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Frantz Fanon: o brilho do metal

Dossiê nº 26

Frantz Fanon walking up a ship gangway.

Frantz Fanon subindo uma passarela de navio. À direita de Fanon está Rheda Malek, jornalista do jornal da Frente de Libertação Nacional da Argélia, El Moudjahid.
Arquivos Frantz Fanon/IMEC


French colonial map of Martinique

Mapa da colonização francesa na Martinica do Novo Atlas Covens & Mortier, 1942. 
Wikimedia Commons / Geographicus Rare Antique Maps

Nesta terra há aquilo que merece vida

Mahmoud Darwish

 

Frantz Fanon nasceu na ilha caribenha Martinica em 25 de julho de 1925. Morreu nos Estados Unidos, de leucemia, em 6 de dezembro de 1961. Tinha 36 anos. Em sua curta vida, já havia sido protagonista de duas guerras, militado no Caribe, na Europa e no norte da África; foi dramaturgo, psiquiatra praticante, autor de vários artigos em revistas científicas, professor, diplomata, jornalista, editor de um jornal anticolonial, autor de três livros e um dos principais pan-africanistas e internacionalistas.

Como a trajetória de Ernesto “Che” Guevara – outro revolucionário que valorizava a poética e era um comprometido internacionalista, médico, militante, professor e teórico –, a vida de Fanon foi marcada por um movimento permanente, corajoso e militante no presente e na especificidade das situações em que se encontrava.

O pensamento de Fanon carrega, como Ato Sekyi-Otu definiu, uma “abertura irreprimível (…) ao universal”. No âmbito político, como no poético, o caminho mais verdadeiro para o universal sempre foi o intenso envolvimento com o particular em suas manifestações concretas no espaço e no tempo: um pedaço de terra ocupado nos interstícios dessa cidade, mulheres reconstruindo sobre as ruínas do último ataque, o plástico queimando no braseiro à medida que a noite passa, homens armados que saem das sombras.

Alain Badiou escreve que a coragem é uma virtude local. “Ela emerge de uma moralidade do lugar”, completa. É esse o terreno no qual os pensadores radicais – que produzem uma obra que sustenta uma capacidade de iluminação e inspiração através do espaço e do tempo – fundamentam seu intelecto. Pode ser um terreno perigoso. Nas próprias palavras de Fanon escritas na França, em 1952, o preço da possibilidade de que “duas ou três verdades lancem seu brilho eterno sobre o mundo” pode correr o risco da “aniquilação”.

Para o intelectual radical, o confronto com o particular às vezes pode exigir trabalho solitário, como em algumas formas de escrita na prisão. Mas o principal fundamento da razão militante é, nas palavras de Karl Marx, “participação na política e, portanto, em lutas reais”. E a emancipação – comunismo, nas palavras de Marx – é “o movimento real que abole o estado atual das coisas”, e não “um ideal ao qual a realidade [terá] que se ajustar”.

Para Marx, o mundo só será moldado pelas ideias mais valiosas dos esforços filosóficos quando a própria filosofia se tornar mundana por meio da participação na luta. Cedric Robinson fala sobre esse imperativo quando escreve que, para “cimentar a dor ao propósito, experimentação à expectativa, consciência à ação coletiva”, é necessário garantir que “a prática da teoria seja informada pela luta”.

Para Fanon, o desenvolvimento da razão radical – ou seja, da razão emancipatória – certamente inclui conversas com a filosofia tal como é definida por Paulin Hountondji: “não um sistema, mas uma história”. Mas o plano de transformação no qual esse trabalho se constitui é, não muito diferente da filosofia da práxis de Antônio Gramsci, o da luta – as lutas dos condenados da terra. Fanon é, nos termos de Gramsci, um filósofo democrático. “Este filósofo não é mais definido em termos de separação da ‘vida do povo’, mas como um elemento expressivo dessa vida que ele pretende cultivar, aumentando sua capacidade de relações ativas de conhecimento e prática”, escreve Peter Thomas.

Desde a morte de Fanon, no final de 1961, seu pensamento teve uma vida extraordinária, alcançando desde o turbilhão da revolução argelina até as prisões estadunidenses, passando pelas banlieues francesas e pelas favelas brasileiras e além. Às vezes expressa através de um poeticismo potente e sempre enraizada em um humanismo radical – afirmação imediata, universal e militante da igualdade e do valor da vida humana –, sua visão política se opõe resolutamente à lógica maniqueísta do colonialismo. O maniqueísmo é um conceito central no pensamento de Fanon. O termo nos chega de uma religião fundada por Mani, conhecida por seus seguidores como “Apóstolo da Luz”, na Babilônia, no terceiro século. Mani teceu um conjunto de religiões diversas em uma única nova fé que propunha um dualismo absoluto entre o bem e o mal representado, em termos simbólicos, pela luz e pela escuridão. Trazido ao discurso contemporâneo como metáfora, o maniqueísmo fala de uma divisão absoluta entre o bom (verdadeiro, bonito, limpo, saudável, próspero etc.) e o sombrio e o mau (falso, feio, sujo, doente, empobrecido etc.). É uma perspectiva inerentemente paranoide em relação ao mundo.

O pensamento de Fanon é marcado por um compromisso axiomático com um igualitarismo imediato e radical – incluindo o reconhecimento de uma capacidade universal da razão. É moldado, em sua estrutura profunda, por um sentido profundamente dialético da capacidade do ser humano de estar em movimento. Seu pensamento, tomado como um todo, não hesitou naquilo que Aimé Césaire, o extraordinário poeta surrealista, descreveu como a obrigação de “ver claramente, pensar claramente – isto é, perigosamente”.

Fanon insiste que a libertação deve restaurar a “dignidade de todos os cidadãos, encher suas mentes e banquetear seus olhos com coisas humanas e criar uma perspectiva que é humana, pois pessoas conscientes e soberanas a habitam”. Para Fanon, a restauração da dignidade não é uma questão de retorno. A jornada rumo ao que, no último ano de sua vida, em uma carta escrita ao intelectual iraniano Ali Shariati, ele chamou de “aquele destino onde a humanidade vive bem” é empreendida por meio de um processo constante de transformação e ampliação da esfera da razão democrática. Como observa Lewis Gordon, para Fanon, a legitimidade não é uma questão de oferecer prova de autenticidade racial ou cultural; em vez disso, surge “do engajamento ativo nas lutas pela transformação social e na construção de instituições e ideias que nutrem e libertam aqueles anteriormente colonizados”.

Para o intelectual formado na universidade, Fanon apresenta uma exigência simples, mas que mantém sua carga radical quase 60 anos depois: ir além da ordem ontológica e espacial da opressão e se comprometer com uma forma de práxis insurgente e democrática na qual “uma corrente mútua de iluminação e enriquecimento” é desenvolvida entre protagonistas de diferentes locais sociais.

 

 

Frantz Fanon at a press conference of writers in Tunis

Frantz Fanon em uma conferência de imprensa de escritores na Tunísia, em 1959.
Arquivos Frantz Fanon/IMEC


(Más) leituras

O último livro de Fanon, Os condenados da terra, chegou ao mundo logo depois do autor nos deixar. Em 1963, foi traduzido incorretamente para o inglês como The Wretched of the Earth. Alguns estudiosos preferem se referir a ele como The Damned of the earth, que é uma tradução melhor. Desde o início, Jean-Paul Sartre, um intelectual anticolonial comprometido, afastou muitos leitores com uma introdução que – embora compreensiva – interpretou mal Fanon como um pensador maniqueísta. Em 1970, Hannah Arendt, uma pensadora que adquiriu posição significativa na academia estadunidense, apesar de assumir posições consistentemente antinegras, agravou o problema com uma influente leitura errônea que reduziu o pensamento complexo de Fanon ao seu apoio à luta armada contra o colonialismo.

No entanto, há um conjunto de intelectuais que leram Fanon como um pensador sofisticado, e não como um arquétipo racial. Paulo Freire foi um dos primeiros grandes intelectuais a entender a teoria da práxis de Fanon. Em 1968, Freire estava terminando o manuscrito de seu segundo livro, Pedagogia do oprimido, em Santiago do Chile, exilado pela ditadura militar do Brasil. Em uma entrevista na Califórnia, em 1987, ele lembrou: “um jovem que estava em Santiago em uma tarefa política me deu o livro Os condenados da terra. Eu estava escrevendo Pedagogia do oprimido, e estava quase terminando quando li Fanon. Tive que reescrever o livro”.

Depois de ler Fanon, Freire desenvolveu um humanismo radical comprometido com o reconhecimento imediato da personalidade plena e igual dos oprimidos como pré-condição para a ação emancipatória. Como Fanon, sua práxis se baseia em uma ética de reciprocidade entre o intelectual autorizado e as pessoas que não tiveram acesso a muita educação formal.

Pedagogia do oprimido foi publicado no final daquele ano e, em 1972, foi adotado pela Organização dos Estudantes da África do Sul (SASO, sigla em inglês), formada por Steve Biko, Barney Pityana, Rubin Phillip e outros, em 1968. A começar por Durban, as ideias freireanas tornaram-se centrais para uma forma de ação radicalmente democrática que visava trabalhar em direção à consciência crítica como um projeto compartilhado, em vez de anunciar novas versões do que Marx havia chamado de “abstração dogmática” para o povo.

No final dos anos 1970 e 1980, as ideias freireanas sobre a práxis – moldadas em grande parte por Fanon e, em muitos casos, lidas em conjunto com Fanon – foram essenciais para o trabalho político realizado nos locais de trabalho e nas lutas comunitárias pela África do Sul. A teoria da práxis de Freire permitiu o surgimento de algumas das forças sociais mais impressionantes e poderosas do planeta na época, nas quais as pessoas comuns se tornaram protagonistas centrais da luta e na criação de significados, de contrapoder e da história vista pelos de baixo.

Em relação a ler Fanon como um teórico da práxis, a resposta rápida, mas extraordinária e duradoura de Sylvia Wynter aos distúrbios de 1992 em Los Angeles foi exemplar. Em sua conclusão explicitamente fanoniana de No humans involved: a letter to my colleagues [Nenhum humano envolvido: uma carta a meus colegas, tradução livre], ela foi além de Los Angeles e em direção “às vidas descartáveis (…) da grande maioria dos povos que habitam ‘as favelas/os bairros de lata’ do mundo e seus arquipélagos sem trabalho”. Wynter argumentou que, para intelectuais formados na universidade – que ela entende como “gramáticos” da ordem constituída, uma ordem que não conta a todos como igualmente humanos –, é imperativo “casar nosso pensamento” com o dos oprimidos.

Em 1996, Sekyi-Otu produziu uma leitura brilhante e profundamente dialética de Fanon, centrada na África, que situava a questão da práxis e – crucialmente – o que Sekyi-Otu chama de “o alívio da razão pródiga” na base do que Fanon se referia como “o cansativo caminho até o conhecimento racional”. Estudiosos como Nigel Gibson, Lewis Gordon e Tracy Sharpley-Whiting também contribuíram significativamente para os estudos de Fanon.

 

 

Meeting of Abahlali baseMjondolo, South Africa

Encontro do Abahlali baseMjondolo, movimento de moradores de favelas da África do Sul, em fevereiro de 2020.  
Rajesh Jantilal


Humanismo radical

Na África do Sul contemporânea, Fanon é lido e discutido tanto em oficinas de educação política organizadas em uma ocupação urbana duramente conquistada como em uma escola política sindical, e também na academia, tanto em seus espaços mais dissidentes como nos de maior proeminência. A vida e o trabalho de Fanon oferecem inspiração e acuidade analítica a todos esses públicos. Achille Mbembe, escrevendo em Johanesburgo, explica que:

Eu próprio fui atraído pelo nome e voz de Fanon porque ambos têm o brilho do metal. O pensamento dele é metamórfico, animado por uma vontade indestrutível de viver. O que dá a esse pensamento metálico sua força e poder é o ar de indestrutibilidade e, seu corolário, a injunção para se levantar. É o silo inesgotável da humanidade que abriga e que, ontem, deu força aos colonizados e que, hoje, nos permite olhar para o futuro.

Existem inúmeras conexões que abrem possibilidades frutíferas de diálogo entre o trabalho de Fanon e as formas contemporâneas de luta. Elas vão desde seu relato da centralidade da racialização do espaço e da espacialização da raça no projeto dos colonizadores até questões de linguagem, policiamento, inconsciente racial e – é claro – as realidades brutais do que passou a ser denominado a pós-colônia.

Na academia, o humanismo de Fanon é, com notáveis ​​exceções – como o valioso trabalho de Paul Gilroy –, frequentemente ignorado ou tratado como ultrapassado, ou mesmo pré–crítico. A condescendência sarcástica de pessoas cuja humanidade nunca foi posta em questão não é incomum. Mas na África do Sul contemporânea, é a questão do ser humano – de como se mede o ser humano e como a humanidade é afirmada – que liga o trabalho teórico de Fanon mais estreitamente ao trabalho intelectual realizado nas muitas vezes perigosas lutas por terra e dignidade. Aqui, dignidade é entendida como o reconhecimento de uma humanidade plena e igualitária, incluindo o direito de participar na decisão de assuntos públicos. Esse tipo de luta – frequentemente empreendida contra uma considerável violência do Estado e do partido no poder e contra o desprezo da sociedade civil – está fundamentalmente enraizada em um humanismo insurgente que legitima e sustenta a resistência. O importante trabalho de Nigel Gibson sobre Fanon e a África do Sul traz uma sólida compreensão disso.

A potência política contemporânea do humanismo radical não é exclusiva da África do Sul. De Caracas a La Paz, passando por Porto Príncipe, relatos de políticas populares e potencialmente emancipatórias frequentemente enfatizam o bairro, ou o território, como um importante local de luta, o bloqueio de estradas e a ocupação como táticas importantes, e a afirmação da humanidade dos oprimidos como o fundamento da força para sustentar a resistência. Essa afirmação é muitas vezes explicada como sendo sustentada por práticas sociais nas quais as mulheres desempenham um papel de liderança, e frequentemente mencionadas em termos de recuperação da dignidade. Não é incomum ouvir as pessoas falarem da falta de dignidade como consequência da expropriação do direito de participar na tomada de decisões em assuntos públicos, bem como terra, trabalho e autonomia sobre os corpos.

A questão do humano é, em parte, uma questão de como a opressão procura distribuir a atribuição da capacidade de raciocinar e reconhecer um discurso como tal enquanto descarta outros discursos, considerados como mero ruído – ruído que é um produto da irracionalidade. É uma questão de como determinamos quem tem honra e quem não, quem pode ser caluniado impunemente e quem merece respeito público, qual vida é valorizada e qual não, quais vidas devem ser regidas pela lei e quais devem ser rotineiramente governadas com violência, quais mortes devem ser lamentadas e quais não. A negação da humanidade plena e igualitária permite à opressão estabelecer os limites entre as formas de organização e contestação que podem ser vistas como política e aquelas que não, entre o que é a sociedade civil e o que é um setor engajado considerado irracional, criminoso e conspirativo.

O humanismo radical de Fanon, um humanismo feito – na famosa frase de Césaire – “à medida do mundo”, sustenta uma capacidade de falar com poder real a muitas das maneiras pelas quais a questão do humano é colocada e contestada dentro de formas contemporâneas de militância popular empreendidas a partir de zonas de exclusão e dominação social.

 

A porta aberta de toda consciência

Antes de vir para a França no final de 1946, para estudar Medicina e depois se especializar em psiquiatria, Fanon havia sido um soldado das Forces françaises libres [Forças Francesas Livres], onde lutou contra o fascismo na Europa, enfrentando simultaneamente o racismo constante dentro do exército francês. Em 1944, ele foi ferido na batalha de Colmar, uma cidade francesa perto da fronteira alemã, e recebeu a Croix de Guerre [Cruz da Guerra] por bravura. Em 1945, ele voltou para casa na Martinica, onde trabalhou para a bem-sucedida campanha de Césaire para ser eleito prefeito de Fort de France com base em uma plataforma comunista.

Desde o início, os escritos de Fanon na França mostravam preocupação pela forma como o racismo produz o que Michel-Rolph Trouillot chamaria mais tarde de “uma ontologia, uma organização implícita do mundo e de seus habitantes”. Em Le syndrome nord-africain [A síndrome norte-africana, tradução livre], um ensaio publicado aos 26 anos de idade, Fanon examinou como a ciência médica francesa abordou o migrante norte-africano com “uma postura a priori” que, crucialmente, não era derivada “experimentalmente”, mas sim com “base em uma tradição oral”. Ele observou que: “O norte-africano não vem com um substrato comum à sua raça, mas com uma base construída pelos europeus. Em outras palavras, o norte-africano, espontaneamente, pelo simples fato de aparecer em cena, entra em uma estrutura preexistente”. Nesse contexto, o norte da África aparece para o médico francês como “um simulador, um mentiroso, um falsificador, um preguiçoso, um ladrão”.

 

Stephen Biko (standing) at the 1971 conference of the South African Students' Organisation

Stephen Biko (em pé) na conferência de 1971 da Organização de Estudantes Sul-africanos (Saso, sigla em inglês). O Alan Taylor Residence Hall, lugar onde o evento ocorreu, era a única residência para estudantes de medicina negros na Universidade de Natal, sob o apartheid.   
Steve Biko Foundation

 

Fanon mostra que, na consciência do racista, e no intelecto geral das formações sociais racistas, a imaginada divisão ontológica da qual a ideologia racista depende é parte do que Immanuel Kant chamou de a priori – as categorias pelas quais o sentido é feito da experiência. Esse engano da razão – o que Gordon chama de “racionalidade racista” – resulta em sociedades racistas que produzem formas de conhecimento que, embora autorizadas como as instâncias mais completas da razão em funcionamento, são fundamentalmente irracionais.

O primeiro livro de Fanon, Pele negra, máscaras brancas, foi publicado no verão francês de 1952, alguns meses após A síndrome do Norte da África e no mesmo ano de Invisible Man [O homem invisível, tradução livre], de Richard Wright, com o qual muitas vezes é lido em conjunto. Analisado de forma soberba por Gordon, a obra é ao mesmo tempo uma declaração de um compromisso radical e afirmativo com a liberdade humana e uma crítica brilhante do racismo no Caribe e na metrópole que envolve questões que variam da linguagem à cultura popular, do romance ao sexo, da antropologia à psicologia. Continua sendo um texto fundamental para estudos críticos sobre raça.

Pele negra, máscaras brancas foi ditado a Josie Dublé, companheira com quem Fanon se casaria mais tarde, enquanto perambulava de um lado para o outro em seu quarto de estudante em Lyon. A prosa carrega a cadência desse movimento e é esculpida por um poetismo convincente com influências discerníveis da leitura de poetas como Aimé Césaire e Jacques Roumain. Partes do livro eram lidas, não muito diferentes de algumas passagens de Walt Whitman, como se para declamar.

Toda política repousa, conscientemente ou não, em uma ontologia, em uma teoria do ser humano. Para Fanon, existem dois fatos importantes sobre o ser humano, ambos mediados por uma disposição afirmativa. O primeiro é que o ser humano “é um movimento em direção ao mundo”. Na tradição da filosofia francesa que vai de Sartre a Badiou, a perspectiva do que Fanon chamou de “mutação” da consciência – a capacidade do ser humano de mudar – continuaria sendo um tema central de seu pensamento até o fim. Em seu trabalho produzido durante sua imersão na revolução argelina, a mutação da consciência seria explorada no contexto da luta coletiva.

Para Fanon, a consciência não é apenas dinâmica. O segundo fato importante sobre o ser humano é que a consciência é livre da mesma maneira que no existencialismo de Sartre. Para Fanon: “No mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente. Sou solidário do Ser na medida em que o ultrapasso”. Mas Fanon não compartilha do pessimismo da visão de Sartre de que o humano é “uma paixão inútil”. O humanismo de Fanon carrega um otimismo fundamental que pode ser discutivelmente localizado em uma tradição do humanismo do Caribe com antecedentes e paralelos africanos que vão de Toussaint Louverture a Aimé Césaire, Sylvia Wynter e Jean-Bertrand Aristide. Ele começa e termina seu primeiro livro insistindo que “o homem é um sim”.

O humanismo dele também carrega uma dimensão universal: “O antissemitismo me atinge em plena carne, eu me emociono, esta contestação aterrorizante me debilita, negam-me a possibilidade de ser homem”. Fanon afirma que “Todas as vezes em que um homem fizer triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disser não a qualquer tentativa de opressão do seu semelhante, sinto-me solidário com seu ato”. É claro que o uso da palavra “homem” é lamentável para um intelectual que insistiu em que “[nós] devemos nos proteger contra o perigo de perpetuar a tradição feudal que mantém sagrada a superioridade do elemento masculino sobre o feminino”.

Para Fanon, o imperativo de reconhecer toda consciência como autônoma e possuidora da capacidade de raciocinar e exercitar a liberdade é ético e empírico. Ele conclui seu primeiro livro, Pele negra, máscaras brancas, insistindo que “ao fim deste trabalho, gostaria que as pessoas sintam, como eu, a dimensão aberta da consciência”. O compromisso de Fanon no reconhecimento de toda consciência como uma porta aberta é um princípio universal, um axioma militante, totalmente oposto à concepção aristocrática da filosofia que, de Platão a Nietzsche e seus descendentes contemporâneos, reserva a razão a uma casta privilegiada. No início do livro, ele escreve como clínico e de acordo com a teoria da práxis que mais tarde seria elaborada no vórtice da guerra na Argélia:

Diante de uma velha camponesa de setenta e três anos, doente mental, em franco processo demencial, sinto, de repente, desmoronarem as antenas com as quais toco e pelas quais sou tocado. O fato de adotar uma linguagem apropriada à demência, à debilidade mental, o fato de me dedicar a essa pobre velha de setenta e três anos, o fato de ir ao seu encontro à procura de um diagnóstico, é o estigma de um afrouxamento da minha conduta nas relações humanas.

 

 

Meeting of the United Democratic Front (UDF)

Encontro da Frente Democrática Unida, organização anti-apartheid criada em 1883 e que se uniu às lutas de diversas organizações sul-africanas. 
Wits Historical Papers


Delírio maniqueísta

Pele negra, máscaras brancas também é uma teoria de como o racismo “envolve” o ser humano. Fanon descreve o desejo “de ter chegado puro e jovem em um mundo nosso, ajudando a edificá-lo conjuntamente”, mas se vê “Enclausurado nesta objetividade esmagadora”. Ele oferece uma teoria da ideologia racista como uma forma de “delírio maniqueísta”, na qual, na imaginação racista que estrutura tudo, desde publicidade ao entretenimento, ciência e inconsciente, a brancura está associada à beleza, razão, virtude, limpeza e assim por diante. E escuridão com o anverso. Na medida em que o progresso é possível dentro da lógica desse esquema, “do negro ao branco, tal é a linha de mutação. Ser branco é como ser rico, como ser bonito, como ser inteligente”.

Fanon descreve o inevitável fracasso das tentativas de encontrar uma maneira de obter o reconhecimento necessário para viver livremente contra o peso esmagador do racismo: “Toda mão era uma mão perdida para mim”. Uma dessas mãos perdidas era a razão. O fanatismo com o qual a razão era codificada como branca na imaginação racista era tal que era impossível ser reconhecida como simultaneamente razoável e negra: “[Quando] eu estava presente, não estava; quando estava lá, não estava mais”. O resultado final é o colapso: “Ontem, abrindo os olhos ao mundo, vi o céu se contorcer de lado a lado. Quis me levantar, mas um silêncio sem vísceras atirou sobre mim suas asas paralisadas. Irresponsável, a cavalo entre o Nada e o Infinito, comecei a chorar”.

Fanon conclui que não pode haver solução pessoal para o problema do racismo. O que é necessário é “uma reestruturação do mundo”. Ele encerra Pele negra, máscaras brancas afirmando que “conduzir o homem a ser acional, mantendo na sua esfera de influência o respeito aos valores fundamentais que fazem um mundo humano, tal é a primeira urgência daquele que, após ter refletido, se prepara para agir”. Esse é um compromisso com a práxis, um termo que aparece consistentemente nas publicações francesas originais do trabalho que ele produziria em Túnis, mas que é amplamente omitido nas traduções para o inglês.

 

 

Mutações radicais

Após concluir seus estudos na França, Fanon assumiu a posição de chefe do Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville, na Argélia, uma instituição colonial na qual implementou reformas radicais. Alice Cherki, estagiária do hospital e, mais tarde, a biógrafa mais sensível de Fanon, lembra que seu objetivo como clínico era “não amordaçar a loucura, mas ouvi-la”.

Em 1956, descrevendo a sociedade colonial como “uma rede de mentiras, covardia, e desprezo pelo homem”, ele renunciou ao cargo no hospital para se juntar à revolução contra o colonialismo francês de uma base em Tunis. Ele trabalhava para a revolução como psiquiatra, jornalista, editor e diplomata, realizava trabalhos de reconhecimento e ensinava filosofia – incluindo a Crítica da razão dialética, de Jean-Paul Sartre – a soldados no fronte. Em seus anos como revolucionário, ele encontrava pessoas como Simone de Beauvoir, Cheikh Anta Diop, Patrice Lumumba, Es’kia Mphahlele, Kwame Nkrumah e Jean-Paul Sartre.

Em dezembro de 1957, Abane Ramdane, camarada mais próximo de Fanon no movimento de libertação nacional da Argélia, foi assassinado por uma facção de direita dentro do movimento que pretendia subordinar o trabalho político à autoridade militar. O nome de Fanon foi colocado em uma lista de pessoas a serem observadas e sujeitas a um destino semelhante, caso houvesse disputa aberta dentro do movimento em resposta ao assassinato. A partir daí, Fanon viveu sabendo que havia um potencial de risco significativo dos nacionalistas autoritários no movimento e uma luta vital dentro da luta.

O segundo livro de Fanon, L’An V de la Révolution Algérienne [O ano V da revolução argelina, tradução livre], foi publicado em 1959 e traduzido para o inglês em 1965, ficando conhecido como A dying colonialism [Um colonialismo moribundo, tradução livre] desde 1967. O livro é, explica Fanon, um relato de como a participação na luta “para impor a razão à (…) irracionalidade [colonial]”, para se opor à “indignidade, mantida viva e nutrida todas as manhãs”, resulta no que ele chama de “mutações essenciais na consciência dos colonizados”.

É, como Cherki observa, muito deliberadamente um livro sobre “homens e mulheres comuns” – mulheres e homens em uma sociedade em movimento, em vez de personalidades e ações de elites revolucionárias. Em contraste com as formas elitistas de anticolonialismo que visam direcionar “as massas” de cima, o imperativo de reconhecer a “porta aberta de toda consciência” é estendido às pessoas comuns.

Fanon deixa clara sua posição desde o início: “O poder da revolução argelina (…) reside na mutação radical pela qual o argelino sofreu”. No contexto da luta revolucionária, a mutação escapou do domínio da ideologia racista – que só pode entender o progresso como movimento do negro para o branco – e agora é um processo autônomo e autodirigido.

O livro oferece cinco estudos de caso do tipo de “mutação radical” – ou mudança de consciência – que pode ocorrer no turbilhão da luta, do movimento coletivo. Em cada caso, Fanon oferece um relato de como o maniqueísmo introduzido pelo colonialismo se desintegra na luta. O livro examina como as tecnologias introduzidas por meio do colonialismo e inicialmente identificadas como intrinsecamente coloniais – ou seja, o rádio e a medicina biomédica – são abordadas na luta, como as relações de gênero mudam na luta e, no capítulo final, como algumas minorias europeias optam por oferecer apoio à revolução anticolonial.

 

Frantz Fanon and his medical team at the Blida-Joinville Psychiatric Hospital

Frantz Fanon e sua equipe médica no Hospital Psiquiátrico Blida-Joinville, na Argélia, onde trabalhou de 1953 a 1956.
Arquivos Frantz Fanon/IMEC

 

Talvez não seja surpreendente, dado o contexto de tudo ou nada da guerra na Argélia, que os estudos de caso de Fanon sobre o desenvolvimento de solidariedades políticas radicais entre classe, gênero e raça teçam um movimento unidirecional de iluminação progressista. Assim, o médico – antes visto como um agente do colonialismo – e que agora dorme “no chão com homens e mulheres dos mechtas, vivendo o drama do povo” – torna-se então “nosso médico”.

As normas de gênero também são mostradas para mudar na luta. Fanon descreve a mulher argelina, “que assumiu um lugar cada vez mais importante na ação revolucionária”, “rompendo os limites do mundo estreito em que viveu (…) [e] participando ao mesmo tempo da destruição do colonialismo e do nascimento de uma nova mulher”. Esse aspecto do trabalho de Fanon e seu envolvimento mais amplo com o gênero é muito bem analisado por Sharpley-Whiting, que conclui, em uma rigorosa análise feminista, que é evidente que “Fanon reconheceu o direito da mulher argelina de existir como uma pessoa autônoma e um ser social completo”.

Qualquer pessoa que tenha participado de uma luta popular regular reconhecerá imediatamente o valor e a validade do relato de Fanon sobre as “mutações radicais” que podem mudar de maneira dramática e frequentemente rápida as capacidades e o pensamento das pessoas. No entanto, em Um colonialismo moribundo, não há sentido de luta dentro da luta, nem há sentido de que o progresso dialético possa ser revertido, o que muitas vezes ocorre quando as lutas desaparecem.

 

Um vermelho muito duro

Em junho de 1959, Fanon sofreu ferimentos graves quando um jipe em que viajava foi atingido pela explosão de uma mina perto da fronteira entre Tunísia e Argélia. Ele foi enviado a Roma para tratamento médico, onde escapou por pouco de ser assassinado, provavelmente nas mãos de uma violenta organização de colonos ligada ao Estado francês.

Em março de 1960, Fanon foi enviado a Accra para se tornar um embaixador itinerante do Governo Provisório do movimento de libertação nacional da Argélia, a Frente de Libertação Nacional (FLN). Seus encontros com Estados recém-independentes eram frequentemente desanimadores. Em novembro de 1960, ele fazia parte de uma equipe encarregada de uma missão de reconhecimento destinada a abrir uma frente no sul, na fronteira com o Mali, com linhas de suprimentos que partiam de Bamako através do Saara. No último minuto, suspeitando de uma armadilha, abandonaram o plano de viajar de avião e dirigiram os dois mil quilômetros de Monróvia a Bamako. O avião no qual eles estavam programados para viajar foi desviado para Abidjan, onde foi revistado pelos militares franceses.

Em seu diário de bordo, Fanon registrou sua preocupação com os limites das formas políticas que fracassaram em ir além do maniqueísmo introduzido pelo colonialismo e desenvolver ideias e práticas emancipatórias: “o colonialismo e seus derivados não constituem, de fato, os atuais inimigos da África. Em pouco tempo, este continente será libertado. Da minha parte, quanto mais fundo eu entro nas culturas e nos círculos políticos, mais seguro estou que o grande perigo que ameaça a África é a ausência de ideologia”.

Movido pelas amplas vistas do deserto, e voltando ao poeticismo de seus primeiros trabalhos, Fanon escreveu que: “há alguns dias vimos um pôr do sol que transformou o manto do céu em violeta brilhante. Hoje o olho encontra um vermelho muito duro”. Embora a viagem pelo deserto o tenha deixado visivelmente exausto, ele foi imediatamente a Accra para escrever uma contribuição para uma publicação em inglês pelo governo provisório da Argélia. Um exame realizado por um médico em Accra levantou a possibilidade de leucemia. Ele voltou a Túnis, fez um exame de sangue e confirmou o diagnóstico. Naquela noite, anunciou sua decisão de escrever um novo livro. Depois de receber tratamento em uma clínica nos arredores de Moscou, teve uma breve janela de oportunidade para escrever enquanto o câncer entrava em remissão.

 

 

After Frantz Fanon died in 1961, his body was carried across the border from Tunisia to be buried in Algeria.

Após a morte de Frantz Fanon em 1961, seu corpo foi carregado através da fronteira da Tunísia para ser enterrado na Argélia. 
Arquivos Frantz Fanon/IMEC

 


O cansativo caminho do conhecimento racional

Partes do último trabalho de Fanon, Os condenados da terra, foram ditadas por ele em um colchão no chão de um apartamento em Túnis enquanto ele morria. O livro traz uma crítica abrasadora do colonialismo e dos colonos, um relato crítico da luta contra o colonialismo, um relato igualmente arrebatador do pântano pós-colonial e uma visão radicalmente democrática da práxis emancipatória. Termina com um relato angustiante dos danos causados pela violência da guerra colonial.

 

A crítica da cidade colonial nas páginas iniciais do livro é particularmente poderosa e continua a ressoar no presente. A ideologia maniqueísta que Fanon criticou na França assumiu uma forma material concreta na colônia, da qual o apartheid foi um caso paradigmático. O mundo colonial é dividido em diferentes zonas, destinadas a diferentes tipos de pessoas. É um mundo “de emaranhados de arame farpado”, “um mundo dividido em compartimentos”, “um mundo dividido em dois”, “um mundo estreito repleto de violência”. Na visão de Fanon, a descolonização autêntica requer um fim decisivo para uma situação em que “este mundo se divide em compartimentos, este mundo cindido em dois é habitado por espécies diferentes”.

A descrição da luta anticolonial continua a explorar a mutação coletiva desenvolvida em Um colonialismo moribundo. Na narrativa de Fanon, a resposta inicial à opressão colonial é fundamentalmente moldada por aquilo ao qual se opõe: “o maniqueísmo do colonizador produz um maniqueísmo dos colonizados”. Fanon é claro sobre os custos desse contra-maniqueísmo: “à mentira da situação colonial, o colonizado responde com uma mentira igual”. Dentro da luta, diz ele, há uma inicial “brutalidade de pensamento e desconfiança da sutileza”.

Mas, como há movimento ao longo do que Fanon chama de “o cansativo caminho do conhecimento racional”, os paradigmas coloniais são mais transcendidos do que meramente invertidos. As pessoas começam a “passar do nacionalismo total e indiscriminado para a consciência social e econômica”. Fanon é explícito ao assinalar que esse processo exige que “as pessoas também descartem a concepção muito simples de seus senhores”, pois “o padrão de julgamento racial e racista é transcendido”.

Sekyi-Otu, ao afirmar ser crucial permitir leituras sérias do trabalho, mostra que um conjunto de declarações enfáticas oferecidas como definitivas no início do livro são posteriormente desafiadas à medida que a narrativa de Fanon se desenrola. Para usar apenas um exemplo, no início é afirmado que: “Autêntico é tudo aquilo que precipita o desmoronamento do regime colonial, que favorece a emergência da nação. Autêntico é o que protege os indígenas e arruína os estrangeiros”. Mais tarde, Fanon explica que – à medida que fica claro que “a exploração pode apresentar uma aparência negra ou árabe” – as certezas iniciais encontram limites óbvios.

Fanon escreve que, à medida que as certezas maniqueístas que marcam o primeiro momento de luta começam a desmoronar, “a clareza idílica e irreal do princípio é seguida por uma penumbra que desarticula a consciência”. Com o tempo, à medida que a luta se desenvolve, “a consciência se desobstrui laboriosamente diante de verdades parciais, limitadas e instáveis”. As coisas são repensadas à luz da experiência da luta, do movimento coletivo, contra o colonialismo. Sekyi-Otu argumenta que o objetivo fundamental do relato de Fanon sobre esse afastamento da lógica maniqueísta do colonialismo é “encenar o surgimento de modos mais ricos de raciocínio, julgamento e ação” do que aqueles imediatamente acessíveis dentro dos limites do pensamento colonial.

 

 

30 October 1974: The anniversary of the 1962 Algerian War for Independence.

30 de outubro de 1974: o aniversário da Guerra de Independência da Argélia, em 1962.
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Fanon testemunhou os primeiros anos do Termidor africano, o momento em que, como ele explica, a “lava libertadora” das grandes lutas anticoloniais foi esfriada quando o povo foi expulso da história, “enviado de volta às suas cavernas” pelos líderes que, “em vez de acolher a expressão do descontentamento popular” e o “fluxo livre de ideias”, assumiu a tarefa de proclamar que “a vocação de seu povo é seguir, seguir uma vez mais e sempre”. Em seu último livro, ele tinha claro que manter os princípios significava empreender uma luta dentro da luta, além de enfrentar o inimigo colonial. Ele adverte que “para evitar esses múltiplos obstáculos é necessário bater-se com tenacidade para que o partido jamais se torne um instrumento dócil nas mãos de um líder”. Fanon argumenta que, para estabelecer a rebelião sobre uma base racional, é necessário resistir àqueles dentro do movimento “que algumas vezes tendem a pensar que as nuances constituem perigo” e líderes que insistem que esse é “o único dogma que vale a pena (…), a unidade da nação contra o colonialismo”.

Sua crítica à burguesia nacional, “à burguesia voraz”, seu uso do Estado como instrumento para atacar a sociedade e seu uso indevido da história da luta coletiva para reforçar sua própria autoridade são inigualáveis. Fanon deixa claro que existem formas de militância nacionalista que possuem “os mesmos julgamentos desfavoráveis” sobre os mais oprimidos entre os colonizados que são mantidos pelos colonizadores. Ele insiste que a consciência nacional – “aquela canção magnífica que fez o povo se levantar contra seus opressores” – deve ser complementada com consciência política e social.

Fanon emite um aviso claro sobre partidos que objetivam “erigir uma estrutura em torno das pessoas que segue um cronograma a priori” e os intelectuais que decidem “seguir os caminhos comuns da vida real” com fórmulas “estéreis ao extremo”. Para Fanon, a vocação do intelectual militante é estar na “zona de instabilidade oculta onde as pessoas habitam”, no “caldeirão fervilhante do qual emergirá o aprendizado do futuro” e, lá, “colaborar no plano físico”. Ele deixa claro que o intelectual treinado na universidade deve evitar tanto a incapacidade de “manter uma discussão bilateral”, de se envolver em um diálogo genuíno, quanto o seu anverso, tornando-se “uma espécie de homem sim que concorda com cada palavra que vem das pessoas”. Contra isso, ele recomenda “a inclusão do intelectual na onda ascendente das massas”, com o objetivo de alcançar, como observado acima, “uma corrente mútua de iluminação e enriquecimento”.

Fanon afirma a prática da mutualidade enraizada em um compromisso imediato com a igualdade radical, algo como a visão juvenil de Marx de “uma associação de seres humanos livres que se educam”. Seu compromisso consistente com o reconhecimento da “porta aberta de toda consciência” o leva a uma compreensão radicalmente democrática da luta enraizada em práticas locais nas quais a dignidade é afirmada, a discussão é realizada e as decisões são tomadas. Para Fanon, a principal tarefa da educação política é mostrar que “não há homem ilustre e responsável por tudo, que o demiurgo é o próprio povo e as mãos mágicas são em última análise as mãos do povo”. Ele afirma a importância da “livre circulação de um pensamento elaborado a partir das necessidades reais das massas”. Existem ressonâncias claras com a famosa afirmação de C. L. R. James de que, em uma frase emprestada de Vladimir Lenin, “todo cozinheiro pode governar”. Fanon, comprometido até o fim com a emancipação da razão, com sua emancipação na e pela luta, encerrou seu último livro com o imperativo de “elaborar novos conceitos”.

Para ser digno de seu nome, o pensamento comunista deve ser uma expressão do intelecto em movimento, do intelecto fundamentado no movimento real e, portanto, em permanente diálogo com outros em luta. Deve levar o desejo militante de – no resumo conciso de Étienne Balibar de um impulso central da Ética de Benedict Spinoza – “tanto quanto possível, pensar o máximo possível”. Esta é a forma de militância a partir da qual Fanon nos fala hoje, com um poder tão convincente, com o brilho do metal.

 

 

A strike organised by Dano textile workers in Hammarsdale, South Africa, 1982.

Greve organizada por trabalhadoras têxteis da fábrica Dano, em Hammarsdale, África do Sul, em 1982.
Wits Historical Papers


Para saber mais (leituras em inglês)

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Knowledge for the 21st Century 1.1 (Fall 1994): 42-73.