assentamentos é beneficiado em 120 agroindústrias próprias. Nos acampamentos, há ainda 65 mil famílias organizadas que lutam pela terra4.
A longevidade do MST é carregada de significados. Em toda a história brasileira, nenhum movimento social camponês conseguiu sobreviver por sequer uma década diante do poder político, econômico e militar dos grandes proprietários de terra. Existem inúmeros componentes para a resiliência do MST, entre eles, a solidariedade internacional e nacional recebida. Há também dimensões produzidas na luta que mereceriam aprofundamento, como a proposta pedagógica da Educação no Movimento, a Formação Política, a organização das mulheres, a produção agroecológica e a organização de cooperativas.
Entre tantas dimensões, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social escolheu as formas de organização e de luta do MST como tema deste dossiê. Efetivamente, a força de um movimento popular vem da quantidade de pessoas que organiza e do seu método de organização. Esta é uma das principais explicações de como o Movimento Sem Terra resiste e cresce diante de uma correlação de forças tão desigual. E esta experiência, sem pretensões de oferecer fórmulas, mas compreendidas no contexto da luta brasileira, pode contribuir com as reflexões e organizações de outros movimentos populares e camponeses pelo mundo.
A Questão Agrária no Brasil
O Brasil foi fundado e organizado a partir do século XVI, como uma empresa capitalista, baseada na grande propriedade da terra, no trabalho escravo e na monocultura para exportação. O empreendimento colonial português provocou uma violenta ruptura – pela pólvora e pela cruz – com o modo de vida das sociedades indígenas, introduzindo um conceito que não fazia o menor sentido para estas comunidades: a propriedade dos bens comuns da natureza5.
Em 1850, diante do eminente fim da escravidão dos movimentos abolicionistas e rebeliões da população escravizada, o então império brasileiro instituiu a primeira Lei de Terras para impedir que os libertos tivessem acesso a maior fonte de riquezas do país. Por esta Lei, a terra passou a ser também Mercadoria. Mais do que isso, este modelo chamado de Plantation – o latifúndio monocultor para exportação baseado na superexploração do trabalho – será a única constante na história brasileira, independente da soberania (colônia portuguesa ou nação independente), do regime (monarquia ou República) e do sistema de governo (parlamentarista ou presidencial).
E, evidentemente, diante desta contradição, a questão agrária esteve no centro das rebeliões, revoltas e movimentos populares da história do país, desde a resistência indígena, as rebeliões contra a escravidão e comunidades quilombolas aos primeiros movimentos camponeses e sindicais. Também é ilustrativo o papel do Estado na defesa dos interesses de latifundiários e na repressão aos pobres. Enquanto as populações indígenas e escravizadas eram perseguidas e combatidas por milícias particulares, o próprio Exército brasileiro tratou de combater e eliminar os movimentos de Canudos (1897), uma comunidade autogestionada de 25 mil camponeses, e Contestado (1916), uma revolta armada de agricultores para impedir que suas terras fossem tomadas por uma empresa ferroviária estadunidense, e das organizações que lutavam por reforma agrária antes do golpe empresarial-militar de 1964, como as Ligas Camponesas.
Como consequência, o Brasil do século XXI permanece ostentando o posto de segunda maior concentração de terras do planeta, título que defendeu durante todo o século passado, com 42,5% das propriedades sob controle de menos de 1% dos proprietários (DIEESE, 2011). Do outro lado, 4,5 milhões de camponeses são considerados sem-terras6.
O inimigo de classe dos sem terras é o latifundiário, o grande proprietário de terras e as empresas transnacionais que se apropriam das terras para a produção de commodities. Porém, parte da pressão do movimento popular precisa ser direcionada também ao Estado. A atual Constituição brasileira foi aprovada em 1988, após o fim da ditadura empresarial militar, e como foi construída em um momento de ascensão das lutas de massas populares, incorporou muitos aspectos progressistas em sua redação, inclusive para a Reforma Agrária. O artigo 184 da Constituição Federal estabelece que as propriedades agrícolas precisam cumprir também uma função social – devem ser produtivas, respeitar os direitos trabalhistas e ambientais. Caso não cumpram estes critérios podem ser desapropriadas para a reforma agrária pelo Estado, responsável por indenizar o proprietário e assentar as famílias sem terras nestas áreas, que passam a ser propriedade pública.
A natureza do latifúndio, porém, se transformou nas últimas décadas para o modelo agrícola chamado Agronegócio. A grande propriedade improdutiva e arcaica, utilizada como mecanismo de especulação, foi sendo incorporada por volumosos investimentos de capital financeiro internacional, controlando toda a cadeia produtiva rural – desde as sementes à comercialização dos produtos agroindustrializados. Em 2016, 20 grupos estrangeiros controlavam 2,7 milhões de hectares no Brasil (MARTINS, 2020). Este controle acentuou a monocultura para exportação, agora convertida em commodities, produtos primários comercializados em larga escala, com um padrão único global e utilizado como ativo financeiro e especulativo, negociado nas Bolsas de Valores. No Brasil, a produção de apenas cinco culturas – soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e a pecuária bovina – ocupavam, em 2021, 86% de toda área agrícola e representam 94% de todo volume e 86% do valor da produção.7 O Agronegócio apoia-se ainda no uso intensivo de agrotóxicos, o que tornou o país no maior consumidor de venenos agrícolas do mundo, com um consumo recorde de 130 mil toneladas em 20238.
Este poder econômico se expressa também no poder político. O Agronegócio ocupou cargos ministeriais em todos os governos brasileiros das últimas três décadas. No Congresso Nacional, a Bancada Ruralista, articulação suprapartidária dos parlamentares em defesa dos interesses do setor, reúne 324 deputados federais (61% da Câmara) e 50 senadores (35% do Senado)9. Força suficiente para impor leis de desregulamentação ambiental e territorial e para submeter o MST a investigações em quatro Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) em duas décadas. Nenhuma outra organização popular na história do Brasil sofreu tantas tentativas de criminalização pelo Parlamento. A primeira delas foi criada no primeiro governo do presidente Lula para obrigar o Poder Executivo a recuar nas relações com o Movimento e impedir a destinação de recursos públicos para a reforma agrária, além de criminalizar a luta pela terra. A última delas, em 2023, tinha objetivos semelhantes, novamente para pressionar um novo governo de Lula, mas teve um efeito reverso. Os parlamentares que conduziam a comissão eram parte do núcleo mais radical do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O MST, por sua vez, havia ampliado seu reconhecimento público desde as ações de solidariedade na pandemia de Covid-19. Desta forma, a CPI não conseguiu apoio político ou midiático, fortaleceu a solidariedade ao Movimento e sequer conseguiu aprovar um relatório final.
Por fim, a hegemonia do agronegócio na sociedade brasileira combina ainda os métodos sofisticados de uma poderosa indústria cultural, da televisão à música, com os métodos arcaicos de violência e repressão. Segundo a pesquisa anual da CPT sobre Violência no Campo, em 2022 foram registradas 2.018 ocorrências de conflitos sociais no campo e 47 assassinatos ligados a questões fundiárias ou ambientais10.
Em 1995, em seu Terceiro Congresso Nacional, o MST aprovou pela primeira vez seu Programa de Reforma Agrária, em que apresentava sua leitura da luta de classes no campo brasileiro e um conjunto de propostas para transformar a estrutura fundiária brasileira e as condições da vida rural. Em 2015, o Programa foi atualizado com uma importante mudança teórica e estrutural: enquanto os partidos e universidades compreendiam equivocadamente a natureza, e até mesmo saudavam, o papel do agronegócio no Brasil, a militância do MST construiu coletivamente uma interpretação que o definia como a presença do capital financeiro transnacional no campo para a produção de commodities. Mais do que isso, o MST apontou que a existência do agronegócio – e seus vínculos com o Estado – inviabilizavam uma reforma agrária clássica, nos marcos capitalistas, de apenas distribuição ou democratização do acesso à terra.
Neste contexto, o MST é provocado a redefinir suas ações estratégicas e seu programa agrário, formulando um novo conceito: a Reforma Agrária Popular. Além da distribuição das áreas para os camponeses, a Reforma Agrária Popular incorpora a necessidade de produzir alimentos saudáveis a toda população, com mudança da matriz tecnológica para a agroecologia e a preservação dos bens comuns da natureza. Esta mudança implica ainda em maior aliança com os trabalhadores urbanos, os maiores beneficiários do acesso a alimentos saudáveis e baratos, pois a Reforma Agrária ultrapassa os interesses dos camponeses para ser apresentada como uma política para toda sociedade, seja pela soberania alimentar, como alternativa de geração de emprego e renda e de combate à catástrofe ambiental.
Formas de luta e formação de consciência
O MST nasce com três objetivos: Lutar pela Terra, ou seja, para que as famílias organizadas no Movimento conquistem terra suficiente para sobreviverem do seu próprio trabalho com dignidade; Lutar pela Reforma Agrária, o que significa a reestruturação da propriedade e do uso da terra, e pela transformação da sociedade.
Para alcançar estes objetivos, o MST se organizou e se definiu desde o início como “um Movimento de Massas, de caráter Sindical, Popular e Político”. Movimento de Massas porque entende que a correlação de forças só pode ser alterada a seu favor pelo número de pessoas organizadas e, por isso, Popular, porque é uma organização aberta à participação de todas as pessoas que desejem lutar para trabalhar na terra. O MST combina ainda o caráter sindical, porque a luta pela reforma agrária tem também sua dimensão econômica e de conquistas reais e imediatas, mas também política, porque sabe que a reforma agrária só poderá ser alcançada com uma transformação estrutural da sociedade.
Além disso, o MST é um movimento nacional com atuação em 24 dos 26 estados do Brasil, o que lhe diferencia dos movimentos que lhe antecederam, que contavam com uma atuação local e regional, o que lhes permitia ser isolados pelas forças repressivas. Ao estar presente na maior parte do território nacional, o MST tem condições de apoiar estados com mais dificuldades e nacionalizar lutas locais, amplificando sua repercussão.
Desta forma, a consolidação e a força do MST se devem ao número de pessoas que organiza. Efetivamente, ainda que disponha de muitas formas de organização, de acordo com cada realidade e local, o fundamental no método de organização é colocar as pessoas em movimento, em luta. E pela luta, desenvolver sua consciência política e social.
A primeira forma de luta do Movimento são as ocupações de terras. Antes ou durante a ocupação de uma área, o MST organiza acampamentos de famílias Sem Terra. A articulação destas famílias é feita pela identificação de territórios onde os camponeses estejam concentrados e da organização de reuniões, a partir de visitas a estas pessoas pelo trabalho de base. Desde este momento, as famílias participam da organização do futuro acampamento, buscando formas de conseguir lonas para os barracos, transporte para as famílias realizarem as ocupações etc. Ou seja, criar as condições para a ocupação que virá.
Os acampamentos cumprem o mesmo papel que as fábricas para a formação das lutas operárias nos séculos XIX e XX. Ao reunir os camponeses em um determinado lugar, superando o isolamento geográfico, permite que se construam relações de cooperação e sociabilidade.
Ao ingressar em um acampamento, as famílias são organizadas em núcleos de base de cerca de 10 a 20 pessoas. Esse pequeno número é definido para que os integrantes possam se conhecer e evitar infiltrações de desconhecidos. Além disso, divididos em pequenos grupos, mais pessoas podem debater e opinar sobre as questões de organização política do acampamento. Nos núcleos, todos têm o direito à palavra, incluindo as crianças. No acampamento, as tarefas precisam ser organizadas e distribuídas coletivamente: buscar água e lenha, organizar as doações de comidas, montar barracos, realizar a segurança, educar as crianças etc. Estas tarefas são organizadas em equipes chamadas de setores, compostas por integrantes dos Núcleos de Base. Ou seja, todo Núcleo tem um participante nas equipes de trabalho. Desta forma, todos participam da vida política, nos debates, e da vida organizativa, nas tarefas. Sempre coletivamente.
Independente do número de pessoas envolvidas, as reuniões dos núcleos e setores sempre são organizadas anteriormente, com uma pauta de discussão bem definida, coordenada sempre por um homem e uma mulher. Um dos integrantes do núcleo tem a tarefa de registrar as decisões para que sejam verificadas pelo próprio Núcleo.
Quando as discussões dizem respeito a decisões de todo o acampamento, as opiniões dos Núcleos são levadas por seus coordenadores para um espaço de coordenação do próprio acampamento. Caso não haja consensos nas discussões, elas retornam para os núcleos, com novos acúmulos e questões, procurando construir sínteses e decisões coletivas.
Nestes acampamentos e nas ocupações de terra, são comuns assembleias para tomarem decisões coletivas, como ocupar ou não um latifúndio, recuar ou não em uma luta. Mas este método de assembleias é eficiente apenas quando a totalidade dos participantes tem a compreensão de todas as dimensões do que está em discussão e as discussões se restringem a poucas opções, como fazer ou não uma ocupação, resistir ou não em uma situação de despejo. Por isso, elas não são nem a principal, nem a mais comum das formas de participação no Movimento.
Quando a terra é conquistada, ela se torna um assentamento de reforma agrária e as famílias permanecem organizadas no Movimento. Este foi um dos primeiros desafios do MST: como manter organizadas as famílias que já haviam alcançado parte dos seus objetivos com a conquista da terra? Parte da sociabilidade e da cooperação existente no acampamento se perde nesta transição. Por isso, o Movimento desenvolveu alguns mecanismos para manter os assentados em movimento.
Primeiro, os anos de vivência e luta em acampamentos produz uma identidade. Os trabalhadores organizados pelo MST se auto identificam como Sem Terra (com letras maiúsculas). Essa identidade permanece mesmo depois de conquistada a terra. Esta identidade significa compartilhar histórias de lutas, de identificação com as famílias ainda acampadas e de valores como o internacionalismo ou a solidariedade que são cultivados pelas lutas.
A organização do território conquistado traz novas demandas e lutas por crédito rural, educação, saúde, cultura, comunicação etc. Para alcançar estas novas reivindicações, o MST mantém sua forma organizativa. Ou seja, também no assentamento as famílias organizam-se em Núcleos de Base, por vizinhança, entre 10 a 20 integrantes, com a participação de todas as famílias. Estes núcleos novamente têm um homem e uma mulher na coordenação, a preparação das reuniões, o registro das decisões e um fluxo de discussões e debates dos núcleos para a coordenação e vice-versa. A cada nível organizativo – acampamento, assentamento, região, estado e nacionalmente – se constitui uma instância de direção coletiva.
O MST não possui e nunca possuiu uma figura de “Presidente” ou cargo semelhante que concentrasse em si as decisões políticas, ou que se diferenciasse dos demais militantes. Todas as instâncias no Movimento, desde a base até a Direção Nacional, são coletivas e com mandatos de dois anos. Desta forma, se combate o centralismo e o personalismo. Relacionado com este princípio está a divisão de tarefas: todos devem ter, em maior ou menor grau, responsabilidades dentro da Organização para que não haja nem centralização excessiva, nem sobrecarga dos militantes.
Assim como no acampamento, há equipes para tarefas do cotidiano no assentamento. As novas demandas são distribuídas entre equipes para a educação, saúde, organização econômica, entre outras. Quanto mais complexa a realidade e maior a organização, mais equipes são formadas, organizando-se em setores em níveis estaduais e nacionais para planejar e executar tarefas mais especializadas, como Produção, Frente de Massas, Educação, Formação etc. Por exemplo, todos os educadores ou envolvidos na educação de uma mesma região de municípios formam o setor de Educação, que elaboram propostas pedagógicas e atuam na vida escolar dos territórios. Na produção, os militantes organizam a vida econômica, as cooperativas, assim como a tecnologia agroecológica para o cultivo. E assim sucessivamente. Nestes coletivos, também se reconhecem e se incorporam os protagonismos de sujeitos Sem Terra, como o coletivo LGBT – possivelmente sem similar em outras organizações camponesas – e a Juventude. Outro exemplo de participação são atividades e encontros com os “sem terrinhas”, as crianças das áreas de reforma agrária. Em julho de 2018, o primeiro Encontro Nacional dos Sem Terrinhas reuniu mais de mil crianças para um acampamento de estudo, brincadeiras e lutas na capital federal, em Brasília.
Novamente, o essencial é reunir as pessoas, criar espaços de discussão coletiva e colocá-las em movimento por meio da luta e da cooperação. Isso significa que, ainda que as ocupações de terras sejam o “cartão de apresentação” do MST, o movimento combina diferentes formas de lutas, de acordo com as necessidades e as condições. Outros exemplos de mobilizações são marchas – algumas delas nacionais como em 1997 e 2005; ocupações de prédios públicos, bloqueios de rodovias, greves de fome etc.
É a ação prática, a luta, que permite que a consciência política não adormeça nos acampamentos ou nos assentamentos. Por exemplo, o MST tem a solidariedade como um de seus principais valores humanos e socialistas. Mas ela não se expressa apenas pela retórica ou pelo discurso. Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, o Movimento doou toneladas de alimentos em todo país por meio da organização de Cozinhas, Hortas e Comunidades Solidárias. Em dezembro de 2023, o MST enviou 13 toneladas de alimentos para as vítimas dos ataques israelenses na Faixa de Gaza11. A organização destas ações exige discussões com as famílias, planejamento da produção, organização da logística etc. Neste processo, as famílias desenvolvem, na prática, o conhecimento de outras realidades, especialmente do meio urbano, cooperam para atingir seus objetivos e vivenciam na prática estes valores.
Outro mecanismo pode ser a organização de cooperativas, onde a cooperação se dá pelo trabalho e distribuição do excedente, mas também pela organização de agrovilas, concentrando as pessoas em núcleos de moradia comuns, em vez do isolamento rural, e da socialização do trabalho doméstico, com cozinhas coletivas e cirandas infantis para o cuidado coletivo com as crianças.
Princípios Organizativos do MST
Como um movimento nacional e massivo, o MST adota a autonomia dos seus estados, regiões e territórios. Desta forma, cada grupo de famílias organizadas, em assentamento ou acampamento, tem a autoridade para tomar as decisões referentes à sua realidade. No entanto, a Unidade é imprescindível para que este mecanismo funcione com autonomia, com uniformidade em suas formas organizativas. Isso é possível porque, desde a sua fundação, em 1984, o Movimento Sem Terra estabeleceu algumas características organizativas que determinaram a própria identidade do Movimento.
Os princípios organizativos são os valores, a forma de organização e os objetivos pelos quais um movimento popular se dispõe a lutar. Eles definem a identidade e a unidade de uma organização, ao mesmo tempo em que a supressão de algum destes princípios descaracterizaria a própria Organização, alterando sua natureza. Durante estas quatro décadas, estas características não se alteraram na sua essência, mas puderam ser radicalizadas para aumentar a participação e elevar o nível de consciência do movimento de massas.
Um destes princípios é sua autonomia em relação aos Partidos Políticos, Igrejas, governos e outras instituições. O MST é autônomo em relação a outras organizações para que ele possa definir sua própria agenda política. Isso não significa que o MST não trabalhe com outros partidos políticos ou organizações religiosas, evidentemente, mas trata-se de uma relação fraternal e não subordinada a eles. Assim, o MST pode construir uma leitura da realidade, da luta pela terra e estabelecer táticas a partir da sua própria percepção e das demandas das famílias organizadas.
Como visto anteriormente, para que o Movimento seja Popular e de Massas, é necessário que ele tenha como princípio organizativo a Participação. Esse é também um exemplo de como o princípio pode ser ampliado, radicalizado em sua natureza, preservando sua essência. Inicialmente, os homens ocupavam a maior parte das instâncias de coordenação. Presentes na luta do MST desde o início, a organização das mulheres no MST cresceu de diversas formas, mas principalmente no Coletivo de Mulheres. Elas organizaram acampamentos de formação política, ações diretas contra transnacionais, espaços de estudo sobre as relações de gênero e o capitalismo etc. Este protagonismo ampliou o princípio de participação quando, no final dos anos 1990, o Movimento estabeleceu que toda função de direção e representação deveria ser obrigatoriamente ocupada por um homem e uma mulher. Isso, literalmente, duplicou o número de participantes e passou a corresponder ao peso de fato que as mulheres tinham na Organização. Este mecanismo reforçou outro princípio: o da Direção Coletiva.
Para que os princípios de participação e direção coletiva funcionem é necessário disciplina. Para o MST, disciplina significa respeitar as decisões coletivas, as linhas políticas e cumpri-las. Raramente há votações no MST, e o mais comum é procurar construir consensos nas decisões. Quando há alguma dificuldade de criar um consenso em torno de alguma questão, o debate volta novamente nos núcleos e nas coordenações até que as decisões estejam maduras e, então, após definido o encaminhamento, todos os integrantes do Movimento o seguem e o executam. Disciplina é este cumprimento das decisões coletivas.
Uma característica comum dos movimentos sociais é o de construir suas estratégias e táticas a partir da própria prática. Sem ação e prática, não há movimento popular. Porém, para a leitura permanente da realidade, apenas a prática é insuficiente. Por isso, outro princípio organizativo valorizado no MST é o Estudo. Desde seu sentido escolar, organizando as famílias a lutarem por escolas nas áreas de assentamento e acampamento, como as mais de 2 mil escolas públicas conquistadas em áreas de reforma agrária a partir da pressão sobre as autoridades locais, até na alfabetização de jovens e adultos, como as mais de 50 mil pessoas que aprenderam a ler e a escrever por iniciativa do próprio Movimento ou em parceria com governos locais12. Outra dimensão do Estudo é o da formação política por diferentes processos – publicação de livros e cartilhas, estudo nos núcleos de base, cursos etc – e que estão de certa forma sintetizados na experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)13, a escola de formação política nacional do Movimento e que é parte do conjunto das escolas de formação da Assembleia Internacional dos Povos, uma articulação global de organizações populares, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos.
A ENFF foi inaugurada no dia 23 de janeiro de 2005, e homenageou o sociólogo e político brasileiro Florestan Fernandes com seu nome. A escola se tornou referência internacional por unir a prática com a teoria política. Ao longo do ano, militantes, dirigentes e quadros de organizações populares que lutam pela construção de mudanças sociais em vários países estudam, a fundo, clássicos da teoria política nacional e internacional. Os cursos podem durar de uma semana a três meses, e são lecionados por professores e intelectuais voluntários. A ENFF também oferece formações com foco em diversos temas, como questão agrária, marxismo e feminismo e diversidade. Com professores e alunos vindos de vários países, especialmente da América Latina, a Florestan Fernandes permite um intercâmbio cultural e político entre os movimentos populares, assim como uma formação sobre o panorama econômico e social global, sempre sob o olhar da classe trabalhadora14.
A escola foi literalmente construída pelas mãos dos trabalhadores Sem Terra de todo o país, que se organizaram em brigadas de trabalho voluntário. Os recursos para a construção foram arrecadados pelo trabalho solidário de comitês de apoio internacionais e pela doação dos direitos autorais de Sebastião Salgado, Chico Buarque e José Saramago com a exposição “Terra”.
Além da ENFF, outras escolas foram organizadas pelo Movimento, como o Instituto de Educação Josué de Castro, especializado em formar jovens gestores para cooperativas, e escolas de agroecologia, como a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA) e o Instituto Educar, na região sul do país; a Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, localizada no nordeste brasileiro; e o Instituto de Agroecologia Latino Americano (IALA), na região amazônica.
Parte dos esforços para democratizar o acesso ao conhecimento também se materializou no Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária (PRONERA), uma política pública conquistada após a Marcha Nacional de 1997. Por meio deste programa, o governo brasileiro estimula a criação de cursos de escolarização, incluindo graduação e pós-graduação, específicas para os trabalhadores Sem Terra. Foram mais de 100 convênios firmados com universidades públicas que permitiram o acesso a cursos de Agronomia, Veterinária, Enfermagem, formações de educadores, entre muitos outros. Desta forma, o Movimento ocupa um espaço tradicionalmente elitizado e inacessível, ao mesmo tempo em que obriga a academia a abrir suas portas para a experiência e o conhecimento produzidos no calor da luta.
Um dos principais valores alimentados pelo MST é o Internacionalismo, como valor e como estratégia política. O capitalismo, enquanto um sistema mundial, estabelece todo o globo como campo de batalha e, portanto, a resistência a ele também deve ser global. Além das articulações entre movimentos camponeses – como a Via Campesina e a Coordenadora Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) na América Latina – o MST participa de outros espaços de abrangência mais amplos, como a Alba Movimientos e a Assembleia Internacional dos Povos.
Porém, o Internacionalismo não se limita a espaços de encontros e reuniões internacionais. Como um princípio e um valor da organização, ele deve se materializar em ações. Desde as mais simples manifestações de solidariedade aos povos em luta pelas famílias acampadas e assentadas, à construção de Brigadas Internacionalistas, formada por militantes do Movimento para atuarem em missões de intercâmbio nas áreas de agroecologia, produção, educação e formação. Organizadas desde 2006, as Brigadas Internacionalistas do MST estão ou já estiveram na Venezuela, Haiti, Cuba, Honduras, El Salvador, Bolívia, Paraguai, Guatemala, Timor Leste, China, Moçambique, África do Sul e Zâmbia.
A mais antiga delas, a Brigada Apolônio de Carvalho, cujo nome homenageia um militante comunista brasileiro que lutou na guerra civil espanhola e na resistência francesa, atua na Venezuela com formação política e com difusão de técnicas agroecológicas. A Brigada Jean-Jacques Dessalines, no Haiti, atua da mesma forma desde antes do terremoto que destruiu o país em 2010. Na Zâmbia, além da agroecologia, a Brigada Samora Machel trabalha com a alfabetização dos camponeses e, na Palestina, a cada dois anos, a Brigada Ghassan Kanafani colabora na colheita das oliveiras em territórios ameaçados por colonos israelenses.
O Futuro da luta pela terra no Brasil
As características do novo Programa Agrário do MST são dadas pelas próprias contradições e exigências da luta no campo. Elas nos dão a dimensão de qual direção a luta pela terra deve seguir, não apenas no Brasil, mas em todo Sul Global. Destacamos aqui algumas destas dimensões e desafios.
A luta pela terra é cada vez mais internacional. A alta concentração de renda e de terras provocada pelo capital financeiro, reduziu o controle de toda cadeia produtiva agrícola em apenas 87 corporações com sede em 30 países15. Estas corporações transnacionais ameaçam a biodiversidade e a cultura local com as exigências de padronização dos alimentos, determinam preços globalmente e interferem em legislações e direitos nacionais. Isso significa que a resistência camponesa também precisará ser cada vez mais internacional, com plataformas e ações conjuntas, com pressões sobre organismos multilaterais, mas principalmente combatendo estas transnacionais em todos os territórios.
A luta pela terra é uma luta tecnológica. O agronegócio define-se também pela difusão massiva de transgênicos e do uso intensivo de agrotóxicos. Estas características são inerentes ao próprio agronegócio. Sem este pacote tecnológico, não é possível produzir monocultura em escalas globais. Por isso mesmo, o agronegócio “verde ou sustentável” é apenas publicidade. A superação deste modelo exige o fortalecimento e a massificação das experiências de agroecologia, recuperação dos solos e biodiversidade, apropriação e difusão de novas técnicas e tecnologias de produção e preservação ambiental, produção de máquinas, equipamentos e ferramentas agrícolas adequadas às necessidades dos camponeses.
E ela não é tecnológica apenas na produção agrícola. As fusões e a concentração características dos movimentos do capital financeiro têm aproximado empresas de tecnologia, financeiras tecnológicas e empresas do agronegócio, como descrevemos no Dossiê n.º 4616 – Big Techs e a luta de classes, para determinar o padrão tecnológico de maquinário e se apropriar de milhares de dados da natureza, “aprisionados” na infraestrutura em nuvem controlada pelo Norte Global.
A luta pela terra é uma luta pela Alimentação. A pandemia da Covid-19 demonstrou como as corporações transnacionais aproveitaram a crise global para inflacionar o preço dos alimentos e lucrar com a especulação. Mas submeter os alimentos à lógica do mercado financeiro tem ainda outras consequências, como reduzir a produção de culturas tradicionais ou locais por commodities com maior aceitação no mercado. Culturas como a soja, cujo destino é a produção de combustível ou alimentação animal17, transformam antigas plantações de alimentos em desertos de monocultura. Além dos riscos de gerar crises alimentares a partir do comprometimento de safras futuras nas Bolsas de Valores. Ainda assim, quando o agronegócio não reduz a produção ou dificulta o acesso aos alimentos, está produzindo comida de má qualidade, rica em resíduos de agrotóxicos.
A luta pela terra é uma luta ambiental. O agronegócio é um dos responsáveis pela catástrofe climática e ambiental, principalmente pelo desmatamento em larga escala para substituição de florestas para o plantio de commodities ou para pecuária extensiva, sendo esta também emissora de grandes quantidades de carbono. Além disso, o modelo de expansão do agronegócio implica em consumo excessivo e desregulamentado dos recursos hídricos, desaparecimento de variedades de plantas e sementes tradicionais, impactos ambientais imediatos, como a redução da biodiversidade do solo, entre outros.
A combinação da luta pela terra com a luta ambiental também exige a denúncia das falsas soluções do capitalismo verde como o mercado de crédito de carbono. Neste contexto, uma das iniciativas com efeito prático e imediato com dimensão nacional é a meta de plantar 100 milhões de árvores nos próximos anos. Em seus primeiros quatro anos, 25 milhões de árvores já foram plantadas pelo Movimento.
Um bom exemplo de como o MST combina as lutas ambientais, tecnológicas e alimentar está na organização das famílias assentadas da região metropolitana de Porto Alegre, no sul do país. Trata-se da maior produção de arroz agroecológico da América Latina. São mais de mil famílias que produzem individualmente ou em cooperativas locais, mas todas organizadas em uma cooperativa central – que fornece assistência técnica e assume a agroindustrialização e a comercialização do produto. As famílias participam tanto na gestão técnica, responsáveis pela supervisão e certificação agroecológica, como na gestão econômica e política. A produção do arroz orgânico se tornou símbolo da capacidade produtiva em larga escala da agroecologia, do compromisso do MST com a alimentação saudável e também da solidariedade, uma vez que grandes quantidades dos grãos são doados frequentemente tanto para cozinhas comunitárias urbanas na região quanto para outros países.
A luta pela terra é uma batalha cultural. A consolidação da hegemonia do agronegócio não se dá apenas pelo controle econômico e tecnológico, mas pela difusão de valores neoliberais e da defesa do “modo de vida” do agronegócio por inúmeros mecanismos da indústria cultural, com constante publicidade na televisão, patrocínio e financiamento de veículos de comunicação, organização de shows e financiamento de artistas que – literalmente – cantam odes ao latifúndio monocultor. A construção de um modelo contra-hegemônico de agricultura implica em transformações no modo de produção agrícola e das próprias relações sociais no campo – com a agroecologia, a cooperação e o estudo como oposto à monocultura, o individualismo e a ignorância.
Por outro lado, a agroecologia também se tornou uma parceira para passar a mensagem de uma outra proposta de modelo agrícola, ao trazer a questão ambiental, de saúde, o saber popular e científico e a diversidade da cultura popular. O Coletivo de Cultura do MST é um exemplo de como isso pode se desenvolver. Este Coletivo trabalha para produzir e fortalecer uma cultura própria, a partir de frentes de trabalho na literatura, teatro, artes plásticas, e tem cumprido um papel importante na relação com a sociedade com a organização dos Festivais da Reforma Agrária nos estados, um misto de feira de alimentos com atividades culturais com músicos do MST e apoiadores da luta, reproduzindo localmente a experiência bem sucedida das Feiras Nacionais da Reforma Agrária, realizadas em São Paulo, cuja edição mais recente, em 2023, reuniu mais de 320 mil pessoas ao longo do evento.
Finalmente, a luta pela terra é parte e depende do conjunto da luta dos trabalhadores. Os camponeses, sozinhos, não possuem forças suficientes para enfrentar as grandes corporações transnacionais que controlam a agricultura. Para derrotá-las, é preciso um poderoso movimento de massas; além do mais, as derrotas destas corporações e do capital financeiro abririam janelas de oportunidades para um projeto socialista. Ou seja, uma vez em que o estágio atual do capitalismo eleva suas características em suas máximas potências, cada derrota infligida a este modelo deve e pode ser necessariamente anticapitalista e, portanto, contribuindo, desde as áreas rurais ou em aliança com os trabalhadores urbanos, com a construção de um projeto de emancipação humana.
Notas
1 https://mst.org.br/nossa-historia/97-99/.
2 O Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária foi anunciado pelo primeiro governo civil após a ditadura empresarial-militar em 1985, jamais executado.
3 https://mst.org.br/2006/07/19/stedile-faz-palestra-na-escola-superior-de-guerra/.
4 https://mst.org.br/nossa-producao/.
5 Antes dos portugueses, viviam cerca de 5 milhões de pessoas, divididas em comunidades aldeãs, com domínio comunitário do território, dedicados à caça, pesca, coleta e horticultura. Ver MAESTRI (2005).
6 Para uma análise mais detalhada da questão agrária no Brasil, ver o nosso Dossiê n.º 27: https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/dossie-27-terra/.
7 MST. Programa de Reforma Agrária Popular. 2024.
8 https://www.embrapa.br/agencia-de-informacao-tecnologica/tematicas/agricultura-e-meio-ambiente/qualidade/dinamica/agrotoxicos-no-brasil#:~:text=Expresso%20em%20quantidade%20de%20ingrediente,agr%C3%ADcola%20aumentou%2078%25%20nesse%20per%C3%ADodo.
9 https://fpagropecuaria.org.br/todos-os-membros/.
10 https://www.cptnacional.org.br/downlods/download/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/14302-livro-2022-v21-web.
11 https://mst.org.br/2023/12/08/with-another-donation-the-landless-workers-movement-mst-sends-out-another-11-tons-of-food-to-families-in-gaza/.
12 https://mst.org.br/educacao/.
13 O nome da Escola é uma homenagem ao sociólogo e militante marxista Florestan Fernandes, intelectual comprometido com a luta de classes, foi fundador do Partido dos Trabalhadores e deputado federal na elaboração da Constituição brasileira após a ditadura empresarial-militar.
14 https://mst.org.br/2020/01/24/conheca-a-escola-nacional-florestan-fernandes-ha-15-anos-formando-militantes/.
15 https://www.brasildefato.com.br/2018/09/04/so-87-empresas-controlam-a-cadeia-produtiva-do-agronegocio/.
16 https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/dossier-46-big-tech/.
17 https://dev.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/complexo-da-soja-analise-dos-dados-nacionais-e-internacionais/.
Referências bibliográficas
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INSTITUTO TRICONTINENTAL DE PESQUISA SOCIAL. Dossiê n.54. Gramsci em Meio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): Uma Entrevista com Neuri Rossetto. Julho de 2022.
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MAESTRI, Mario. A Aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrante na formação da classe camponesa brasileira. In: STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil, volume 2 – O debate na esquerda 1960-1980. São Paulo, Expressão Popular, 2005. p. 217-276.
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______.A produção ecológica de arroz e a reforma agrária popular. São Paulo, Expressão Popular, 2019.
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______.Normas gerais e Princípios Organizativos. 2016.