Estudos Feministas #1 – Mulheres de luta, Mulheres em Luta

A women's march in Argentina as part of the Ni Una Menos

Marcha das Mulheres na Argentina como parte do movimento Ni Una Menos (‘Nem uma a menos’) que se mobilizou em torno de temas como violência de gênero, aborto e direitos reprodutivos, feminicídio e diferença salarial de gênero, 2018. Bárbara Leiva

 

A experiência de todos os movimentos de libertação atesta que o êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres, já pronunciava Lênin em 1918. Pouco mais de um século depois, resgataremos essa afirmativa para contar a história de mulheres que construíram esses movimentos e outras que seguem construindo a resistência ao neoliberalismo e ao mais recente populismo reacionário.

O longo século XX demarcou lutas de libertação nacional pela Ásia e pela África, ao mesmo tempo que vivia o crescimento e as contradições das economias capitalistas nos países da América Latina e suas disputas de projeto de nação. A inspiração despertada pela Revolução Russa de outubro de 1917 chegou cedo nos continentes ainda agrários e coloniais do sul global, mas mesmo assim, teve grande influência: a esperança de que a maioria trabalhadora poderia vencer a minoria exploradora motivava as lutas populares e fomentava a organização política ao redor do mundo.

Nesta primeira publicação sobre Mulheres em Luta do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social traremos uma análise introdutória da conjuntura de lutas das mulheres nos três continentes – Ásia, África e América – em tempos de resistência contra o avanço agressivo de um neoliberalismo conservador, cujas mulheres se tornam os primeiros e principais alvos da precarização, opressão e exploração do trabalho e da vida.

Nos próximos lançamentos mensais ao longo deste ano contaremos trajetórias de mulheres de luta que historicamente contribuíram não apenas com o fortalecimento da participação das mulheres na política, mas principalmente com o pioneirismo das organizações próprias de mulheres, abrindo caminhos de luta e resistência feministas ao longo do século XX.

Conhecer a teoria e os diversos métodos organizativos desse legado, além de tarefa histórica-militante, nos inspira a entender nossos movimentos organizativos necessários para enfrentar a opressão dos dias atuais.

 

 

Mulheres e desigualdades

Temos visto crescer uma enorme revolta social e política no mundo, principalmente no sul global, em que trabalhadoras e trabalhadores enfrentam golpes esmagadores da política neoliberal e buscam resistir aos impactos da desarticulação política, da precariedade econômica e do esgotamento do modelo da reprodução social.

Essa revolta está compreendida na recente crise estrutural do capitalismo contemporâneo, quando todas as suas contradições alcançaram o ponto de ebulição. Contradições ecológicas, políticas e de reprodução social emergem como sustentáculos de uma economia oficial que necessita de relações aparentemente não econômicas e práticas de caráter social, político e cultural para manter-se dominante.

As autoras Arruzza, Bhattacharya e Fraser explicam que “por trás das instituições oficiais do capitalismo – trabalho assalariado, produção, troca e sistema financeiro –  estão os suportes que lhes são necessários e as condições que as possibilitam: famílias, comunidades, natureza; Estados territoriais, organizações políticas e sociedade civis; e, em especial, enormes quantidades e múltiplas formas de trabalho não assalariado e expropriado, incluindo muito do trabalho de reprodução social, ainda executado predominantemente por mulheres e muitas vezes sem compensação” (2019, p.102).

Tendo como ponto de partida os próprios desafios – e colapsos – de uma nova economia financeirizada (veja mais detalhes aqui), essas contradições aparecem como consequências de problemas que não parecem ter fácil resolução. O aumento da desigualdade, por exemplo, é uma realidade global e tem crescido sem precedentes. Como mostra o último relatório da Oxfam (2019), além da manutenção do abismo entre os rendimentos de homens e mulheres, a concentração de renda atingiu níveis recordes: a fortuna do 1% mais rico do mundo corresponde a mais do que o dobro da riqueza acumulada por 6,9 bilhões de pessoas, ou seja, 92% da população mundial. E mais, os 22 homens mais ricos do mundo têm uma riqueza superior à de todas as mulheres da África (mais de 650 milhões de mulheres).

Todavia, a exploração e opressão não aparecem apenas na esfera econômica, mas mantêm-se a partir de valores sociais, culturais e morais que sustentam uma lógica conservadora do papel da mulher na sociedade de classes. Isso configura parte do que chamamos de Patriarcado, compreendido como estruturante do conjunto das relações da sociedade. A organização, divisão e hierarquização do trabalho, assim como elementos sociais, políticos e culturais nos espaços de família, do Estado, da sociedade civil e da própria reprodução social, ajudam a manter esse status e estão imbricadas às demais questões de classe e de raça da sociedade.

A forma como a economia capitalista se organizou e estruturou o trabalho de homens e mulheres na sociedade deve ser compreendido a partir do que denominamos divisão sexual do trabalho. Essa estrutura de trabalho considera não apenas uma divisão de tarefas entre homens e mulheres, mas hierarquiza essa divisão e atribui ao trabalho destinado aos homens maior valor que os trabalhos desenvolvidos pelas mulheres. Nesse ínterim, promove a separação entre produção e reprodução – considera “trabalho” apenas a esfera da produção, destinando esse espaço majoritariamente aos homens, e deixa a cargo das mulheres o espaço da reprodução, do cuidado, da família, das tarefas domésticas, que passa a ser o “não-trabalho” ou trabalho pouco reconhecido, (em sua maioria) não remunerado e/ou desvalorizado socialmente.

Conforme dados da Oxfam, os trabalhos mal remunerados são ocupados majoritariamente pelas mulheres. Elas respondem por mais de 75% de todo trabalho de cuidado não remunerado do mundo. Mulheres e meninas dedicam cerca de 12,5 bilhões de horas, todos os dias, a trabalhos não remunerados, seja como cuidadoras de idosos ou cuidando da casa (OXFAM, 2019). Como resultado, 42% das mulheres do mundo em idade ativa estão fora do mercado (entre os homens a fatia é de 6%), muitas delas em decorrência da sobrecarga do trabalho doméstico.

Esse grande abismo baseia-se em um sistema econômico sexista e falho, que coloca as mulheres no centro do debate da atual crise do capitalismo: são as primeiras a sentir os efeitos dessa crise, com a precarização dos seus trabalhos, o aumento da informalidade e salários mais baixos. O colapso de sistemas cruciais de apoio social promovido pelo mais recente avanço neoliberal, como o sistema previdenciário, a educação de crianças (creches) e o cuidado dos idosos, também impõe um ônus adicional à “economia do cuidado” amplamente mantida pelas mulheres. Soma-se a isso a naturalização da violência contra as mulheres, em um mundo que permite que mais de 90 mil mulheres por ano sejam vítimas de “feminicídio”, sendo que em sua maioria é conhecido o endereço da agressão e dos agressores: seus próprios lares, mulheres em situação de violência doméstica.

 

Resistência e luta

Esse cenário de brutalização da opressão das mulheres atrai muitas delas para as primeiras fileiras dessa crescente revolta social no globo. Se por um lado estão no centro da exploração econômica promovida pela crise do capitalismo, também – e por isso – passam a assumir protagonismo em diversas lutas sociais que emergiram no último período na Ásia, África e América Latina em forma de protesto, resistência e organicidade para superar suas condições concretas.

Em um cenário político fraturado e heterogêneo, assim incentivado pelo avanço do neoliberalismo sobre os países do sul global, não é tão fácil construir a resistência unificada. Torna-se especialmente importante recuperar as ações históricas de movimentos emancipatórios, bem como ressaltar as atuais mobilizações de resistência de caráter popular para contrapô-las às atuais opções políticas neoliberais e populistas reacionárias, que se apresentam como única alternativa/soluções e invisibilizam as demais manifestações políticas.

Nesta primeira publicação, nos interessa particularmente apontar os processos de resistência de caráter popular, feminista e progressista dos países dos três continentes do sul global, para identificar quais as características das lutas travadas no nosso tempo, inspiradas no legado deixado pelas mulheres em luta ao longo do século XX.

 

 


Across Brazil, hundreds of millions of women, militants, and social movements say #EleNão

Em todo o Brasil centenas de milhares de mulheres, militantes, movimentos sociais dizem #EleNão ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro, em maior marcha de mulheres da história do país, 29 de Setembro de 2018.
Sâmia Bomfim / Wikimedia

 

Mulheres em luta na América Latina em tempos de conservadorismo

A guinada à direita dos governos latino-americanos se deu a partir dos últimos processos eleitorais e golpes institucionais, e significou o aceleramento da implementação dos projetos neoliberais da região. Historicamente, países em toda a América Latina, mas especialmente Argentina, Bolívia, Brasil, Equador e Venezuela, sofreram pressões externas nas décadas de 1980 e 1990 do Fundo Monetário Internacional (FMI) para fazer grandes cortes nos gastos públicos em setores da educação, da saúde e da assistência social, além de incentivos à privatização de diversos serviços públicos a partir do avanço das economias liberais de mercado. A retomada mais recente desses cortes por parte dos novos governos conservadores escancara de imediato os efeitos da exploração e precarização que recaem sobre a vida e trabalho das mulheres.

Ao mesmo tempo, houve também uma reação conservadora na região: organizações religiosas e de direita organizaram mobilizações, ataques concertados às políticas públicas em favor dos direitos das mulheres e das pessoas LGBT+ (como a eliminação de qualquer menção à palavra gênero nos currículos do ensino médio ou a limitação das possibilidades de acesso à interrupção da gravidez), e uma campanha permanente nas redes sociais e nos meios hegemônicos contra o que chamaram de “ideologia de gênero”. Embora esses movimentos tenham sido mais fortes na América Central e no Peru, eles estão presentes em todos os países da América Latina e estão começando a ameaçar os ganhos duramente conquistados de várias décadas.

Essa experiência dos cortes na economia do cuidado, a difusão de campanhas ideológicas contrárias aos direitos das mulheres, dentre outros fatores, incentivou a radicalização das mulheres nas organizações de lutas sociais em diversas partes do mundo. Emerge, assim, nos últimos anos, um feminismo reativo às experiências das políticas (patriarcais) de ajuste estrutural. Mais mulheres passam a se organizar, a participar de manifestações e a exigir um novo modelo que assegure uma visão feminista e se tornam mais ativas na luta por um mundo diferente.

Podemos dizer que a tendência do capitalismo e dessa onda neoliberal de aprofundar as consequências da divisão sexual do trabalho, da violência de gênero e da opressão e exploração desenfreada sobre a vida das mulheres, acelerou o trânsito de movimentos de mulheres trabalhadoras, indígenas, negras e sem-terra diretamente para projetos anti-neoliberais ou até socialistas – como na Venezuela.

Além disso, o crescente controle sobre o corpo feminino, por meio da ampliação do cerceamento estatal sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres, como teoriza Silvia Federici (2019), desencadeou protestos e organização de mulheres pelo mundo, como tem sido o caso dos pañuelos verdes na Argentina, que lutam pela descriminalização do aborto, por exemplo.

Na Bolívia, as mulheres estão no centro dos protestos contra o golpe e pela restauração do governo, e sabem que sua luta se coloca em caráter socialista contra a indignidade imposta aos povos indígenas e a toda população camponesa de trabalhadoras e trabalhadores.

No Brasil, mobilizações organizadas pelas mulheres ocorreram ao longo do período de campanha eleitoral após o golpe contra o governo do Partido dos Trabalhadores. A famosa marcha do “Ele Não”, em setembro de 2018, foi a maior manifestação de mulheres da história do Brasil, aglutinou milhares de mulheres e militantes pelas ruas de mais de 114 cidades do país, com uma campanha contra o ainda candidato ultraconservador à presidência Jair Bolsonaro.

Em 2019, sob a liderança de Bolsonaro, a repressão, o autoritarismo, o moralismo e os índices de violência contra as mulheres aumentaram no Brasil. No primeiro semestre do novo governo, os casos de feminicídio aumentaram em 44% na maior cidade do país (São Paulo), comparado com o ano anterior. Em um país em que a cada 4 segundos uma mulher é agredida, o investimento em políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres caiu de 119 milhões de reais em 2015 – ainda sob o governo do Partido dos Trabalhadores – para 5,3 milhões em 2019. Os programas de atendimento a mulheres em situação de violência do Ministério da Mulher tiveram, no mesmo período, um recuo orçamentário de 34,7 milhões de reais para apenas 194,7 mil reais. O investimento em creches e pré-escolas também teve drástica diminuição, o menor da última década: o repasse para a construção de novas unidades caiu de mais de 506 milhões de reais no primeiro semestre de 2014 para apenas 10,2 milhões de reais no mesmo período em 2019. Este novo cenário, de maior descaso e de cortes no que atinge diretamente a vida e as condições de trabalho das mulheres, vem acompanhado de um processo de ampliação do conservadorismo e autoritarismo político, social e cultural, e exigirá um novo patamar de resistência e organização das mulheres no país.

No Chile, a luta feminista acumulou forças nos últimos anos, refletida nas ruas do último dia 8 de março – dia internacional de luta das mulheres – de 2019. Até recentemente havia sido a maior manifestação das últimas décadas, superada apenas pelas recentes manifestações da revolta popular no país. Juntamente com a massividade alcançada, o movimento de mulheres consolidou sua organização a partir da formação da Coordenação Feminista da 8M, que junto com outras organizações, realizou em janeiro de 2020 a segunda Reunião Plurinacional das mulheres que lutam, quando mais de 3 mil mulheres e LGBT+ se reuniram para discutir o programa e o plano de luta contra o atual cenário.

Durante a revolta que começou em 18 de outubro de 2019 e continua em marcha, as mulheres chilenas saíram às ruas para lutar por uma transformação estrutural do país, enfrentando a repressão brutal da polícia e dos militares, que haviam defendido cegamente os interesses do capital e seus representantes políticos. Durante esse período, a violência sexual policial fez parte das violações sistemáticas dos direitos humanos que foram denunciadas por várias organizações internacionais. Diante da impunidade que o governo sanguinário de Sebastián Piñera pretende instalar, o movimento feminista recorreu a todos os meios para resistir e tornar visível essa violência, alcançando um eco internacional com a atuação do coletivo Las Tesis (link vídeo), replicado em várias partes do mundo.

Mas a violência não impediu o inevitável avanço do feminismo, que continua a trabalhar em solidariedade com outros movimentos sociais que dizem NÃO + à precariedade da vida imposta na ditadura chilena e mantida até hoje. Nesse sentido, uma das principais lutas travadas no Chile tem sido a defesa de um processo constitucional que permita avançar efetivamente na superação do neoliberalismo e que garanta certas condições mínimas para uma participação efetiva do povo mobilizado. Parte dessa luta é a busca pela paridade de gênero no futuro corpo constituinte.

Na Venezuela, conforme apontou o Diretor do Instituto Tricontinental, Vijay Prashad, (veja matéria completa em espanhol) a maioria das pessoas que sai para defender a Revolução Bolivariana são mulheres. Como parte do processo revolucionário na Venezuela, as mulheres têm sido essenciais na reconstrução de estruturas sociais erodidas por décadas de austeridade capitalista. Seu trabalho tem sido fundamental para o desenvolvimento do poder popular e para a criação da democracia participativa. 64% dos porta-vozes das 3.186 comunas estão nas mãos de mulheres, assim como a maioria das líderes dos 48.160 conselhos comunais e 65% da liderança dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção. As mulheres não exigem apenas igualdade no local de trabalho, mas também na esfera social, onde as comunas são os átomos do socialismo bolivariano. As mulheres na esfera social têm se esforçado para construir a possibilidade de autogoverno, construindo um poder duplo e, portanto, lentamente corroendo a forma liberal do Estado.

Os atuais processos de luta e resistência na América Latina devem levar em conta a profunda conscientização da importância de colocar as mulheres na sua centralidade e de compreender esses elementos destacados por essas lutas como centrais no debate de construção de um novo mundo.

 

 


The Women's Wall in Kerala was a mobilisation of 5.5 million women

O muro das mulheres em Kerala, Índia, foi uma mobilização de 5,5 milhões de mulheres em defesa da igualdade de gênero, contra a discriminação de gênero e ataques de direita. O muro percorreu 620 quilômetros de norte a sul do estado, 1 de janeiro de 2019.
Vyshakh T. Vyshakh T.

 

A situação das mulheres sob o regime de Modi

Desde a eleição do primeiro-ministro Narendra Modi, em 2014, o Partido Bharatiya Janata (BJP) e sua família de organizações Hindutva aumentaram agudamente a difusão de um discurso generalizado de ódio contra minorias e forças progressistas. Por meio dessa campanha de ódio, as forças de direita tentaram romper o tecido da sociedade indiana e remodelá-lo para se adequar à sua ideologia sectária. Não só existe uma ameaça de violência pairando sobre quem se opõe a esse projeto, mas há também um clima de violência generalizada que se estabeleceu na sociedade. Para piorar, os grupos de direita e multidões de linchadores gozam de impunidade. As mulheres são as mais afetadas nessa atmosfera de violência no país.

Desde 2014, houve um aumento visível da violência contra as mulheres em toda a Índia, particularmente a violência sexual, incutindo medo e cultivando ódio às mulheres em todo o país. Este ano, isso talvez tenha ficado mais visível no estado de Uttar Pradesh (UP). UP é o epicentro da política comunal (ideologia que promove identidades grupais religiosas ou étnicas violentas e incita a luta entre elas) do BJP, cujo pressuposto é dividir a sociedade de acordo com as religiões, castas etc. É o estado em que o ministro-chefe Yogi Aditya Nath, um “homem de Deus” que se tornou líder do BJP, está empenhado em estabelecer sua própria versão do Hindu Rajya (Estado Hindu), usando a máquina estatal para intimidar os muçulmanos e retirar seus direitos de cidadania.

Desde que Aditya Nath assumiu o cargo de ministro-chefe em Uttar Pradesh, os crimes contra as mulheres aumentaram 33%, segundo o próprio governo estadual. A terrível agonia de uma jovem que foi abusada sexualmente por um membro do BJP da assembleia legislativa (MLA) reflete as brutalidades infligidas às mulheres, sob o domínio desse partido. Quando a jovem se atreveu a denunciar o parlamentar à polícia, seu pai foi torturado e morto pela própria corporação. No entanto, ela persistiu com sua luta, e um caminhão bateu em um carro em que estava viajando com membros da família e seu advogado; dois de seus familiares foram mortos no incidente. Ela e seu advogado ficaram gravemente feridos.

Quando as mulheres afirmam seus direitos, as forças Hindutva se opõem com veemência e violência. Depois de anos de ativistas exigindo a entrada no famoso templo Sabarimala, em Kerala, em 2019 a Suprema Corte da Índia decidiu que as mulheres têm o direito de frequentar o local. Os líderes nacionais do BJP e os ministros centrais criticaram os direitos das mulheres menstruadas de entrar no templo sagrado, o que, a seu ver, polui o ambiente. No entanto, quando o governo da Frente Democrática de Esquerda obedeceu esse direito, o BJP e outras organizações de direita mobilizaram multidões para atacar violentamente as mulheres que visitavam o templo.

No centro da ideologia do BJP está o patriarcado Hindutva, que subordina as mulheres e defende o sistema de castas. Uma mulher, de acordo com essa ideologia, é retratada como uma mãe, Bharat Mata (Mãe Índia), que simboliza a honra nacional. O mito de que a Bharat Mata está sob ameaça de seus inimigos internos, ou seja, muçulmanos, é usado para polarizar a sociedade ao redor de identidades religiosas e mobilização política. A inclusão de mulheres sob o BJP não é resultado do enfrentamento de regras ou estruturas patriarcais, mas nos termos da ideologia Hindutva e dentro da estrutura do Hindu Rashtra. A organização-mãe do BJP, Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), coloca as mulheres no papel de portadoras da castidade e como símbolos de honra na comunidade. O RSS promoveu uma onda de religiosidade por meio de templos e grupos de bhajans (“canções devocionais”) entre as mulheres – com ênfase em superstições e rituais. Por meio desses grupos, a direita do Hindutva está mobilizando a força de trabalho e acelerou a mobilização de mulheres da extrema direita contra seus próprios interesses. Ao longo de várias décadas, houve uma queda drástica na participação de mulheres na força de trabalho em idade ativa, que atualmente está na casa dos 23%, de acordo com os dados da Pesquisa Periódica da Força de Trabalho (PLFS, sigla em inglês), de julho de 2017 a julho 2018.

Há um argumento falso dado por muitos direitistas de que as mulheres ficam em casa em vez de buscar emprego apenas porque os homens ganham mais. Mas também há outros fatores em jogo, como a queda no emprego agrícola, em grande parte devido à mecanização (entre outras razões), que foi a principal fonte de emprego para as mulheres do campo. Enquanto os homens tentam encontrar trabalho nas áreas urbanas por meio da migração sazonal e de longo prazo, esse processo tem sido mais difícil para as mulheres, para as quais as responsabilidades de cuidar das crianças são infinitamente mais exigentes quando são forçadas a se afastar de suas comunidades. O fato de que as mulheres são as principais cuidadoras de suas famílias, por sua vez, torna difícil encontrar um emprego adequado para elas. Longe de suas comunidades, é difícil que elas encontrarem locais de trabalho seguros. No caso de mulheres cujas famílias migraram com elas, ou que já moravam em áreas urbanas, o trajeto caro e demorado – que é uma realidade para a classe trabalhadora urbana – apresenta um desafio adicional, já que muitas vezes é a única responsável por cuidar das crianças, cozinhar, limpar e realizar outras tarefas domésticas.

O governo do BJP não fez nada para melhorar as condições de trabalho das mulheres em termos de políticas, como equiparação salarial, implementação de creches no local de trabalho ou garantia de locais de trabalho seguros e sem assédio. Em vez disso, seus esforços foram voltados para recuos e diminuição das liberdades que as mulheres conquistaram ao longo de décadas de luta, transformando-as mais uma vez em defensores da honra e identidade religiosa.

No entanto, os ataques severos e contínuos contra as mulheres e seus direitos foram enfrentados com uma onda massiva de resistência em todo o país. Elas lideram o movimento contra a Lei de Emenda à Cidadania, o Registro Nacional de Cidadãos e o Registro Nacional de População, que violam fundamentalmente as disposições da Constituição Indiana. Em várias cidades, municípios, distritos e aldeias, as mulheres estão na vanguarda do movimento contra o ataque liderado pelo BJP ao direito à cidadania.

 

 


Domestic workers gather at Church Square in Pretoria, South Africa

Trabalhadoras domésticas se reúnem na Praça da Igreja, em Pretória, África do Sul, para iniciar uma marcha ao Palácio do Governo em protesto contra as injustas práticas de trabalho e baixos salários, junho de 2019.
Ihsaan Haffejee / New Frame CIhsaan Haffejee / New Frame

 

Resistência e luta na África do Sul desde o Apartheid

Na África do Sul, as mulheres desempenham historicamente um papel central nos processos de lutas – principalmente na luta contra o Apartheid. A Federação das Mulheres da África do Sul foi lançada em Joanesburgo em 17 de abril de 1954. Ela adotou uma Carta das Mulheres que colocava a emancipação das mulheres no centro da luta por um futuro justo. Alguns anos depois, Dorothy Nyembe e Florence Mkhize emergiram como líderes na resistência insurrecional no assentamento da cabana Cato Manor, em Durban, em 1959. Após as greves de Durban em 1973 e o renascimento do movimento sindical negro, mulheres como Jabu Ndlovu e Emma Mashinini tornaram-se protagonistas importantes no movimento sindical. Elas continuaram a desempenhar um papel vital nas lutas comunitárias que surgiram na década de 1980, muitas vezes sob a bandeira da Frente Democrática Unida.

Uma vertente influente do feminismo acadêmico branco tendia a argumentar que a participação das mulheres vinculadas às lutas mais amplas pela libertação nacional não deveriam ser considerada totalmente feministas. Nomboniso Gasa, uma corajosa ativista anti-apartheid e grande intelectual feminista, ofereceu um argumento poderoso contra essa visão em 2007, perguntando: “Por que o Muro de Berlim entre a escuridão e a libertação, por um lado, e o feminismo, por outro?” Este debate já foi resolvido em relação à História. As mulheres que participaram de lutas que vinculavam questões de raça, gênero e classe não são mais excluídas da contagem de quem é realmente feminista.

Mas depois do apartheid, como parte do processo geral pelo qual a “sociedade civil” formada por ONGs veio substituir as organizações populares, o feminismo frequentemente se tornou uma profissão, principalmente em ONGs e na academia. O feminismo popular raramente era reconhecido como feminismo – mesmo quando assumia formas insurgentes. O foco desse tipo de feminismo profissional estava frequentemente na mudança de leis e políticas e na obtenção de representação nas estruturas da elite. Obviamente, houve exceções importantes, incluindo o trabalho realizado em torno da Campanha de Ação para Tratamento no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 – uma luta pelo acesso a medicamentos que incluía um foco significativo no empoderamento político popular. Em 2009, os limites do feminismo profissionalizado vieram à tona com a ascensão de Jacob Zuma à presidência. Zuma chegou ao poder com apoio popular significativo, tanto da esquerda quanto das mulheres organizadas no Congresso Nacional Africano (CNA), bem como do eleitorado. Os avanços feministas em termos de política, lei e representação da elite não foram acompanhados pelos avanços na construção do poder popular e na formação do senso comum da sociedade.

Hoje, a África do Sul sofre taxas terríveis de violência contra mulheres, incluindo violência sexual. A oposição a essa crise às vezes exige o retorno da pena de morte, a suspensão do Estado de direito ou que os homens “protejam” as mulheres. Os feminismos populares, que estão florescendo em alguns setores, continuam sendo ignorados na esfera pública de elite e na maior parte da academia e ONGs. No entanto, nem todas as lutas na África do Sul foram cooptadas pela ação das ONGs nas lutas sociais; nesse sentido, Abahlali baseMjondolo é um exemplo-chave de um caso contemporâneo do feminismo popular. Abahlali baseMjondolo é um movimento de moradores de favelas que se tornou o maior movimento social desde o fim do apartheid; o movimento é formado em sua maioria por mulheres e muitas ocupam posições de liderança. Muitas vezes levantam questões feministas expressas na linguagem do empoderamento político das mulheres.

Ao contrário de países como o Brasil ou a Índia, a África do Sul não tem o tipo de movimento nacional de mulheres que conecta intelectuais e profissionais formados em universidades a mulheres ativas em organizações comunitárias, movimentos sociais e sindicatos. Construir essa conexão é uma prioridade urgente, não apenas na África do Sul, mas para todo o continente e em solidariedade com os outros países do Sul Global.

Criatividade, Força, Solidariedade

Em oposição ao capitalismo da austeridade, em todas as partes do mundo, as mulheres têm mostrado sua criatividade, força e solidariedade não apenas contra políticas neoliberais e contra o aumento do conservadorismo, mas também a favor do experimento socialista. Torna-se fundamental a promoção de uma solidariedade internacional tendo em vista a semelhança desses processos, e também das alternativas que estão sendo criadas pelas mulheres.

O que fica claro com esses exemplos acima descritos é que, não apenas a participação, mas a liderança de mulheres nesses processos, garante a inclusão da diversidade social necessária às revoluções.

 

 


LENIN, V.I. Discursos no primeiro congresso pan-russo das operárias.1918. IN: ENGELS, F; MARX, K; LENIN, V. Sobre a Mulher. São Paulo: Global Editora, 1979. p. 107-109.

ARRUZZA, BHATTACHARYA, FRASER. Feminismo para os 99% – Um Manifesto. Boitempo. Ed.1, 2019.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e a caça às bruxas. Boitempo. Ed.1, 2019

OXFAM. Relatório Tempo de Cuidar. 2019