Resenha da Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas II: Neoliberalismo

Greta Acosta Reyes (Cuba), Neoliberalismo, 2020

“Pintamos porque o grito só não basta e 

já não basta o pranto nem a raiva

Pintamos porque acreditamos no povo e

porque venceremos a derrota”

(adaptado do poema “Porque cantamos”, de Mario Benedetti)

Quando realmente, de forma urgente e desesperada, o povo precisa dizer algo, ele não espera pelos designers. O povo segue em frente, produzindo cartazes e panfletos da melhor maneira que podem – às vezes com resultados espetaculares. No processo, alguns também se tornam designers, orgânicos em seus movimentos, comunidades e contextos. As obras da Exposição de Cartazes Anti-imperialistas II: Neoliberalismo variam desde as criadas por designers profissionais até as feitas por artistas autodidatas, ativistas sem prática formal ou estreantes.

Os cartazes exibem uma variedade de estilos artísticos e de design. Do minimalismo de Choo Chon Kai (Parti Sosialis Malaysia, Malásia) às movimentadas ilustrações de Miguel Guerra (Utopix, Venezuela); da abordagem em quadrinhos de Roland Nalukoma Cubaka (Congo Love, República Democrática do Congo) à elegante tipografia de Nancy Naser Al Deen (Líbano). Em cada cartaz há algo que evoca a cultura em que foi criado.

Embora o cartaz tenha sido uma arma na luta dos oprimidos em todo o mundo, poucos são os lugares que transformaram essa tradição em uma grande arte e ciência como Cuba. Desde a revolução de 1959, a ilha produziu dezenas de milhares de cartazes políticos, tanto para uso interno como em outras terras, enaltecendo as lutas dos povos internacionalmente. Os seis cartazes de Cuba nesta exposição nos mostram como esta gloriosa tradição foi levada adiante – e continua a ser transformada – por uma nova geração de artistas gráficos cubanos.

Apesar das diferentes características formais, contextos regionais e meios de produção, a exposição se unifica ao refletir sobre o “neoliberalismo” como uma característica definidora de nosso tempo. O neoliberalismo é às vezes um conceito difícil de entender, porém esta série de cartazes tenta dividi-lo em alguns temas visuais: o artesanal; o extrativismo; a privatização; a austeridade; a financeirização; a esperança e resistência.

O que todos esses cartazes têm em comum é a necessidade urgente de traduzir esse difícil conceito para o contexto das próprias experiências e lutas populares, enraizadas tanto em suas especificidades locais quanto na interconexão do sistema capitalista global. Estes cartazes são armas em luta.

 

O Artesanal

Miguel Guerra (Venezuela), Estructura de Opresión [Estrutura da Opressão], 2020

As obras da Exposição de Cartazes Anti-imperialistas II: Neoliberalismo nos permite ver diferentes visões do mesmo problema em diferentes línguas, culturas e regiões. Isso é arte. Esta nos permite partilhar com os outros as coisas boas e ruins que acontecem, refletindo sobre as experiências de uma cultura, de um povo e de uma classe, trazendo-as para um nível pessoal; trata-se de construir uma linguagem comum entre aqueles que se identificam com o trabalho compartilhado.

A exposição apresenta cartazes criados de várias maneiras – de softwares de design mais sofisticados a técnicas manuais, além de métodos híbridos. Essa diversidade põe em relevo a questão do acesso aos recursos e às condições de produção.

Escolhemos destacar o trabalho feito à mão porque vivemos em um mundo tão tecnologicamente mediado que às vezes nos impede de criar – e ver – a arte manual. Temos receio de que o trabalho artesanal não seja perfeito, ou que não seja tecnicamente sofisticado; como resultado, perdemos as ferramentas manuais, muitas vezes mais acessíveis, na batalha de ideias e na luta da classe trabalhadora. Perdemos a chance de ver peças tão boas e diversificadas como as que veremos nesta exposição. 

O trabalho manual não só amplia as possibilidades de expressão, mas ajuda a conectar as ideias veiculadas à nossa subjetividade. Ao preparar um cartaz manualmente, envolvemos e ativamos o corpo de uma forma que o trabalho digital não permite. Sentimos os gestos fortes na obra pintada à mão por Ciara Taylor (Popular Education Project, Estados Unidos), os detalhes dos movimentos de migração na pintura de Labani Jangi (People’s Archive of Rural India, Índia), as curvas orgânicas do sofrimento humano no cartaz de Deivisom Shirmer de Lima (Associação de Moradores do Bairro Riveira, Brasil).

Como decisão curatorial, optamos por não julgar e analisar os cartazes com base nos padrões burgueses de estética e técnica; em vez disso, optamos por julgá-los por sua capacidade de transmitir visões de uma realidade concreta das lutas globais dos povos contra o neoliberalismo.

 

Extrativismo

Roland Nalukoma Cubaka (Congo Love, República Democrática do Congo), L’enrichissement illicite des riches à travers la guerre et exploit des minerais [O enriquecimento ilícito dos ricos através da guerra e da exploração de minerais], 2020

A exploração capitalista e suas relações de produção só se aprofundam nos territórios periféricos, onde há reservas de força de trabalho, recursos naturais e bens sociais. Assim segue a lógica do capitalismo em sua fase de expansão imperialista.

O capitalismo, desde o seu início, baseia-se na lógica da autoexpansão, ou seja, o capital serve apenas para acumular mais capital e, para tal, subsume todas as relações sociais de produção, distribuição e troca.

No entanto, em sua fase mais recente de “acumulação por despossessão”, cada vez mais o capital coloca em risco a sobrevivência do planeta e da humanidade. A reprodução ampliada do capital significou a mercantilização de todos os aspectos da vida e dos recursos naturais que permitem o desenvolvimento da humanidade, desde a água e a natureza até a saúde e a educação.

A acumulação por despossessão se consolidou claramente com a ofensiva neoliberal dos anos 1990 e o modelo extrativista-exportador, com privatizações e grandes avanços na comercialização de bens públicos e naturais.

O extrativismo não conhece fronteiras. Nesta exposição, vemos esse tema de forma recorrente, dos recursos minerais da Papua ao Congo, passando pelos bens comuns do Cabo Verde e Brasil.

 

Privatização

Kelana Destin (Indonésia), Water [Água], 2020

A privatização não permitirá que a água e as árvores, tampouco o solo ou os frutos do mundo, atendam às necessidades da humanidade. Para lucrar, a classe dominante deve privatizar aquilo que necessitamos para sobreviver e fazer com que nosso trabalho se torne seu. Tudo o que tem um uso comum não pode ser livre e do povo, nem pode ser usado para o bem comum.

O neoliberalismo “socializa as perdas e privatiza os ganhos”, como Jeremy Kane (Chicago DSA, EUA) visualiza em seu cartaz USA. Um pilar dessa dominação é a compulsão por privatizar tudo o que é um bem social para o uso comum. Durante séculos, houve uma lenta e dolorosa mudança da produção de bens e serviços públicos para privados. Os programas que atendem ao interesse público são gradualmente eliminados e o bem estar social deixa de ser responsabilidade daqueles que elegemos.

Comer passa a ser privilégio de uma classe formada por abutres de terno, como demonstra Jorge González Morales (México) em seu cartaz Bienes comunes [Bens comuns]. Hospitais se transformam e todos seus leitos e máquinas passam a ser tratados como propriedades a serviço da maximização do lucro. A educação passa a ser a criação de mão de obra mais vendável, à medida que os grandes centros de aprendizagem se tornam fontes de dívidas para os jovens. Nações colonizadas tornam-se carne para ser vendida e comercializada no mercado global; Porto Rico é embalado em isopor no cartaz de Malena Vargas Sáez, Lista para su consumo [Pronta para seu consumo]. Continentes inteiros, seu povo e o próprio ar que respiram estão à venda; Kalia Venereo (Cuba) nos serve a América Latina em uma bandeja em seu cartaz, ON SALE [À VENDA]. Isso é privatização.

Como Seraphina Yoku mostra em Republic of Investor [República do Investidor] (Papua-Indonésia), o cano de uma arma estará à espreita caso tenhamos a ousadia de resistir. Quando fazemos perguntas, um dispensário móvel de remédios é trazido e um grande comprimido é distribuído em Contraindicaciones [Contraindicações], de Priscila Adamo (Argentina).

O que resta para as pessoas do mundo? Coletar galhos caídos para usar como lenha se tornou crime. Paredes altas são erguidas para manter a propriedade protegida das mãos “gananciosas” de pessoas famintas que têm a audácia de tentar permanecer vivas. Homens com coturnos pisam em nossas costas e esmagam nossos pescoços.

 

Austeridade

Choo Chon Kai (Parti Sosialis Malaysia, Malásia), Freedom of choice? [Liberdade de escolha?], 2020

“Eles cortam, nós sangramos”. O texto em negrito no cartaz de Robert Streader (Young Communist League of Britain, Grã-Bretanha) resume os fundamentos da austeridade; é parte integrante da política econômica neoliberal. Os cortes no setor público são mais do que o processo estéril por meio do qual os burocratas somam e subtraem números e elaboram argumentos convincentes em um relatório orçamentário. É um processo violento. É o roubo de recursos e serviços que o Estado deveria fornecer ao povo, deixando-o desprotegido e instável e, portanto, vulnerável a qualquer crise.

A austeridade tem se mostrado repetidamente um fracasso, mas as poderosas tesouras das instituições financeiras internacionais continuam se movendo em alta velocidade. Enquanto os Estados aconselham o povo a usar máscaras, lavar as mãos e ficar dentro de casa, simultaneamente dizem que não haverá mais auxílio social financiado pelo Estado; em vez disso, são informados de que deverão apenas trabalhar mais.

Uma das maiores mentiras da austeridade é a noção de que as pessoas estão de alguma forma exigindo coisas de graça, mas conforme brilhantemente visualizado no cartaz de Kelana Destin, Water [Água], esses recursos pertencem ao povo.

 

Financeirização

Nancy Naser Al Deen (Líbano), Down with neoliberalism [Abaixo o neoliberalismo], 2020

A classe dominante mundial sabe que está moralmente falida. Tenta compensar sua falência política manipulando a moral, a filantropia e os direitos humanos. Organizações não governamentais (ONGs) e instituições pertencentes à bilionários, que muitas vezes recebem seus próprios nomes, dão à classe dominante uma autoridade moral que ela não merece. Sabem que o que acumularam é uma clara expressão da corruptibilidade que carregam da cabeça aos pés.

Enquanto os ultrarricos mantêm sua riqueza em paraísos fiscais, evadindo impostos com facilidade, os pobres arcam com as consequências. As classes oprimidas não se beneficiam dos serviços que o Estado supostamente lhes presta. Na era do neoliberalismo, o capital mudou quase inteiramente para o setor financeiro especulativo para aumentar sua riqueza, colocando assim uma bomba-relógio sob a fundação de todo o sistema capitalista. No cartaz de Fabiola Sánchez Quiroz (Jóvenes ante la Emergencia Nacional, México), o touro que está sentado em Wall Street parece pressagiar para onde vai esse capital especulativo.

No modelo neoliberal, grandes lucros são obtidos e enormes riquezas são acumuladas nas mãos de especuladores, um processo desvinculado da produção. Isso gera um fenômeno chamado “lucros sem produção”.

Existem agora profundos desequilíbrios estruturais na economia capitalista global. O mais proeminente – e perigoso – é o desequilíbrio entre a maciça quantidade de capital financeiro acumulado e a economia real, o setor que produz bens e cria riqueza real.

Sob o neoliberalismo, os mercados financeiros começaram a crescer independentemente das reais necessidades de financiamento. A custódia da economia global passou das mãos de investidores e empresários da economia real para os gestores financeiros e especialistas de mercado da economia virtual, distantes do processo de produção. Diante de tudo isso, o papel do Estado foi reduzido à política monetária para combater a inflação. O Estado abandonou a tarefa de proteger a economia e também seu povo.

 

Esperança e resistência

Vikas Thakur (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Índia), Neoliberalismo, 2020

A esperança surge em atos de resistência ao neoliberalismo. A esperança emerge das pessoas enquanto lutam por uma nova sociedade que coloque os interesses da humanidade acima dos lucros corporativos. As obras para a Exposição de Cartazes Anti-imperialistas II: Neoliberalismo visualizam os impactos do neoliberalismo em nosso modo de vida e oferece vislumbres de esperança que emergem das lutas populares.

A beleza desse conjunto de cartazes emana em grande parte da singularidade com que esses artistas usam cores e imagens para retratar resistência e esperança.

Obed Mayambau Ngama (Congo Love, República Democrática do Congo) se utiliza de cores para retratar o abismo escuro do neoliberalismo, os efeitos venenosos dessa ideologia e a luta dos trabalhadores contra o peso da exploração corporativa. Adeeb Hamdan (Palestinian Democratic Youth Union, Palestina) usa cores para destacar e acentuar a resistência do povo palestino ao terror e à opressão infligida por Israel e patrocinada pelos EUA. Gerónimo Dellacasa (Argentina) recorre a diferentes tons para retratar o confronto entre oprimidos e opressores neoliberais.

As imagens detalhadas nas obras desenhadas à mão de Philani Emmanuel Mhlungu (Socialist Revolutionary Worker’s Party/Soweto Action Committee, África do Sul) retratam as lutas do povo contra o neoliberalismo e por um futuro socialista. De forma colorida, Judy Seidman (África do Sul) ilustra a mística da classe trabalhadora e os oprimidos de mãos dadas na luta. Danny Isham (Red Star Rising, EUA) usa uma linha de demarcação para mostrar que os trabalhadores estão do lado certo da história contra as políticas de livre mercado do neoliberalismo. Haydar Özay (Turquia) cria um retrato feroz de Karl Marx e de seu texto que continua a iluminar nossos movimentos e lutas populares em todo o mundo. O coletivo Un Mundo Feliz (Espanha) apresenta o símbolo do Euro sobreposto ao símbolo feminino, alertando que não podemos permitir que o neoliberalismo reduza o feminismo a uma mercadoria. Devemos colocar aqueles que estão no centro da exploração no centro da luta. O feminismo será anticapitalista ou não será.

A importância desses cartazes é que eles mostram que o neoliberalismo não acabará sem um esforço coordenado e organizado do povo. Esses cartazes capturam de maneira poderosa as lutas atuais e a luta pelo fim do neoliberalismo para o bem da humanidade.

 

 

 


Este texto foi escrito coletivamente pela equipe curadora da Exibição de Cartazes Anti-imperialistas:

 

Luciana Balbuena, Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (Argentina)

Gabriela Barraza, Escola José Carlos Mariátegui (Argentina)

Ibnou Ali Abdelouahad, Democratic Way (Morrocos)

Tings Chak,  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (China)

David Chung, The People’s Forum (EUA)

Sudhanva Deshpande, LeftWord Books (Índia)

Ingrid Neves,  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (Brasil)

Mikaela Nhondo Erskog, Socialist Revolutionary Workers Party (África do Sul)

Nora García Nieves, Partido Comunista da Espanha (Espanha)

Zoe PC, Assembleia Internacional dos Povos e People’s Dispatch (EUA)

Ambedkar Pindiga,  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (Índia)