Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pequisa Social.

As ruas de Quito tremem entre a aspiração e a repressão; o cheiro de gás lacrimogêneo e os gritos de liberdade reverberam em igual medida de uma parte a outra da cidade. O estado de emergência do presidente Lenín Moreno (3 de outubro) e o toque de recolher (12 de outubro) dão mais autoridade aos homens armados, mas – apesar de centenas de manifestantes feridos e pelo menos cinco mortos – a violência não quebrou o entusiasmo nas ruas. Os protestos continuam. As opções de Moreno se esgotarão em breve. As elites  e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – com um aceno da Casa Branca – podem pedir que ele renuncie. Eles preferem que seu sócio tenha credibilidade.

Em 13 de outubro, Moreno teve que prometer a anulação do Decreto 833. A pressão das ruas, das Nações Unidas e da Conferência Episcopal do Equador o forçou a ir à mesa de negociação, na qual foi realizada um debate transmitido pela televisão. Os líderes indígenas saíram vencedores – estavam muito mais preparados e são muito mais humanos que o presidente e seus ministros desajeitados. Moreno e sua equipe – a ministra do governo María Paula Romo e o ministro da Defesa Oswaldo Jarrín – deixaram a sala para um recesso e se renderam. Esse é um triunfo do povo. Mas agora Moreno deve ir ao FMI. Que pressão isso colocará sobre ele? A batalha continua.

O conselho do FMI se reúne em Washington para sua reunião anual. A nova líder do Fundo é Kristalina Georgieva – da Bulgária – que antes estava no Banco Mundial. O trabalho dela não será fácil. O relatório Perspectivas da Economia Mundial do FMI, publicado em julho, calcula que a produtividade mundial em 2019 deve encolher para 3,2%, em comparação com 3,8% (2017) e 3,6% (2018). Para permanecer otimista – ainda que os dados para sustentar essa atitude sejam poucos – o Fundo estima que o número suba para 3,5% em 2020. Mas Georgieva e seus associados no conselho do Fundo sabem que as questões são muito mais sombrias. “O crescimento econômico global continua decepcionando”, disse Georgieva recentemente. Guerras comerciais e altos níveis de dívida contribuem ainda mais para uma crise geral do capitalismo.

O novo Relatório de Comércio e Desenvolvimento (2019) da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), publicado no final de setembro, afirma que uma recessão em 2020 é mais que provável. Nos últimos anos, as taxas de crescimento foram sustentadas por “cortes pontuais de impostos e déficits insustentáveis, que se tornam ainda mais precários por um rápido acúmulo de dívidas privadas, particularmente no setor corporativo”. Enquanto isso, “os números de desemprego escondem problemas de empregos inseguros e desanimam os trabalhadores”. Adicione a isso “cadeias de suprimentos interrompidas, fluxos voláteis de capital e aumento dos preços do petróleo”, e parece inevitável que “nessas tendências, uma desaceleração – e possivelmente até uma recessão – pareça provável”.

Capa do dossiê da Argentina

Não há nada que o FMI possa fazer. Isso está relacionado aos Estados Unidos, de onde Georgieva espera arrecadar fundos para o FMI de cerca de 1 trilhão de dólares. Os Estados Unidos continuam a dominar o Fundo. Em 2015, o FMI divulgou um estudo que argumentou contra a “economia pelo lado da oferta”, sugerindo que a política que prega cortes de impostos e orçamentos não leva à utopia. Em vez disso, escrevem os autores, reduções de impostos e cortes de orçamento produzem resultados cujos benefícios “não se redistribuem”. As implicações deste estudo não chegaram aos andares superiores do FMI, nem no escritório da diretora, nem no conselho. São os negócios de sempre do FMI. Seus próprios economistas não são tão importantes quanto os sussurros do Departamento do Tesouro dos EUA e da Casa Branca.

No final do ano passado, a Rede Europeia de Dívida e Desenvolvimento (Eurodad) divulgou um estudo importante sobre as condicionalidades de empréstimos do FMI e o seu impacto na área da Saúde. O autor – Gino Brunswijck – analisou empréstimos do FMI para 26 países entre 2016 e 2017. Em 20 deles, “pessoas entraram em greve ou saíram às ruas para protestar contra cortes no governo, o custo crescente de vida, reestruturação fiscal e reformas salariais impulsionadas pelas condicionalidades do FMI”. Desde que o estudo foi publicado, pessoas na Argentina, República Tcheca, Equador, Egito, Haiti, Jordânia, Marrocos, Paquistão, Sudão, Tunísia e outros países saíram às ruas. Para eles, não há alternativa: ou protestam ou passam fome.

Soldados alemães, uma mula e gás lacrimogêneo (1916)

Diversos pontos relevantes que merecem reflexão surgiram a partir desse estudo da Eurodad :

  1. Nos últimos anos, os empréstimos do FMI vêm junto com um número crescente de condições de ajuste estrutural. O número médio de condições por empréstimo entre 2017 e 2018 foi de 26,8; entre 2011 e 2013, o número médio de condições foi de 19,5.
  2. Dentro da linguagem difícil usada nos contratos de empréstimo, há uma série de condições “ocultas”; estas estão frequentemente nos documentos em anexo.
  3. Depois que os contratos de empréstimo são assinados, o FMI adiciona mais condições ao mesmo empréstimo.
  4. Dos 26 empréstimos estudados, 23 exigiram “consolidação fiscal”, o que significa que os governos foram forçados a restringir os gastos. O FMI, em outras palavras, impôs austeridade nesses países.
  5. A maioria dos países que foi ao FMI era de “devedores reincidentes”, o que significa que os empréstimos do FMI não solucionaram seus problemas, mas apenas os exacerbaram. O Fundo não fez nada para resolver a insolvência estrutural desses governos, mas levou os países a contraírem dívidas insustentáveis. Em 2013, um estudo do próprio FMI admitiu que, devido ao acordo do Fundo com a Grécia, em 2010, “a confiança do mercado não foi restaurada, o sistema bancário perdeu 30% de seus depósitos e a economia se viu em uma recessão muito mais profunda do que a esperada, com um desemprego excepcionalmente alto”. As exigências do Fundo apenas aprofundaram os problemas da Grécia. Essa lição não foi absorvida.
  6. Finalmente, o FMI exigiu austeridade dos países em desenvolvimento, mesmo em tempos de crise, sabendo muito bem que esse é o momento no qual é importante que os governos gastem em estímulo fiscal de uma economia deprimida. Os países capitalistas avançados, por outro lado, não cumprem a exigência do FMI. Entre o outono de 2008 e o início de 2009, calcula o economista francês Cédric Durand, esses Estados comprometeram 50,4% do PIB mundial para apoiar o setor financeiro. Nada dessa generosidade jamais foi canalizada para apoiar os pobres, que compõem a grande maioria das pessoas do planeta.

Camuflado por trás de frases do FMI, como “forjar um pacto social mais forte”, vem a tônica antiquada de austeridade para os pobres e a generosidade para os ricos. O acordo entre o FMI e o Equador exortou o governo de Moreno a cortar salários de 140 mil funcionários do setor público, enquanto os preços da energia e impostos por serviços governamentais seriam aumentados. Os ricos não pagariam nada. O dinheiro destinado a comprar galões de gás lacrimogêneo e equipamentos da polícia de choque também poderiam ter ido facilmente para a saúde e educação. O “pacto social” que o FMI constrói em cada país é forjado não através dos laços sociais, mas através das barricadas de protesto e repressão.

 

Kalamashaka, Ni Wakati, 2001.

Cada chefe do FMI chega ao primeiro escalão com uma agenda. Christine Lagarde queria promover a equidade de gênero, o que significava – para Lagarde e o FMI – aumentar o número de mulheres na força de trabalho. Em um dos documentos da equipe, os pesquisadores do FMI apontaram que isso só seria possível se os países investissem em infraestrutura (como transporte público), promovessem direitos iguais para as mulheres (como leis de herança e direitos de propriedade) e promovessem o acesso a serviços de cuidados infantis acessíveis. Porém, a maioria dos contratos de empréstimo do FMI exige cortes na infraestrutura pública, na assistência à infância e à saúde. A política do FMI, na verdade, foi contra a já limitada agenda promovida por Lagarde.

Ofelia Fernández no escritório da Tricontinental de Buenos Aires

Lagarde, que agora está na corrida para chefiar o Banco Central Europeu, poderia ter feito bem em ouvir Ofelia Fernández, uma militante argentina de 19 anos que está concorrendo a um assento no governo de Buenos Aires. Ofelia não quer definir sua política estritamente. Ela quis deixar claro para mim, no mês passado, que o feminismo deve abordar todas as questões sociais de uma perspectiva feminista – não se deixar restringir a “questões de mulheres”, que são elas mesmas, apontou a jovem, as questões de todos. Nas partes mais pobres da Argentina, surgiram organizações para combater as consequências da crise. A fome é um problema sério, principalmente entre as crianças. A maioria dos líderes dessas organizações populares, disse Ofelia, é mulher. A luta delas em torno da economia do cuidado e contra a austeridade também deve ser vista como uma luta feminista. A luta contra a fome, disse Ofelia, também é parte do feminismo.

Georgieva chega ao seu posto ansiosa para enfrentar os “riscos climáticos” e pedir uma mudança para um sistema de energia pós-carbono. Sua forma política será reduzir os subsídios à energia e aumentar os impostos sobre o carbono. Um estudo recente do FMI mostra que os gastos com gasolina e energia doméstica devem aumentar drasticamente, de modo a limitar o aquecimento global. O que temos aqui é austeridade na forma de ambientalismo. Em vez de promover mais uma política de impostos regressivos sobre os pobres, o FMI poderia exigir investimentos em transporte público e uma transição da energia baseada em carbono para formas mais sustentáveis. Mas este não é o temperamento do FMI. Política neoliberal e austeridade são seus contornos.

A manchete desta carta semanal não vem de um poeta radical. Vem do Wall Street Journal. Durante a crise financeira asiática em 1998, o jornal publicou um editorial que dizia que o FMI “não está combatendo incêndios financeiros, mas encharcando-os com gasolina”. O FMI é o primeiro a jogar gasolina.

As pessoas querem apagar essas chamas. Suas esperanças explodem com o verso de Dennis Brutus (1924-2009), o poeta anti-apartheid da África do Sul:

 

Chegará um momento, nós acreditamos

quando a forma do planeta
e as divisões da terra
serão menos importantes.
Seremos apanhados no brilho da amizade.
Uma estrela vermelha de esperança
iluminará nossas vidas.
Uma estrela de esperança.
Uma estrela de alegria.
Uma estrela da liberdade.

 

Cordialmente, Vijay.