Pintando uma epidemia: uma entrevista com Li Zhong
9 de abril de 2020, Xangai
Nos sentamos com Li Zhong (李钟) em uma pequena casa de chá ao ar livre de um amigo; Zhong é pintor da Academia de Pintura e Caligrafia de Xangai e presidente da Associação de Artistas do Distrito de Fengxian. Um homem de quarenta e poucos anos, Zhong usava um blazer azul marinho e jeans e, é claro, uma máscara no rosto. Mesmo três meses após o início da epidemia da covid-19, em Xangai – uma cidade relativamente protegida do vírus que retomou a vida cotidiana – 100% das pessoas ainda usam máscaras enquanto estão fora de suas casas. As máscaras podem nos impedir de nos reconhecer nas ruas, mas ainda podemos sorrir atrás delas.
E há motivos para sorrir – o isolamento de 76 dias da cidade chinesa de Wuhan, a mais atingida, havia sido suspenso pouco mais de 24 horas antes de nos conhecermos. “Este é um momento muito emocionante para o povo chinês”, reflete Zhong. “Isso significa que a China derrotou o vírus e que as pessoas de toda a China confiam na ciência. Mas não podemos deixar de ser vigilantes ou todos os nossos esforços anteriores terão sido em vão”. Ele está se referindo às preocupações com o recente aumento de casos importados do vírus e os temores de uma segunda onda de infecções no país.
Conhecemos Zhong por meio de uma série de pinturas que ele fez em solidariedade aos trabalhadores que combatiam a covid-19 em Wuhan. As cenas retratam momentos cotidianos sensíveis em um estilo tradicional de pintura chinesa – tons de tinta preta com detalhes em cores, mais destacadamente os azuis e vermelhos das roupas médicas. Um guarda de trânsito sorvendo sua xícara de macarrão instantâneo, ainda de uniforme. Um segurança tirando uma soneca durante as intensas noites e dias de trabalho. Trabalhadores medindo temperaturas, costurando equipamentos de proteção individual, recolhendo o lixo e entregando suprimentos. Trabalhadores que, por trás das máscaras, se tornam anônimos e, em uma série, se tornam inteiros. Zhong começou a postar essas imagens em seus moments do WeChat (semelhantes às stories de outras redes sociais), que foram divulgadas e finalmente chegaram a alguns meios de comunicação. Porém, pouco foi dito sobre as origens das pinturas e quem estava por trás delas. Por isso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social foi conversar com Li Zhong, em Xangai.
“Bem, este foi um ano especial”, disse Zhong. Depois de se apresentar brevemente, Zhong mergulha na sequência de eventos da epidemia de covid-19, que o levou a pintar: “Eu estava registrando o processo de como o povo chinês lutou contra o vírus; é um tipo de registro da bravura do povo chinês”. Ele é um artista que acredita profundamente na ciência. Ele categorizou seu trabalho meticulosamente: Epidemia violenta, Guerreiro da linha de frente, Perseverança popular, Apoio logístico, Suspensão de classes e Esboços antiepidêmicos. Mas reluta a falar sobre si mesmo como protagonista nessa história. Em vez disso, fala sobre valores socialistas. Elogia as ações decisivas do governo; nos últimos dois meses, milhões de pessoas foram mobilizadas em todo o país para trabalhar na linha de frente, com a maioria da população de 1,4 bilhão em alguma forma de isolamento.
“A razão pela qual eu criei as pinturas foi para mostrar os benefícios de um país socialista, e isso é diferente do capitalismo ocidental. Por exemplo, o povo chinês é um povo para quem a solidariedade é fundamental; nós somos um povo trabalhador. Durante a véspera de Ano Novo, as famílias chinesas se reúnem. No entanto, muitas pessoas sacrificaram esse precioso tempo com suas famílias para ajudar a combater o vírus. Muitas equipes médicas foram para Wuhan. Fiquei muito emocionado com essas ações. Foram tão nobres, mas são pessoas comuns como nós. Não são apenas a equipe médica, mas também a equipe e funcionários de base, funcionários da comunidade, muitas pessoas que abriram mão de seu festival tradicional. E isso é difícil para outros países fazerem”. (Mais sobre a mobilização de comitês de bairro e profissionais da área saúde na A China e o CoronaChoque)
Homenagem a um anjo – um jantar diferente na véspera de Ano Novo (致敬天使·不一样的年夜饭) apresenta duas equipes médicas comendo às pressas, agachados, ainda paramentados. Uma refeição “diferente” também é retratada em um estilo diferente. Ele emprega o estilo tradicional chinês de pintura a serviço do momento contemporâneo, para “desenvolver o novo do antigo”, como Mao Zedong poderia ter dito. A pintura por lavagem de tinta surgiu durante a dinastia Tang e é comum em todo o leste asiático. Sua tinta preta característica, diluída em várias concentrações e tons, é pintada em um papel de arroz altamente absorvente e delicado. Depois que um traço é pintado, ele não pode ser modificado ou desfeito. Sua capacidade de capturar um momento não é medida por seu realismo, mas por sua essência – é uma captura instantânea que já começa a desaparecer quando o pincel encontra o papel, como se estivesse mudando com a velocidade de um vírus.
Na tradição da pintura socialista, Zhong volta nosso olhar para os trabalhadores – os sujeitos que foram consistentemente excluídos da pintura burguesa e que agora estão ausentes nas imagens da mídia ocidental sobre a resposta chinesa à pandemia. “Em todo o mundo, as pessoas podem dizer coisas ruins sobre a China, mas essa experiência mudou totalmente a opinião delas. Surpreendentemente, nunca consideraram a solidariedade do povo chinês […], mas agora todos estão pedindo ajuda à China e nós somos os únicos ajudando. A China ajudou 120 países, tanto com suprimentos quanto com pessoal”.
Ao celebrar aqueles que trabalham, o próprio Zhong também foi trabalhar. Durante sua auto-quarentena de um mês e meio, ele criou 129 pinturas – mais de duas novas pinturas por dia. Seu compromisso social é claro, tanto como artista quanto como membro do Partido Comunista da China. Zhong estudou e fez referência a imagens de reportagens online e televisionadas na China, “que mostraram muitas perspectivas dos trabalhadores”. As pinturas também voltaram para os próprios trabalhadores, como os vinte funcionários médicos de sua comunidade que foram para Wuhan. As pinturas lhes deram coragem e estímulo. “Eles me disseram que minhas pinturas refletem a verdade do surto. No futuro, quando virem minhas pinturas, não esqueceremos”, explicou Zhong.
No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social estamos envolvidos em uma batalha de ideias, que entendemos ser também uma batalha sobre o visual. Zhong fez arte que marca uma disputa nesta batalha. Uma arte “para mostrar aos soldados que estão lutando contra o vírus, e esses soldados não são apenas as equipes médicas. Incluem as pessoas que ficam em casa, elas também são lutadoras”. Ele nos convidou para ver uma representação diferente.
Uma de suas pinturas mostra uma criança em um cavalete, colorindo letras maiúsculas. Parem as aulas, mas não parem de aprender (抗击 疫情 停课 不停 学). “Por causa do vírus, as crianças não podem ir à escola”, explica Zhong. “Os especialistas dizem que o vírus pode ser transmitido de pessoa para pessoa. Então, as escolas tiveram que ser fechadas. Os alunos devem permanecer em quarentena, então eles estão desenhando quadrinhos em apoio aos trabalhadores médicos”. É um desenho dentro de um desenho, um registro de um registro sendo feito.
Quanto aos artistas, o que podemos fazer? “Eles podem refletir a situação positivamente. Eles devem ser verdadeiros. Não culpe outros países, não divulgue informações erradas, pois o maior desafio é derrotar o vírus, o que exige unidade”. Como soldados nessa batalha internacional contra a pandemia do covid-19, trabalhando nas linhas de frente ou nos bastidores, em quarentena em casa ou fora dela, cuidando ou sendo cuidados, em computadores ou cavaletes, Zhong nos lembra da ciência, do aprendizado e da verdade.