Bisa Butler (EUA), Eu sei porque o pássaro engaiolado canta, 2019.

 

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

O Império nega sua própria existência. Não existe como império, mas apenas como benevolência, com a missão de difundir os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável em todo o mundo. No entanto, essa perspectiva não significa nada em Havana nem em Caracas, onde “direitos humanos” passou a significar mudança de regime e onde “desenvolvimento sustentável” passou a significar o estrangulamento de seu povo por meio de sanções e bloqueios. É do ponto de vista das vítimas do império que vem a clareza.

O presidente dos EUA, Joe Biden, sediará a Cúpula das Américas em junho, onde espera aprofundar a hegemonia de Washington sobre as Américas. O governo dos Estados Unidos entende que seu projeto de hegemonia enfrenta uma crise existencial causada pelas fragilidades do sistema político e da economia  estadunidenses, com recursos limitados disponíveis para investimentos em seu próprio país, quanto mais no resto do mundo. Ao mesmo tempo, a hegemonia dos EUA enfrenta um sério desafio da China, cuja Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) tem sido vista em grande parte da América Latina e do Caribe como uma alternativa à agenda de austeridade do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em vez de trabalhar junto com os investimentos chineses, os EUA estão ansiosos para usar qualquer meio para impedir que a China se envolva com países das Américas. Nesse eixo, os EUA revitalizaram a Doutrina Monroe. Essa política, que completará dois séculos no ano que vem, afirma que as Américas são o domínio dos Estados Unidos, sua “esfera de influência” e seu “quintal” (embora Biden tenha tentado ser fofo chamando a região de “Jardim da frente”).

Junto com a Assembleia Internacional dos Povos, desenvolvemos um alerta vermelho sobre dois instrumentos do poder estadunidense – a Organização dos Estados Americanos e a Cúpula das Américas – bem como o desafio que os EUA enfrentam ao tentar impor sua hegemonia na região. O alerta vermelho é apresentado abaixo e está disponível aqui como PDF. Leia, discuta e compartilhe.

 

 

 

O que é a Organização dos Estados Americanos?

A Organização dos Estados Americanos (OEA) foi formada em Bogotá, Colômbia, em 1948, pelos Estados Unidos e seus aliados. Embora a Carta da OEA invoque a retórica do multilateralismo e da cooperação, a organização tem sido usada como ferramenta para lutar contra o comunismo no hemisfério e para impor uma agenda dos Estados Unidos aos países do continente. Aproximadamente metade dos fundos para a OEA e 80% dos fundos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), um órgão autônomo da OEA, vêm dos EUA. Vale notar que – apesar de fornecer a maior parte de seu orçamento – os EUA não ratificaram nenhum dos tratados da CIDH.

A OEA mostrou suas verdadeiras cores após a Revolução Cubana (1959). Em 1962, em uma reunião em Punta del Este (Uruguai), Cuba – membro fundador da OEA – foi expulsa da organização. A declaração da reunião afirmou que “os princípios do comunismo são incompatíveis com os princípios do sistema interamericano”. Em resposta, Fidel Castro chamou a OEA de “Ministério das Colônias dos EUA”.

A OEA criou a Comissão Consultiva Especial sobre Segurança Contra a Ação Subversiva do Comunismo Internacional em 1962, com o propósito de permitir que as elites das Américas – lideradas pelos EUA – usem todos os meios possíveis contra os movimentos populares da classe trabalhadora e do campesinato. A OEA deu cobertura diplomática e política à Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA, pois participou da derrubada de governos que tentaram exercer sua soberania legítima – soberania que a Carta da OEA supostamente garante. Esse exercício foi desde a expulsão de Cuba pela OEA em 1962, a orquestração de golpes em Honduras (2009) e na Bolívia (2019), as repetidas tentativas de derrubar os governos da Nicarágua e Venezuela e a contínua interferência no Haiti.

Desde 1962, a OEA atua abertamente ao lado do governo dos EUA para sancionar países sem uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que torna essas punições ilegais. Tem, portanto, violado regularmente o “princípio de não interferência” de sua própria carta, que proíbe “força armada, mas também qualquer outra forma de ingerência ou tentativa de ameaça contra a personalidade do Estado ou contra seus interesses políticos, econômicos e elementos culturais” (capítulo 1, artigo 2, seção b; e capítulo 4, artigo 19).

 

 

Diego Rivera (Mexico), Liberación del Peón (‘Liberation of the peon’), 1931.

 

O que é a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac)?

A Venezuela, liderada pelo presidente Hugo Chávez, iniciou um processo no início dos anos 2000 para construir novas instituições regionais fora do controle dos EUA. Três grandes plataformas foram construídas nesse período: 1) a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba); 2) a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ambas em 2004; e 3) a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em 2010. Essas plataformas estabeleceram conexões intergovernamentais nas Américas, incluindo cúpulas sobre assuntos de importância regional e instituições técnicas para melhorar o comércio e as interações culturais além-fronteiras. Cada uma dessas plataformas enfrentou ameaças dos Estados Unidos. À medida que os governos da região oscilam politicamente, seu compromisso com essas plataformas ou aumentou (quanto mais à esquerda estão) ou diminuiu (quanto mais subordinados aos Estados Unidos se encontram).

Na 6ª Cúpula da Celac na Cidade do México, em 2021, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, sugeriu que a OEA seja dissolvida e que a Celac ajude a construir uma organização multilateral na escala da União Europeia para resolver conflitos regionais, construir parcerias comerciais e promover a unidade das Américas.

 

 

Tessa Mars (Haiti), Untitled, Praying for the visa series, 2019.

 

O que é a Cúpula das Américas?

Com a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os Estados Unidos tentaram dominar o mundo usando seu poder militar para disciplinar qualquer Estado que não aceitasse sua hegemonia (como no Panamá, em 1989, e no Iraque, em 1991) e institucionalizando seu poder econômico por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1994. Os Estados Unidos convocaram os Estados membros da OEA a Miami para a primeira Cúpula das Américas em 1994, que foi posteriormente entregue à OEA para administrar. Desde então, a cúpula se reúne a cada poucos anos para “discutir questões políticas comuns, afirmar valores compartilhados e comprometer-se com ações combinadas em nível nacional e regional”.

Apesar de seu domínio sobre a OEA, os EUA nunca conseguiram impor plenamente sua agenda nessas cúpulas. Na terceira cúpula na cidade de Quebec (2001) e na quarta em Mar del Plata (2005), os movimentos populares realizaram grandes protestos; em Mar del Plata, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, liderou uma manifestação massiva, que resultou no colapso do acordo das Áreas de Livre Comércio das Américas (Alca) imposto pelos EUA. A quinta e sexta cúpulas de Port of Spain (2009) e Cartagena (2012) tornaram-se um campo de batalha para o debate sobre o bloqueio dos EUA a Cuba e sua expulsão da OEA. Devido à imensa pressão dos Estados membros da OEA, Cuba foi convidada para a sétima e oitava cúpulas na Cidade do Panamá (2015) e Lima (2018), contra a vontade dos Estados Unidos.

No entanto, os Estados Unidos não convidaram Cuba, Nicarágua ou Venezuela para a próxima cúpula, a nona, a ser realizada em Los Angeles em junho de 2022. Vários países – incluindo Bolívia e México – disseram que não participarão da reunião a menos que todos os 35 países das Américas estejam presentes. De 8 a 10 de junho, várias organizações progressistas realizarão uma Cúpula dos Povos para se opor à cúpula da OEA e amplificar as vozes de todos os povos das Américas.

 

 

Rufino Tamayo (México), Animais, 1941.

 

Em 2010, o poeta Derek Walcott (1930–2017) publicou “The Lost Empire” [O império perdido], uma celebração do Caribe e de sua própria ilha, Santa Lúcia, em particular quando o imperialismo britânico recuou. Walcott cresceu com a asfixia econômica e cultural imposta pelo colonialismo, a feiúra de se sentir inferior e a miséria da pobreza que o acompanhava. Anos depois, refletindo sobre o júbilo da retirada do domínio britânico, Walcott escreveu:

 

E então de repente não havia mais Império.
Suas vitórias viraram ar, seus domínios, poeira:
Birmânia, Canadá, Egito, África, Índia, Sudão.
O mapa que havia vazado sua mancha na camisa de um estudante
como tinta vermelha num mata-borrão, batalhas, longos cercos.
Dhows e faluas, estações de montanha, postos avançados, bandeiras
flutuando no crepúsculo, sua égide dourada
saiu com o sol, o último brilho de um grande rochedo,
Com sikhs de turbante e olhos de tigre, flâmulas do Raj
para uma corneta soluçando.

 

O sol está se pondo no imperialismo à medida que emergimos lenta e delicadamente em um mundo que busca igualdade significativa em vez de subordinação. “Este pequeno lugar”, escreve Walcott sobre Santa Lúcia, “não produz nada além de beleza”. Isso seria verdade para o mundo inteiro se pudéssemos ir além de nossa longa e moderna história de batalhas e cercos, navios de guerra e armas nucleares.

Cordialmente,

Vijay.