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Bolsonaro, as vozes do passado e do presente: uma análise discursiva

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes. Saiba como participar.

Por Luiza Troccoli

 

Oh senhor cidadão Eu quero saber, eu quero saber Com quantos quilos de medo Com quantos quilos de medo Se faz uma tradição? Oh senhor cidadão, Eu quero saber, eu quero saber Com quantas mortes no peito Com quantas mortes no peito Se faz a seriedade? Tom Zé

Um preâmbulo: O que a linguagem tem a ver com política?

Os estudos linguísticos escolares encarnam uma concepção normativa gramatical que por vezes nos faz compreender a língua como sistema fechado em si mesmo, no qual cada palavra se refere a um objeto do mundo e assim as selecionamos para descrever a realidade a nossa volta. Ampliando esse tipo de concepção, devemos dizer que mais do que simples meio de expressão, a linguagem entranha as contradições sociais. Em 1929, aplicando o método marxista aos estudos linguísticos, o soviético Mikhail Bakhtin já nos alertava: “a linguagem reflete e refrata a realidade”. Essa concepção unia a linguagem ao conceito de ideologia, e afirmava que, por um lado, tudo o que dizemos é produto de um contexto sócio-histórico; por outro, o dito influi nesse contexto através da disputa de sentidos. Ou seja, a realidade, em sua base material, constrói o discurso¹ e dialeticamente é também construída por este, na medida em que ele é base material da ideologia.

Para fazer uma análise marxista da realidade, portanto, temos na linguagem um campo fértil. O discurso político, em especial, nos dá pistas dos mecanismos utilizados nas disputas de sentido pois materializa um aspecto fundamental da luta de classes: a batalha pelo chamado “senso comum”.

Michel Pêcheux, teórico da linha dos estudos da linguagem que ficou conhecida como Análise do Discurso, caracteriza o “senso comum” como componente de uma memória coletiva de sentidos, ideologicamente construída a partir da disputa de narrativas na sociedade. A correlação de forças sociais, portanto, determina, entre todos os discursos possíveis, uma narrativa dominante que será tida como pressuposto na memória coletiva, o “senso comum”.

É importante considerar que não há um sentido inerente às palavras: dizer “manifestação de domingo na paulista”, hoje, evoca sentidos distintos do que dizer a mesma frase antes de junho de 2013 ou dizer a mesma frase em algum lugar fora do Brasil. O andar da história no Brasil desde 2013 ressignificou o que é “manifestação”, o que é “domingo” e o que é “Avenida Paulista”. Mais que isso, esse exemplo nos mostra que a significação não está somente nas palavras, mas também, e principalmente, no contexto no qual são enunciadas. Essa afirmação é importante na medida que esclarece uma lacuna existente entre a dita “realidade” e a linguagem, lacuna essa a ser preenchida pelo implícito, pela interpretação. Podemos dizer, então, que a língua significa na e pela história, a partir dos pressupostos que vão se consolidando na disputa ideológica de sentidos. Falar, portanto, é se colocar na história, e interpretar o dito também.

 

Jair Bolsonaro e a disputa de sentidos

A eleição de Jair Bolsonaro traz para o centro do cenário político nacional uma figura polêmica, que adota um tipo de discurso fortemente radicalizado e que representa o reascenso da extrema direita fascista e ultra conservadora em nosso país. Em contexto de crise política, econômica e social no Brasil, Bolsonaro se coloca na disputa de narrativas visando estabelecer no senso comum um determinado modelo social enquanto pressuposto. É necessário, para isso, que seu discurso equalize a expressão de seu programa político e o diálogo com pressupostos já construídos na memória coletiva, de modo a incidir na disputa ideológica ressignificando e deslocando esses pré-construídos.

Seu discurso, portanto, se insere em uma disputa geral de sentidos na sociedade em um contexto de onda conservadora. Por esse motivo, para além de um “maluco” ou “um ponto fora da curva”, Bolsonaro é um sujeito do discurso, atravessado por um contexto social aderente que permite que ele diga o que diz e mais: ele não diz sozinho, ele resgata na memória discursiva as vozes de atores políticos que sustentaram e sustentam a disputa por uma determinada interpretação da realidade. Ou seja, fechar a boca de Bolsonaro não altera uma correlação de forças sociais que coloca esse tipo de discurso na ordem do dia. Atrás de toda voz de um locutor individual há um olhar que é coletivo. Por outro lado, na condição de presidente, ele assume papel central na disputa ideológica, se colocando como porta-voz de um setor social.

Neste ensaio será enfocado como os discursos de Bolsonaro trabalham a temática da defesa da família em articulação com a temática da violência como forma de disputar uma determinada forma de organização social.

Esses elementos, que aparentemente compõe campos de sentido contraditórios, em seu discurso aparecem de maneira complementar, e remontam à ideologia fascista, no que podemos afirmar que em seu discurso estão representadas outras vozes do movimento de extrema direita nacional e internacional que vão para além do indivíduo Jair Messias Bolsonaro. Dentro deste campo, podemos observar dois aspectos de seu discurso que podem ser compreendidos como parte da ideologia fascista: 1) O posicionamento da família como núcleo básico da sociedade e via de enraizamento do projeto fascista e; 2) A eliminação da contradição e da diferença como método de manutenção da ordem. Dessa forma, o atual presidente propagandeia um deslocamento no arranjo social estabelecido pelas instituições democráticas desde a Constituição de 1988 e fixado como pressuposto coletivo desde a redemocratização.

 

O discurso de Bolsonaro e os sentidos do fascismo

perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo. Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo exército de Caxias, pelas nossas forças armadas. Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos o meu voto é sim.

O fragmento acima é parte do discurso pronunciado por Bolsonaro no contexto da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados em 2016. Nele, podemos observar como convivem no discurso do então deputado federal dois polos: de um lado ele evoca os sentidos da família e das crianças em sala de aula, representando assim um ambiente de cuidado, de acolhimento, de inocência. Por outro lado, ele evoca a memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra², reconhecidamente um símbolo da ditadura militar brasileira, e mais que isso, ele especifica quais ações de Ustra devem ser lembradas e valorizadas; o fato de ele ter sido o terror de Dilma Rousseff, fazendo referência às sessões de tortura às quais a ex-presidenta foi submetida.

Apesar de polos que podem ser vistos como contraditórios (violência x família), em seu discurso Bolsonaro articula essas duas esferas construindo uma representação de complementaridade. Esses dois campos de sentido se fundem na imagem da Pátria e de Deus (Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos) como a expressão máxima do combate à tudo que é ruim: o PT, o comunismo, o Foro de São Paulo… que naquele momento se materializa no voto do deputado com relação ao impeachment de Dilma: Sim.

Podemos dizer, portanto, que Bolsonaro desloca essa oposição: se poderíamos identificar uma polarização Família x Violência, Bolsonaro funde esses dois aspectos para construir uma nova polarização: Brasil/Deus X Comunismo, onde “Brasil /Deus” é o equivalente à “Família + Violência”.

Esse deslocamento mencionado provoca um reordenamento de valores, do que é considerado certo e errado, valor e desvalor. O autoritarismo de sua política se desdobra em um discurso também autoritário do ponto de vista da linguagem: Se a polarização posta coloca “Brasil e Deus” em um dos lados, o implícito diz que quem não concorda ou não absorve um conjunto de valores tidos como “corretos” está contra Deus e contra o Brasil. Em outras palavras, seu discurso não dá margem para a discordância, para a divergência, é estruturalmente autoritário ao posicionar quem discorda dele como anti-Deus e anti-Brasil (considerados valores universais no senso comum brasileiro). De maneira complementar à essa polarização, o resgate à ditadura militar brasileira expõe também a necessidade de eliminação do grupo divergente: os anti-pátria e os anti-Deus devem ser perseguidos, torturados e aniquilados.

Leandro Konder em Introdução ao fascismo coloca como uma das características da ideologia fascista a necessidade de superação das contradições na sociedade que impeçam o desenvolvimento das forças do capital. Também segundo o autor, o ultranacionalismo se coloca nesse contexto como a superação dessas divergências, a ideia de pátria como símbolo máximo da boa ordem social, e quem se oponha a ela deve ser eliminado. Em outras palavras, essa concepção desloca a contradição de classes “ricos x pobres” ou “burgueses x proletários” e a substitui pela contradição entre: os a favor e os contra a nação. Dessa forma, a ideia de nação busca expurgar a diferença, a contradição, os movimentos, a mobilização, o contra ponto. Outro fator importante para a ideologia fascista é a ideia de que é impossível a mediação e a convivência do divergente. Essa é uma ideia importante na medida em que só há pensamento se há mediação. O maniqueísmo torna a sociedade dividida em duas caixinhas e tudo o que está dentro de uma delas deve ser destruído.

Nesse contexto, a ideia de armamento da população através da desregulamentação das armas, repetidamente defendida por Jair Bolsonaro aparece como parte desse novo arranjo social proposto pela ideologia fascista: a criação de um contexto de guerra civil, na qual os “cidadãos de bem” podem proteger a si mesmos, às suas famílias e à sociedade no geral do perigo comunista.

Vamos observar o seguinte trecho vazado de reunião ministerial realizada em 22 de abril de 2020:

E se eu fosse ditador, né, eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Aí, que a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que por favor assinem essa portaria hoje, que eu quero dar um puta dum recado pra esses bosta: Por que que eu to armando o povo. Por que eu não quero uma ditadura, e não dá pra segurar mais… Não dá pra segurar mais, e, quem não aceitar a minha… as minha bandeiras, Damares: Família, Deus, Brasil, Armamento, Liberdade de expressão, Livre mercado… Quem não aceitar isso está no governo errado… esperem pra 22, né, o seu Álvaro Dias, espera o Alckmin, espere o Haddad, ou talvez o Lula, né, e vai ser feliz com eles, pô, no meu governo tá errado… É escancarar a questão do armamento aqui, eu quero todo mundo armado, que povo armado jamais será escravizado.

Aqui vemos como são evocados sentidos convergentes com o valor da democracia: a necessidade de se evitar uma ditadura, e a referência ao processo eleitoral de 2022. Por trás de uma suposta valorização da democracia, porém, se coloca a necessidade de armar a população para sua autodefesa contra uma suposta “ditadura”. Os polos discursivos construídos por Bolsonaro, como já vimos, colocam as “suas bandeiras” de um lado: Família, Deus, Brasil, Armamento, Liberdade de expressão e livre mercado. E o comunismo, o PT e o Foro de São Paulo de outro. Bolsonaro em sua fala, portanto, propoẽ o armamento da população em nome desses valores e contra a suposta “ditadura comunista”.

Partindo-se do pressuposto de que não temos vivenciado no último período tentativas de tomada violenta do poder por parte do coletivo identificado como “comunistas”, podemos interpretar da fala de Bolsonaro que a “liberdade de expressão” e a “defesa da família” para que o povo “não seja escravizado” na verdade encobrem a defesa da eliminação do divergente: “quem não aceitar isso está no governo errado”. Isso porque se Bolsonaro preza, como este diz, pela “democracia” e o processo eleitoral de 2022, armar a população para autodefesa contra o divergente, passa por cima do que seria um processo eleitoral democrático. Com isso, podemos observar que evocar os valores democráticos da maneira como o presidente faz constitui um mecanismo de validação de sua fala através da menção de valores tidos como universais, porém, nas entrelinhas vemos as pistas de um projeto que na verdade entra em contradição com a democracia.

Outro aspecto a ser observado que remonta à ideologia fascista diz respeito ao posicionamento da família como núcleo base da sociedade. Segundo Wilhelm Reich em Psicologia de massas do fascismo: “O Estado autoritário tem o pai como seu representante em cada família, o que faz da família um precioso instrumento de poder. A posição autoritária do pai reflete em seu papel político e revela a relação da família com o Estado autoritário.”

Na sociedade fascista, portanto, temos a família como núcleo fundamental de sustentação do regime, como uma estrutura que se replica em diferentes níveis organizacionais na sociedade. Tal regime depende de um movimento que se enraíza na sociedade para sustentar-se, e por isso a defesa intransigente da família aparece nos discursos como elemento de destaque. Também a fusão entre Família e Violência, como vimos no fragmento anterior, funciona como representação da família como partícula do estado autoritário, e portanto a eliminação do inimigo comum anti-pátria e anti-Deus deve ocorrer em todos os níveis da sociedade, desde a repressão via forças armadas até a chamada “defesa da família” com o armamento de civis e conformação de milícias.

Ainda nessa linha, como forma de incorporar a Família como estrutura do regime político, vemos como em seus discursos Bolsonaro faz convergir aspectos da política geral e nacional com a estrutura familiar através de metáforas que trazem esse imaginário, comparando as estruturas familiares com situações da política de seus governos.

São comuns declarações vindas do presidente como “Estamos namorando. Na política, ele me ouve. Assim como eu o ouço na economia. Essa conjunção está dando certo” referindo-se à relação com Paulo Guedes; ou “Foi um divórcio consensual” com relação à demissão do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

No seguinte fragmento da já referida reunião ministerial, esse elemento também fica evidente:

Eu tenho as … as inteligências das Forças Armadas que não me dão informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente num pode viver sem informação. Sem info … co … quem é que nunca ficou atrás do … da porta ouvindo o que seu filho ou sua filha tá comentando. Tem que ver pra depois que e … depois que ela engravida, não adianta falar com ela mais. Tem que ver antes … depois que o moleque encheu os cornos de … de droga, já não adianta mais falar com ele, já era. E informação é assim. E me desculpe, o serviço de informação nosso, todos são uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado!… E não dá pra trabalhar assim, fica difícil… Por isso, vou interferir! E ponto final, pô. Não é ameaça, não é uma uma extrapolação da minha parte, é uma verdade.

Aqui, é estabelecido um paralelo entre a postura de um pai que zela pela moral e pela ordem em sua família e um presidente, que deve fazer o mesmo pelo país. Vemos também que esse valor maior da “preservação” seja da família ou da pátria, nessa concepção, justifica determinados atos, seja invasão de privacidade dos seus filhos, seja intervenção ilegal na polícia federal para benefício próprio.

Essa estrutura da família como parte da organicidade da estrutura de sociedade fascista é fundamental para a sustentação regime. Ela funde o espaço público e privado, reproduzindo os valores da política no espaço familiar, forçando a um determinado tipo de comportamento no âmbito das relações familiares e interpessoais e ao mesmo tempo justificando condutas ilegais no espaço da política geral. Dessa maneira, o fascismo constitui o seu exército de soldados civis, que garante a aplicação de seu programa e valores em todas as camadas e esferas sociais. Daí a importância, do ponto de vista do Bolsonarismo, de armar a população, garantindo assim que seus soldados eliminem, nas pontas, a contradição e a dissidência, um mecanismo de enraizamento e envolvimento da sociedade pela ideologia e programa fascistas altamente eficiente.

 

Considerações Finais

Retomando os preceitos da Análise do Discurso, podemos dizer que a linguagem não é transparente. Entre a representação da realidade que se faz através da língua e o mundo objetivo existe uma camada de opacidade, a ideologia, elemento que abre margem para a interpretação do discurso, a compreensão nas entrelinhas, os elementos não ditos que estão por trás do que se diz. Por ser produto direto das condições sócio-históricas, o discurso pode tentar mascarar sua posição-sujeito não neutro, não individual, mas os rastros da história no discurso são incontornáveis, transbordam pelas margens do texto.

A tarefa do analista do discurso é driblar essa ilusão referencial, escutar o não dito, a ausência presente que também significa. Vemos no discurso de Bolsonaro a construção da imagem do Cidadão de bem que preserva os valores da Pátria e da Família, mas vemos também escapar por suas palavras o seu programa fascista de eliminação do “cidadão do mal”. Como disse Tom Zé: “Sr, Cidadão, com quantos quilos de medo se faz uma tradição? Com quantas mortes no peito se faz a seriedade?”

Esse Sr. Cidadão é aquele do qual foi retirada sua identidade de povo trabalhador e imposto um coletivo de identificação monolítico: a Nação, capaz de satisfazer todas as necessidades da vida comunitária. Esse Sr Cidadão, o pai de família, base do Estado autoritário no ambiente privado é inquirido: eu quero saber, com quanto quilos de medo se faz uma tradição? Com quantas mortes no peito? A pergunta sem resposta expressa a violência naturalizada, o apagamento da contradição que tenta impor-se como pré-construído através da disputa ideológica, mas que transborda de maneira incontornável nas entrelinhas do discurso, marcando, também na linguagem, a luta de classes.

 

¹ Entendemos “discurso” por qualquer manifestação da língua em uso em um contexto sócio-histórico.

² Coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército (de 1970 a 1974), um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) e torturador condenado.

 

Referências

BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e Filosofia da linguagem. Hucitec: São Paulo,
2014
KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. Expressão Popular: São Paulo, 2009
PÊCHEUX. Michel. Memória e produção discursiva do sentido. In: Papel da Memória trad:
José Horta Nunes, Editora Pontes, 1999
REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Martins Fontes: São Paulo, 1988.