Amanhecer: marxismo e libertação nacional
Dossiê n. 37
“É verdade, podemos tropeçar em uma escuridão sem caminho, podemos estar à beira dos abismos escancarados, mas não temos medo, porque sabemos que, para ver o amanhecer, é preciso passar pela noite escura”.
Najiya Hanum (Turquia), Primeiro Congresso dos Povos do Leste, Baku, URSS, 1920.
Karl Marx deixou a Europa e viajou a um país sob domínio colonial apenas ao final de sua vida. Ele foi à Argélia em 1882. “Para os muçulmanos, não há isso de subordinação”, escreveu Marx para sua filha Laura Lafargue. A desigualdade é abominável para “um verdadeiro muçulmano”, mas esses sentimentos, pensou ele, “serão destruídos e arruinados sem um movimento revolucionário”. Um movimento com uma perspectiva revolucionária, supunha ele, seria capaz de crescer facilmente onde havia um profundo sentimento cultural contra a desigualdade. Marx não escreveu mais sobre a Argélia ou o Islã. Essas foram observações de um pai para uma filha, mas nos dizem muito sobre a sensibilidade do pensador militante alemão.
O marxismo é fundamentalmente contrário à ideia de que certos povos precisam ser governados por serem de raças ou sociedades inferiores. Na verdade, desde os primeiros escritos de Marx, o marxismo sempre entendeu a liberdade humana como um objetivo universal. A escravidão de pessoas e a degradação dos seres humanos submetidos à escravidão do salário despertou em Marx uma indignação profética. Em uma importante declaração na Primeira Internacional, em 1865, ele exigiu que todos os cidadãos dos Estados Unidos deveriam “ser declarados livres e iguais, sem ressalvas”, e advertiu que o fracasso em lidar decisivamente com o cruel legado da escravidão poderia “manchar o país com o sangue do povo”. W. E. B. Du Bois, o grande intelectual afro-americano, citou essa declaração em sua obra prima Black Reconstruction in America [A reconstrução negra na América] (1935), saudando-a como uma intervenção “corajosa”.
Uma das passagens mais famosas de O capital (1867) assinala que a “aurora rosada da era da produção capitalista” não poderia ser encontrada no banco ou na fábrica. A origem do capitalismo precisava ser encontrada – entre outros processos – no “extermínio, [n]a escravização e [n]o soterramento da população nativa nas minas, [n]o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, [n]a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras”. O capitalismo cresceu e se sustentou por meio da degradação da humanidade em todo o mundo. Não surpreende, portanto, que o anticolonialismo tenha um papel tão importante dentro do movimento marxista.
Uma vez distante das fronteiras da região do Atlântico Norte, saindo da Europa em direção às Américas, as categorias do marxismo tiveram que ser “ligeiramente ampliadas”, e a narrativa do materialismo histórico teve que ser aprimorada, como argumentou o intelectual caribenho Frantz Fanon. Caso contrário, as pessoas estariam adotando categorias que certamente tinham uma aplicação universal, embora não devessem ser aplicadas da mesma forma em todos os lugares. Poucos marxistas adotaram o vasto continente do materialismo dialético e histórico sem adaptá-lo a seus próprios contextos e dilemas.
Esse tem sido um dos elementos mais ricos da tradição marxista, e um que muito raramente é levado em conta.
Além disso, nas colônias, a estrutura de roubo e acumulação capitalista determinaram o fato de que essas regiões não veriam suas forças produtivas serem desenvolvidas pelo sistema capitalista; o desenvolvimento social de seus meios de trabalho (incluindo maquinários e infraestrutura) e sua capacidade humana seriam restringidos para privilegiar as terras de seus governantes coloniais. Essa estagnação do desenvolvimento social representou desafios para os marxistas nas regiões colonizadas, onde suas tarefas foram ampliadas e embaraçosamente difíceis: eles tiveram que derrubar o domínio colonial, desenvolver forças produtivas em um contexto adverso e avançar as relações sociais em direção ao socialismo. Esses processos simultâneos tiveram que ser desenvolvidos sob um ataque constante das forças imperialistas que incluía guerra aberta (como o Vietnã experimentou por décadas), mas também técnicas de guerra híbrida (incluindo sanções e bloqueios).
Este dossiê n. 37 é um convite ao diálogo, uma conversa sobre a complexa tradição do marxismo e da libertação nacional – uma tradição que emerge da Revolução de Outubro e que aprofunda suas raízes nos conflitos anticoloniais dos séculos XX e XXI. Esta é uma introdução a uma conversa ampla que inclui muitos movimentos revolucionários diferentes, principalmente aqueles enraizados nos continentes da África, Ásia e América Latina. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, estamos interessados em reavivar uma discussão séria sobre esta tradição.
A alma viva do marxismo
Quando o marxismo viajou para fora do domínio no qual Marx primeiro desenvolveu sua teoria, ele precisou se envolver com o que o líder soviético Vladimir Lenin (1870-1924) chamou, em 1920, “a própria essência, a alma viva do marxismo – a análise concreta das condições concretas”. Na verdade, a contribuição de Lenin abriu a porta para a avaliação do marxismo fora da Europa.
Lenin não foi o único a compreender a necessidade de uma “análise concreta das condições concretas”, de uma interpretação criativa do marxismo para diferentes contextos sociais. O intelectual e revolucionário cubano Julio Antonio Mella (1903-1929) entendeu que o ânimo da época tendia ao socialismo: “A causa pelo socialismo em geral é a causa do momento: em Cuba, na Rússia, na Índia, nos Estados Unidos e na China – em todos os lugares”. Mas o “único obstáculo” para o socialismo era “saber adaptá-lo à realidade dos diferentes ambientes”. Os marxistas não devem, escreveu Mella, fazer “cópias servis de revoluções feitas por outros homens em outros climas”.
Desde os primeiros dias do estabelecimento do partido comunista na África do Sul, seus membros também discutiram a importância da organização entre a classe trabalhadora não europeia. Em 1934, Moses Kotane (1905-1978) – que liderou o partido de 1939 até sua morte – argumentou, em uma carta ao Comitê Distrital de Johanesburgo do partido, que era imperativo que “o Partido se torne mais africanizado” e que “preste especial atenção à África do Sul, estude as condições neste país e concretize as demandas das massas trabalhadoras com informações de primeira mão”.
O marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) escreveu de forma irônica no Avanti! (dezembro de 1917) que a revolução na Rússia havia sido uma revolução contra O capital, ou seja, uma revolução contra os prognósticos na obra de maturidade de Marx. Mas não foi bem assim. As revoluções nos Estados capitalistas avançados não ocorreram por uma série de razões, e aquelas mais bem-sucedidas ocorreram em sociedades camponesas – o que Lenin chamou de “elo mais fraco” da ordem capitalista. Isso foi em si uma elaboração a partir da teoria completa de Marx, de suas considerações tanto da ideologia quanto da estrutura. O aspecto subjetivo foi prejudicado por uma série de processos: o desenvolvimento da propaganda contra o socialismo, o crescimento de um aparato repressivo e o domínio de uma “aristocracia operária” no movimento da classe trabalhadora. Isso apesar do fato de que as condições objetivas para a revolução produziram crises em cascata. Esse aspecto subjetivo – a agitação entre as massas, a existência de um partido, o desenvolvimento de um marxismo criativo – surgiu por uma série de razões nos elos mais fracos, da Rússia em 1917 a Cuba em 1959.
O revolucionário, escreveu Mella, não precisa repetir Lenin, mas deve seguir o conselho de ser criativo com o marxismo. O revolucionário não deve tratar o marxismo como teologia – segui-lo ao pé da letra –, tampouco deve tratar cada caso individual como excepcional. O objetivo é compreender a natureza da universalidade capitalista ao lado da rica história de cada país, desenvolver uma compreensão dialética do universal e do particular e compreender a generalidade das relações sociais capitalistas, bem como de que maneira estas surgiram em cada local. Foi o que Lenin fez que contribuiu para o desenrolar da revolução na Rússia.
Sociedades camponesas, como México e Índia, China e África austral, compreenderam a leitura de Lenin do marxismo do contexto da fábrica para o campo. Lenin trabalhou a partir das contradições do capitalismo na Rússia, o que lhe permitiu entender como alguns setores do campesinato no extenso Império tsarista tinham um caráter proletário, como trabalhadores rurais sem terra. Com base nesse entendimento, ele defendeu uma aliança operário-camponesa contra o tsarismo e os capitalistas. Lenin entendeu, a partir de seu engajamento com a luta de massas e por meio do estudo da teoria, que os social-democratas – o setor mais liberal da burguesia e da aristocracia – não eram capazes de conduzir uma revolução burguesa, muito menos o movimento que levaria à emancipação do campesinato e dos trabalhadores. Essa elaboração aparece em Duas táticas da social-democracia na revolução democrática (1905). Este é talvez o primeiro grande tratado marxista que demonstrou a necessidade de uma revolução socialista mesmo em um país “atrasado”, onde trabalhadores e camponeses precisavam se aliar para romper com as instituições opressoras. Esse texto mostra Lenin evitando as visões de que a Revolução Russa poderia superar o desenvolvimento capitalista (como os populistas, narodnikis, sugeriram) ou que ela teria que antes passar pelo capitalismo (como os democratas liberais argumentavam). Nenhum desses caminhos era possível ou necessário. Um capitalismo, ainda que em uma forma limitada, já havia entrado na Rússia – o que os populistas não reconheciam – e poderia ser superado por uma revolução operária-camponesa – o que os democratas liberais contestavam. Esse capitalismo, no entanto, não desenvolveria as forças produtivas, tarefa que inevitavelmente caberia aos socialistas. A Revolução de 1917 e a experiência soviética provaram o argumento de Lenin.
Tendo estabelecido que as elites liberais nas nações mais pobres não seriam capazes de liderar uma revolução operária-camponesa, ou mesmo uma revolução burguesa, Lenin voltou sua atenção para a situação internacional. Exilado na Suíça, viu os social-democratas capitularem à guerra em 1914 e entregar a classe trabalhadora à guerra mundial. Frustrado com a traição social-democrata, escreveu Imperialismo no início de 1916, no qual desenvolveu uma compreensão clara do crescimento do capital financeiro e das empresas monopolistas, bem como do conflito intercapitalista e interimperialista. Foi nesse texto que ele explorou as limitações dos movimentos socialistas no Ocidente – onde a aristocracia operária fornecia uma barreira à militância socialista – e o potencial revolucionário no Oriente – onde encontrava-se o “elo mais fraco” das correntes imperialistas. Uma avaliação tão lúcida do imperialismo desse tipo garantiu que Lenin desenvolvesse uma posição forte sobre os direitos das nações à autodeterminação, fossem essas nações dentro do Império Tsarista ou de qualquer outro império europeu. Aqui, encontramos o cerne do anticolonialismo da URSS, que se desenvolveu ainda mais na Internacional Comunista (Comintern) de 1919 a 1943. É o que atraiu militantes anticoloniais das Índias Orientais Holandesas aos Andes.
Criação heroica
Nos Andes, José Carlos Mariátegui (1894-1930) escreveu em Aniversário e balanço (Revista Amauta, 1928): “Não queremos, certamente, que o socialismo seja, na América Latina, decalque nem cópia. Deve ser criação heroica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Aqui está uma missão digna de uma nova geração”. O que Mariátegui fez? Ele leu Marx e Lenin à sua maneira e estudou profundamente a realidade social da região andina. A teoria leninista da aliança operário-camponesa forneceu um acréscimo fundamental ao marxismo de Mariátegui. Uma revolução socialista em uma sociedade agrária não seria possível sem uma revolta camponesa contra as garras dos latifundiários. No caso do Peru, essa revolta camponesa se inspirou em ideias mais antigas de comunidade (o ayllu), nas quais os indígenas refutavam o individualismo; como escreveu Mariátegui em Sete ensaios de interpretação sobre a realidade peruana (1928), “o comunismo […] continuou sendo para o indígena sua única defesa”. O agente de mudança no Peru entre as classes produtoras incluía as comunidades rurais predominantemente indígenas. Buscar os insurgentes apenas no minúsculo setor industrial de Lima seria ir para a batalha contra o capital com uma mão atada nas costas. Esse é um eco do apelo de Lenin à unidade operária-camponesa, mas com as comunidades indígenas agora no cenário.
As comunidades rurais indígenas eram capazes de um movimento socialista? Nos anos 1920, quando Mariátegui desenvolvia suas ideias, o pensamento intelectual predominante em relação às comunidades rurais era o indigenismo, ou indianismo, isto é, um movimento cultural que ressuscitou e celebrou as formas culturais ameríndias, mas não buscou explorar seu potencial transformador. O indigenismo desfigurou os ameríndios e os viu romanticamente como produtores de cultura, mas não de História. Mariátegui reinterpretou essa história de uma maneira mais vibrante, olhando para o passado e para as formas incaicas de propriedade e produção comuns, e olhou para as lutas de seu tempo contra os latifundiários como fonte de transformação social. “Em um povo de tradição comunista”, escreveu Mariátegui em referência ao socialismo inca, dissolver seus sistemas comunitários não os transforma em pequenos proprietários, mas entrega suas terras aos grandes proprietários. “Não se transforma artificialmente uma sociedade. Muito menos uma sociedade camponesa profundamente apegada às suas tradições e instituições jurídicas”, escreveu em Sete ensaios. “Sua formação teve sempre um processo simultaneamente mais complicado e mais espontâneo”, no qual as tradições mais antigas são revitalizadas em um sistema democrático.
O socialismo andino de Mariátegui nunca foi uma restauração do passado, de um comunismo pré-moderno do antigo mundo inca: “Está, portanto, claro, que da civilização incaica nos preocupa menos o que está morto do que o que permaneceu”, escreveu ele em 1928. “O passado nos interessa na medida em que pode nos servir para explicar o presente. As gerações construtivas sentem o passado como uma raiz, como uma causa. Jamais como um programa”. Em outras palavras, o passado é um recurso, não um destino – ele nos lembra o que é possível, e seus rastros nos mostram que elementos daquele antigo comunitarismo podem ser aproveitados na luta contra as relações coloniais de propriedade privada no presente. Quando o marxismo chegou ao Terceiro Mundo, ele necessitou ser flexível e preciso: aprender do contexto e compreender as formas pelas quais o capitalismo se transforma em novos locais e explora as formas de transformação social para conduzir a história.
O marxismo teria morrido prematuramente em lugares como os Andes se não tivesse levado a sério as condições concretas dos trabalhadores e outros oprimidos, bem como as aspirações sociais de autodeterminação nacional. Os tentáculos do imperialismo se uniram fortemente em torno da soberania de países como o Peru, sufocando-os com créditos e navios de guerra, forçando o povo a uma vida de grande miséria. Melhorar as condições de trabalho e de vida, e fazer parte do movimento anticolonial em países como o Peru, significava que os movimentos de inspiração marxista deviam fundir a luta de libertação nacional com a luta pelo socialismo. Deveriam incitar os movimentos que permaneceram no horizonte do capitalismo, como aqueles que buscavam melhorias das condições de vida, maior representatividade no governo – ou seja, acesso a sistemas que permaneciam sob controle imperial. Foram essas reivindicações emancipatórias – baseadas em velhas ideias messiânicas, bem como no sindicalismo revolucionário, no anarquismo e no marxismo – que reuniram as correntes do nacionalismo anticolonial e do socialismo nas colônias e semicolônias no que estamos chamando de marxismo de libertação nacional.
É importante fazer uma pausa aqui para digerir um fato que frequentemente não é levado em conta quando se olha para o mundo do marxismo. Muitos daqueles que se tornaram marxistas no mundo colonial nunca tinham lido Marx, mas liam suas ideias em diversos panfletos, e assim também foi seu contato com Lenin. Em Cuba, por exemplo, trabalhadores como Carlos Baliño (1848-1926) introduziram Marx a seus camaradas. Livros eram caros, e quase sempre difíceis de obter, uma realidade na qual o papel da censura era um componente central. Pessoas como Baliño, Li Dazhao (1888-1927) na China, Josie Palmer (1903-1979) na África do Sul, Muzaffar Ahmed (1889-1973) na Índia, Yusuf Salman Yusuf, o “Fahd” (1901-1949), no Iraque, e Dolores Cacuango (1881-1971) no Equador tinham diferentes formações e possuíam pouco acesso às tradições intelectuais das quais a crítica de Marx surgiu. Mas eles conheciam sua essência. Aprenderam aos pedaços e aos poucos, frequentemente por meio de agentes da Internacional Comunista (Fahd teve sua formação marxista com Piotr Vasili, do Comintern) ou de temporadas na Universidade Comunista dos Trabalhadores do Leste na URSS. Eles não vieram de famílias burguesas, nem ganharam dinheiro dos pais, tampouco tiveram a oportunidade de estudar o marxismo em toda sua amplitude ou encontrar seu caminho por meio de bolsas de estudos. Eles chegaram ao marxismo a partir do chão da fábrica e do campo, das prisões coloniais e das organizações nacionalistas às quais aderiram. Basearam-se no que aprenderam e desenvolveram suas teorias sobre o imperialismo e o capitalismo a partir dessa leitura e de sua experiência. Leram o que puderam encontrar e extraíram daí o que os ajudaria a desenvolver uma teoria e uma práxis adequadas à sua realidade social. Mao Zedong refletiu essa atitude de “retificar o Estilo de Trabalho do Partido” (1942): “Nossos camaradas na Escola do Partido não deveriam considerar a teoria marxista como um dogma sem vida. É necessário dominar a teoria marxista e aplicá-la, dominá-la com o único propósito de aplicá-la”.
Esses eram homens e mulheres que se tornaram radicais por meio de sua afeição pelo povo, entendendo que o anticolonialismo tinha que fazer parte da estrutura tanto quanto a revolução social. Não bastaria expulsar o colonizador e eleger a burguesia para ocupar seu lugar. Ambos precisavam sair. É por isso que muitos desses radicais formaram partidos à esquerda dos nacionalistas burgueses, mas não tão à esquerda que não participassem juntos de ações anticoloniais. Baliño e Mella formaram o Partido Comunista de Cuba em 1925; com base na obra de José Martí (1853-1895), eles fundiram o nacionalismo anticolonial com sua própria compreensão e aspiração ao socialismo. Essa era uma visão compartilhada por todo o mundo colonizado. A maioria dos movimentos marxistas no mundo colonizado se debateu com a questão da burguesia nacional – seja para vê-la como parcialmente progressista, seja como inerentemente reacionária, uma vez no poder. Os partidos se dividiram nessas linhas e o Comintern discutiu até o amanhecer junto a eles.
O Comintern tentou ser flexível, mas seu conhecimento limitado do mundo em seus primeiros anos acabou tornando-o dogmático demais para ser sempre útil. No final dos anos 1920, o Comintern propôs a criação de uma República no Cinturão Negro na região sul dos Estados Unidos, uma República Nativa na África do Sul e uma República Indígena ao longo da região andina na América do Sul. De Moscou, parecia que a teoria das nacionalidades poderia ser facilmente transportada para essas terras distantes. Para a América do Sul, a teoria foi debatida na primeira Conferência Comunista Latino-Americana, realizada em Buenos Aires em junho de 1929. Um acirrado debate eclodiu aqui, com a posição preferida do Comintern sendo contestada por Mariátegui e seus companheiros. “A constituição da raça índia em um Estado autônomo”, escreveu Mariátegui em O problema da raça na América Latina, texto que preparou para a conferência de 1929, “não conduziria no momento atual à ditadura do proletariado índio, muito menos à formação de um Estado índio sem classes”. O que seria criado é um “Estado índio burguês com todas as contradições internas e externas de outros Estados burgueses”. A opção preferencial seria pelo “movimento revolucionário classista das massas índias exploradas”, considerada a única forma de “dar sentido real à libertação de sua raça”. O debate sobre metas e estratégia tornou-se tão acirrado que esta foi a única Conferência Comunista Latino-Americana a ser realizada. “O proletariado índio aguarda seu Lenin”, Mariátegui escreve citando Luis Valcárel no prólogo de Tempestade nos Andes (1927). Nem Valcárel nem Mariátegui eram um Lenin como tal, mas traziam uma teoria que poderia emergir dos movimentos para conduzi-los contra as estruturas rígidas do passado e do presente.
Essa nem sempre foi uma lição aprendida. Mas agora é a nossa lição.
Como promover o desenvolvimento social?
Os revolucionários nas colônias e nas semicolônias tiveram que enfrentar o problema da falta de desenvolvimento das forças produtivas. Poucos viram a intervenção das potências coloniais europeias como progressiva para o seu desenvolvimento social, uma vez que essas potências trouxeram, como era típico, os piores elementos de suas sociedades coloniais para manter o poder: a aristocracia, os latifundiários, o clero e os intelectuais tradicionais. A política colonial afetava frequente e fortemente o desenvolvimento social, congelando velhas formas de hierarquia e criando novas em nome da tradição. Simultaneamente, a política colonial empobreceu a sociedade, saqueou a riqueza social e a direcionou para os Estados do Atlântico Norte; criou também desertos sociais em áreas que antes tinham uma dinâmica cultural rica e potencial para o desenvolvimento social.
Os nacionalistas burgueses confrontaram isso por meio da negação e glorificaram as tradições, sejam formas pré-coloniais, sejam formas fabricadas durante o colonialismo. Esse tipo de revivalismo apenas aumentou o atoleiro, sufocando o desenvolvimento da economia colonizada e de sua sociedade. As revoltas camponesas e operárias levaram os nacionalistas burgueses a compreenderem que, embora a tarefa da independência política devesse ser vista como central, ela não poderia se isolar da revolução social e da revolução contra as condições econômicas e culturais instituídas pelas potências coloniais. Esses poderes trabalharam proximamente à aristocracia latifundiária e à burguesia para sufocar a sociedade.
O socialista egípcio Salama Musa (1887-1958) é um símbolo da consciência revolucionária inicial nas colônias. Musa ficou aturdido com as hierarquias de sua sociedade e com a futilidade de sua época. Foi no socialismo – uma palavra que ele traduziu para o árabe como ishtrakia – que ele encontrou a resposta para seu tempo. Para Musa, havia dois obstáculos ao progresso: as potências coloniais (principalmente a Grã-Bretanha) e o tradicionalismo. Ambos impediam a sociedade egípcia de sair de seu impasse, com sistemas educacionais atrofiados, fome generalizada e o pensamento religioso disfarçado de ideologia egípcia autêntica. Musa não estava convencido de que o Nahda, o “iluminismo árabe”, seria suficiente, pois não parecia ser capaz de romper com o tradicionalismo e o peso do colonialismo. O que Musa quis dizer quando escreveu em Al-yawm wa al-ghad (1928), “Embora o sol nasça no Leste, a luz vem do Oeste”? Quis dizer que o Ocidente era a fonte da razão? Não teria sido no sentido de que a razão viria do Ocidente, mas que o Ocidente – com seu roubo de recursos e sua capacidade de se desenvolver socialmente – teria produzido desenvolvimentos no pensamento (marxismo, socialismo fabiano) que deveriam ser praticados em lugares como o Egito. Era preciso não se afundar no buraco do nativismo nem adotar a ideologia dos senhores coloniais. O objetivo era encontrar estruturas e conceitos do melhor da razão para desenvolver uma crítica à própria sociedade. Foi isso que Musa tentou em Nossos deveres e as tarefas dos países estrangeiros (1930), bem como em Gandhi e a Revolução Indiana (1934) e Egito: um lugar onde a civilização começou (1935).
A ideia de “atraso” (takhalluf) não é facilmente descartada. Criticar o pensamento ocidental por seu desdém pelas colônias era insuficiente para os revolucionários; sua tarefa era desenvolver uma teoria e uma práxis de como sair da dura realidade da situação colonial. Hassan Hamdan (1936-1987), mais conhecido como Mahdi Amel, abordou diretamente esse problema. Em Colonialismo e atraso, publicado no jornal do Partido Comunista Libanês al-Tariq, em 1968, Mahdi Amel escreveu: “se realmente desejamos que nosso verdadeiro pensamento marxista esclareça e seja capaz de ver a realidade de uma perspectiva científica, não devemos partir do próprio pensamento marxista e aplicá-lo à nossa própria realidade, mas sim partir da nossa realidade como um movimento fundacional”. Se alguém parte do desenvolvimento histórico da sociedade e seus próprios recursos culturais para fazer a análise, “só então nosso pensamento pode se tornar verdadeiramente marxista”. A realidade da condição colonial teve que ser explorada e o marxismo precisou ser elaborado para levar em conta essa situação.
Os árabes carregam o estigma de serem “atrasados”, escreveu Mahdi Amel. Era como se eles não fossem capazes de nada além do fracasso. Mas a ruína dos árabes não foi por causa de qualquer aspecto essencial de sua cultura, mas por conta do que havia acontecido com eles. Cem anos de domínio colonial alteraram a estrutura política e econômica, bem como a social. Antigos notáveis árabes foram marginalizados ou absorvidos por um novo mundo em que eram meramente representantes de forças que viviam em outros lugares. As novas elites que surgiram representavam forças externas, não suas próprias populações. Quando Paris espirrava, eles pegavam um resfriado. O embaixador dos EUA se tornou mais importante que as autoridades eleitas. A experiência do que foi denominado “atraso” não foi culpa dos árabes, sugeriu Mahdi Amel, foi a forma como suas vidas foram estruturadas. Ele argumentou que o marxismo tinha que levar essa ideia a sério.
Amílcar Cabral, do Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), entendeu as formas interconectadas de resistência política, econômica e cultural. “Devemos lembrar que não basta produzir, ter barriga cheia, fazer boa política e fazer a guerra”, disse em um seminário para quadros políticos do PAIGC em 1969. Sobre resistência cultural, ele destacou a seguinte tarefa: “enquanto liquidamos a cultura colonial e os aspectos negativos de nossa própria cultura em nosso espírito, em nosso meio, temos que criar uma cultura nova, baseada em nossas tradições também, mas respeitando tudo quanto o mundo tem hoje de conquista para servir o homem”. Como parte desse projeto de criar uma nova cultura a partir dos vestígios do colonialismo, diversas e ricas experiências foram desenvolvidas na tradição marxista da libertação nacional. A organização da cultura, de Cuba à Indonésia – ambas fundamentais para a construção do marxismo de libertação nacional –, ajudou a esclarecer e construir um caminho a partir da dominação colonial e imperialista.
Por volta dessa época, o estudioso paquistanês Hamza Alavi (1921-2003) apresentou sua teoria do modo de produção colonial; o marxista egípcio Samir Amin (1931-2018) produziu trabalhos sobre o modo de produção tributário; e na Índia houve um debate sobre os modos de produção. O entendimento básico compartilhado por esses intelectuais era que o sistema imperialista não permitiria o desenvolvimento das forças produtivas nas colônias. Mahdi Amel via o atraso não em termos culturais, mas na forma como a ordem global havia sido estruturada: o Sul fornecia matérias-primas e mercados, enquanto o Norte produzia os bens acabados e ganharia a maior parte da riqueza social. A sensação de “atraso” refletiu essa ordem. A bagunça política no Sul também se relacionava a essa subordinação econômica. Todos esses pensadores – com maior ou menor sucesso – tentaram fornecer uma teoria de como isso acontece. Não era suficiente enfocar a subordinação cultural; era preciso produzir uma teoria e uma práxis que promovessem a transformação política, econômica, social e cultural.
Marxismo Tricontinental
Em 1948, as Nações Unidas fundaram uma agência especial para a América Latina, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), cujo trabalho ao longo das duas décadas seguintes inaugurou a “escola da dependência” do desenvolvimento desigual. O chamado cepalismo apontou os obstáculos estruturais para o desenvolvimento da América Latina. Raúl Prebisch, diretor fundador da Cepal, argumentou que os países da América Latina estavam presos a um ciclo de dependência e às antigas potências coloniais. Como produtores de bens primários e tomadores de empréstimo de capital, os Estados latino-americanos foram colocados em uma posição subordinada, na qual os termos de troca entre estes Estados e as antigas potências coloniais favoreciam estas últimas, uma vez que os preços dos bens primários – como alimentos pouco processados – atingiram o pico mais rápido do que os preços dos bens manufaturados e serviços. Nem Prebisch nem a maioria de sua equipe eram marxistas, mas não havia dúvida de que a tradição da dependência influenciou uma geração de marxistas e nacionalistas de esquerda em toda a América Latina. Duas décadas após o importante manifesto da Cepal de Prebisch, em 1948, uma geração mais jovem de marxistas – incluindo Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Andre Gunder Frank – desenvolveu a teoria marxista da dependência, um cenário-chave para o crescimento do marxismo de libertação nacional.
Esses teóricos argumentavam contra a posição mais antiga de que a América Latina estava presa a um feudalismo ou semifeudalismo e, portanto, precisava de uma revolução capitalista para avançar em direção à modernidade. A Escola da Dependência, partindo do cepalismo, acreditava que o sistema capitalista mundial havia absorvido a América Latina em sua órbita em uma posição subordinada não no século XX, mas desde o início do período de colonização. Ao lado da Escola da Dependência estava o trabalho de pessoas como Samir Amin, que argumentou que o capitalismo havia criado uma polaridade no mundo entre os velhos centros coloniais e a velha periferia colonizada. Amin disse em 1956 que o processo de acumulação de capital em escala mundial havia moldado a agenda da periferia e forçado os países periféricos a se adaptarem às necessidades e interesses do centro. Isso é o que Amin chamou de “ajuste unilateral”. Isso significava que a estrutura política para os novos Estados independentes já havia sido restringida à dependência da globalização capitalista. A possibilidade de uma saída da globalização capitalista e da ilusão de desenvolvimento parecia remota sem uma ruptura completa com os tentáculos do ajuste unilateral, uma ruptura que Amin chamou de “desvinculação”.
Foi essa tendência – do cepalismo à teoria de desvinculação de Amin – que forneceu a teoria para as lutas de libertação nacional de Cuba (1959) a Burkina Faso (1983) e para os processos revolucionários em curso em nosso tempo em países como Bolívia e Venezuela. Em 1966, o governo cubano recebeu uma série de Estados revolucionários e movimentos de libertação nacional para a Conferência Tricontinental. As conversas na conferência permaneceram sobretudo no âmbito político; os discursos foram desde a defesa dos conflitos armados das forças de libertação nacional do Vietnã à Guiné-Bissau, passando pela denúncia da reprodução da pobreza pelo imperialismo liderado pelos EUA. Houve pouca discussão sobre teoria marxista ou a ordem econômica mundial. Isso era dado como certo. Estava claro para as forças de libertação nacional que o marxismo era sua pedra angular e que as variantes da teoria da dependência eram sua estrutura comum. Os discursos de Fidel Castro da década de 1960 revelam sua confiança no espectro de pensamento que ia do cepalismo à desvinculação, da teoria da dependência à quebra do ajuste unilateral. Essa compreensão ampla do desenvolvimento do subdesenvolvimento ancorou as instituições e plataformas como o Movimento dos Não-Alinhados (1961) entre Estados que tinham diferentes configurações de classe. Essa unidade de visão é evidente na resolução da Assembleia Geral da ONU de 1974 sobre a Nova Ordem Econômica Internacional, que prometeu reformular as relações mundiais fora do intercâmbio desigual no comércio, desenvolvimento e finanças.
Era fundamental para essa visão marxista do mundo quebrar o imperialismo das finanças, como a dívida. A crise da dívida do início da década de 1980 esmagou a capacidade dos Estados recém-independentes de conduzir suas próprias agendas. Castro costumava dizer, como fez em 1985 quando inaugurou um movimento mundial contra a dívida global, que uma nova ordem econômica internacional deveria ser fundada a fim de “eliminar as relações desiguais entre países ricos e pobres e garantir ao Terceiro Mundo seu inalienável direito de escolher seu destino, livre de intervenção imperialista e de medidas exploratórias no comércio internacional”.
Castro, como os outros marxistas da libertação nacional, não tinha ilusões sobre a burguesia e a oligarquia do Sul – pessoas que tinham um alinhamento de classe com o imperialismo e não contra ele. Não era uma libertação nacional que entregaria o poder à burguesia e à oligarquia, mas que aceleraria as forças revolucionárias para além do Estado burguês. Dado que as classes mais revolucionárias da periferia costumavam ser as mais excluídas, seria uma traição à história mandá-las de volta aos campos e às fábricas depois de terem fornecido a base política para a reconstrução das relações sociais.
Contra o passado, em direção ao futuro
Os debates sobre a Teoria da Dependência e o intercâmbio desigual se dão de Santiago (Chile) até Nova Déli (Índia). Era importante para os marxistas nessas porções do mundo – a periferia, de acordo com a geografia da Teoria da Dependência – estudar de perto o processo de acumulação em escala mundial (como diz o título do livro de Amin), mas também as relações de classe dentro de seus países que refletem as relações internacionais de poder. O marxismo criativo era a necessidade da hora, mas também o era a suspeita da burguesia nacional, que frequentemente usava seu status periférico para explorar seus próprios trabalhadores contra a burguesia metropolitana. Desentendimentos no comunismo internacional entre a URSS, a República Popular da China, a República Socialista Federal da Iugoslávia e a República Socialista Popular da Albânia ocorreram com essas questões sobre a mesa e tiveram um impacto profundo nos movimentos de esquerda no Sul.
Na Índia, por exemplo, o debate dentro do movimento comunista que durou de 1951 a 1964 foi afiado e de alto nível. Um setor (minoritário) argumentava que a burguesia indiana poderia ser uma aliada da classe trabalhadora e do campesinato naquela época devido a seu status periférico, e que a URSS era o centro da revolução mundial. Outro setor (majoritário) era da opinião de que a burguesia indiana não era uma aliada dos trabalhadores e camponeses, e que a URSS era um país fraternal, mas não a fonte da teoria e práxis revolucionárias. Esse debate levou a uma divisão no movimento comunista indiano em 1964, que produziu o Partido Comunista da Índia (PCI), que representava a posição minoritária, e o Partido Comunista da Índia (Marxista) ou PCI(M), que representava a maioria.
Um dos principais teóricos do PCI(M) foi E. M. S. Namboodiripad (1909-1998). EMS, como era conhecido, foi um radical na luta pela liberdade indiana e um dos líderes do Partido Socialista do Congresso, um setor socialista da plataforma de liberdade anticolonial do Partido do Congresso. Nascido no que viria a ser o estado de Kerala, EMS e os outros membros do Partido Socialista do Congresso do estado aderiram ao Partido Comunista da Índia. Em 1957, ele liderou o PCI na vitória das eleições estaduais em Kerala. Mudanças estruturais profundas foram implementadas; isso despertou a ira da burguesia, cujo principal partido político, o Congresso – em conluio com a CIA – derrubou o ministério de EMS em 1959. O trabalho inovador e árduo dos comunistas os devolveu ao cargo em Kerala em 1967-1969, com EMS como ministro-chefe. Ele liderou o PCI(M) por 14 anos como secretário-geral do partido, de 1978 a 1992, período em que estudou e escreveu trabalhos originais sobre a história e a política indiana. Ele argumentava ser necessário envolver as tradições teóricas e a história da Índia em uma perspectiva marxista para extrair conceitos e dinâmicas que eram essenciais para a revolução indiana. Em outras palavras, o materialismo histórico e o materialismo dialético não deveriam ser importados da tradição europeia sem uma séria reconstrução.
De sua minuta de dissidência de 1939 ao relatório do Comitê do Inquérito de Posse de Malabar e seus ensaios dos anos 1970 sobre casta e classe, EMS explorou o método marxista para interpretar a história e a sociedade da Índia. Para o materialismo histórico – a narrativa histórica apresentada por Marx –, a sociedade passou por dois estágios: da escravidão ao feudalismo e, depois, do feudalismo ao capitalismo. Isso antecedeu um estágio futuro que seria do capitalismo ao socialismo. Nada parecido com isso aconteceu na Índia. Como EMS escreveu em A questão nacional indiana:
Em oposição a essa transformação em dois estágios – escravidão ao feudalismo e feudalismo ao capitalismo –, a Índia permaneceu ligada à mesma velha ordem sob a qual a esmagadora maioria do povo pertencia às castas oprimidas e atrasadas. Essa é a essência do que Marx chamou de sociedade “imutável” da Índia, onde a aldeia não foi tocada pelas guerras e convulsões dos níveis mais altos.
A sociedade de castas e a hegemonia do bramanismo tiveram um impacto muito pernicioso na sociedade indiana. O sistema de castas não apenas manteve as massas oprimidas em cativeiro; a hegemonia ideológica do bramanismo resultou em uma estagnação constante da ciência e da tecnologia e, portanto, em última análise, também das forças produtivas. Esse processo enfraqueceu a Índia, deixando a porta aberta para o colonialismo europeu. Como EMS colocou em 1989, “a derrota das castas oprimidas pelas mãos da soberania brâmane, do materialismo pelo idealismo, constituiu o início da queda da civilização e da cultura da Índia, que no final levou à perda da independência nacional”.
A estagnação da história indiana desde a época de Adi Shankara no século VIII foi encapsulada na sociedade feudal baseada em castas. Essa ordem de castas, com suas justificativas religiosas, foi capaz de conter suas contradições. Isso significava que, embora os embates contra a ordem de casta por meio de rebeliões tenham ocorrido ao longo da história da Índia, nenhuma dessas foi capaz de atacar o sistema de castas frontalmente e quebrar sua hierarquia de forma substantiva.
Nem o colonialismo britânico nem a burguesia indiana no Estado pós-colonial tinham qualquer desejo real de destruir as castas. A conversão dos proprietários feudais em proprietários capitalistas e a conversão dos servos arrendatários em proletariado agrário não rompeu com o feudalismo. As transformações apenas sobrepuseram as relações sociais capitalistas à ordem feudal baseada em castas. “Na Índia, muitas das formas de exploração do sistema pré-capitalista perduram, algumas na forma original e outras em formas alteradas. Existe junto a essas formas um novo sistema de exploração como resultado do desenvolvimento capitalista”, escreveu EMS. O proletariado agrário experimentou uma dura pauperização por causa das velhas relações feudais: os pobres do campo ficaram mais pobres à medida que os velhos costumes feudais permitiam que os proprietários transferissem todos os fardos da agricultura para seus trabalhadores, enquanto colhiam todos os lucros. Pouco foi reinvestido em modernização da agricultura de alguma forma.
As formações sociais pré-capitalistas cultivadas pelo colonialismo e pela burguesia nacional tiveram que ser sistematicamente minadas pelos movimentos populares da Índia independente. EMS rastreou as potencialidades da sociedade indiana, encontrando oportunidades de progresso social e freios contra isso. Ciente da opressão especial da casta e do forte componente religioso na sociedade indiana, EMS lutou para organizar o povo com bases diversas dessas linhas. Não se pode lutar contra a opressão de casta utilizando-se delas; em vez disso, a opressão de casta deve ser combatida reunindo o povo em organizações de classe unificadas que entendiam e enfatizavam o papel especial da casta na sociedade indiana. Como ele colocou em seu ensaio Mais uma vez sobre castas e classes (1981):
Na época tínhamos, e ainda temos, que travar uma batalha em duas frentes. Contra nós, por um lado, estão aqueles que nos denunciam por nosso suposto “afastamento dos princípios do nacionalismo e do socialismo”, uma vez que defendemos causas “sectárias” como as das castas oprimidas e minorias religiosas. Por outro lado, estão aqueles que, em nome da defesa das massas de castas oprimidas, de fato, as isolam da principal corrente na luta unificada dos trabalhadores, independentemente de casta, comunidade e assim por diante.
Mas a tônica da unidade não foi feita para dissolver questões de miséria social vividas por castas oprimidas, mulheres, adivasis (comunidades tribais) ou aqueles que vivenciaram a violência da hierarquia de classes ao lado da violência de outras hierarquias. Essas perguntas tinham que estar sobre a mesa. O movimento comunista na Índia levou muitas décadas para lutar com o equilíbrio exato entre a necessidade de unidade de todas as pessoas exploradas e a ênfase especial a certos tipos de opressão existentes nas divisões sociais. A rota organizacional inicial proposta pelo comunismo indiano era usar a plataforma das organizações de classe para atacar abertamente a opressão de casta, o domínio religioso e o chauvinismo feudal masculino. Mas logo ficou claro que isso era insuficiente.
O nó
A classe trabalhadora não é composta de corpos de trabalhadores não identificados. É formada por pessoas com experiências de hierarquias sociais e miséria que requerem especificidades no combate a essas hierarquias. É por isso que o comunismo indiano acabaria por desenvolver plataformas organizacionais, a partir do início dos anos 1980, como a Associação Democrática das Mulheres de Todas as Índias (AIDWA) e a Frente pela Erradicação da Intocabilidade Tamil Nadu, que concentrariam a atenção nas hierarquias específicas que precisam ser combatidas paralelamente às demandas de classe da esquerda. O tema é abordado de forma clara por Brinda Karat, uma líder do PCI(M) e ex-presidente da AIDWA:
Uma compreensão mecânica da classe costuma ser problemática. Quando Marx disse para os trabalhadores do mundo se unirem, ele não estava falando dos trabalhadores do sexo masculino. Não somos capazes de integrar as múltiplas formas do duplo fardo que as mulheres trabalhadoras enfrentam como parte integrante de nossa luta. Todas as revoluções bem-sucedidas mostraram o papel crítico das mulheres trabalhadoras na revolução. Sabemos que a Revolução de fevereiro na Rússia foi iniciada por enormes manifestações de rua das mulheres trabalhadoras.
Além do gênero, em nossa experiência na Índia, dentro das classes trabalhadoras, há setores que enfrentam opressão e discriminação com base em castas, com um grande setor dos chamados intocáveis, os Dalits, relegados aos degraus mais baixos da escada social. A casta atua como um instrumento de intensificação da extração de mais-valia dos Dalits. Um pouco semelhante é o ataque aos direitos das comunidades Adivasi (comunidades tribais), com a apropriação por corporações de terras, florestas, destruição de histórias, culturas, línguas e modos de vida. Nenhuma luta de classes na Índia pode ter sucesso sem, ao mesmo tempo, enfrentar o sistema hierárquico de castas baseado no nascimento contra os Dalits ou os problemas específicos que os trabalhadores Adivasi enfrentam. Acho que isso seria igualmente relevante na questão da discriminação racial, religiosa ou mesmo contra imigrantes em outros países.
Esses aspectos cresceram no último século e as lutas da classe trabalhadora que os ignoram são prejudicadas e enfraquecidas, expondo-se a legítimas acusações de racismo ou casteísmo. Assim, a consciência de classe deve necessariamente incluir a consciência da exploração específica que os trabalhadores podem enfrentar por causa de sua casta, origem racial ou por causa de seu gênero.
Enquanto as lutas na Índia enfrentavam sua própria complexidade, no Brasil, Heleith Saffioti (1934-2010) se aprofundou nos movimentos pela liberdade durante o longo período da ditadura militar (1964-1985) para entender o que chamou de “nó”. Os fios do capitalismo, racismo e patriarcado, explicou, se entrelaçam em um apertado “nó” que representa um grande peso sobre a capacidade das forças sociais de avançar em uma agenda de emancipação. Como consequência do imperialismo, partes do mundo – principalmente os continentes da África, Ásia e América Latina – foram mantidas em uma situação permanente de deflação salarial. Os trabalhadores dessas partes do mundo foram impedidos de elevar seus níveis salariais e de vida a um nível aceitável. Essa deflação geral dos salários tornou a questão da reprodução social virtualmente impossível e, assim, o custo social da reprodução da classe trabalhadora e do campesinato – mesmo então bastante precário e informal – permaneceu sendo sustentado cada vez mais pelas mulheres. Saffioti, em sua obra clássica Mulher na sociedade de classes (1976), argumentou que as mulheres dos países capitalistas avançados não podiam se emancipar, uma vez que o capitalismo, mesmo nesses países, dependia da estrutura familiar – leia-se, das mulheres – para arcar com os custos da reprodução social. Se era assim nesses países, a pressão sobre as mulheres no Sul era muito maior. A sociedade de classes, escreveu Saffioti, baseia-se nas hierarquias sociais de gênero, raça e etnia e no acesso aos recursos. A crença de que não há socialismo sem feminismo foi a força motriz do trabalho de Saffioti. Também não pode haver socialismo sem combater o racismo e a intolerância religiosa. O “nó” precisava ser encarado diretamente por essa tradição marxista.
Lendo o marxismo de libertação nacional
Uma das limitações da compreensão dominante do marxismo é a suposição de que a “teoria” é produzida na Europa e na América do Norte, enquanto a “prática” ocorre no Sul Global. Supõe-se que os revolucionários no Sul escrevem tratados e manuais, notas fugazes sobre seus movimentos, mas não contribuem para o marxismo de maneira substancial. É comum escutar: o que Mao Zedong, Ho Chi Minh ou Che Guevara escreveram de real importância? Os manuais de guerras revolucionárias são úteis, afirma essa perspectiva, mas não são decisivos para a compreensão das mutações do capitalismo e do imperialismo. Parte disso é arrogância. A outra parte é a falta de compreensão do ritmo de trabalho que nossos movimentos exigem de nossos intelectuais e dirigentes.
Perry Anderson escreveu há décadas que “a marca registrada oculta do marxismo ocidental como um todo é […] que é um produto da derrota”. Mas o marxismo no Sul não foi categoricamente derrotado como movimento político. Ele continua a lutar adiante, com sua liderança enraizada nessas lutas, ainda não banida da linha de frente. Seus textos nem sempre são elaborações altamente teóricas, escritos à luz de velas e ao som de cascatas de protestos ao seu redor. A obra deve ser levada a sério e estudada por sua forma e conteúdo, pelas inovações embutidas nesses textos que levam adiante o pensamento revolucionário de maneira criativa.
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As ilustrações deste dossiê trazem adaptações visuais de capas de livros e revistas, incluindo:
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