Quando a fé encontra a luta: as vozes das mulheres evangélicas do MST – Parte 4
Pesquisa sobre os Evangélicos e a Política
Por Angelica Tostes e Delana Corazza
Esse é o último texto de uma reflexão cujo processo de construção se iniciou há um ano, a partir de conversas com 15 mulheres evangélicas que estão no MST e de 4 dirigentes com religiosidades diversas e múltiplas, para além da identidade fixa e um único modo de viver a espiritualidade. As publicações não pretendem definir e encerrar o debate sobre quem são as mulheres evangélicas Sem Terra e suas lutas a partir da fé e do Movimento. Mas, antes, tem o objetivo de alargar o debate da religião no campo popular, trazendo velhas e novas questões que se somam àquelas tão imbricadas em nós, militantes de esquerda. Além de ampliar a discussão, buscamos criar espaços para refletirmos juntas como avançar no diálogo e no trabalho de base com a classe trabalhadora que tem a identidade evangélica como marca importante de sua trajetória. Compreendemos que o espaço da Igreja é importante para nosso povo em inúmeras questões, e acreditamos que a a relação entre fé e luta é uma união fértil e que está no germe da classe trabalhadora de nosso país e de nosso continente latino-americano.
No primeiro texto resgatamos a memória mística do MST, desde sua origem, para relembrar que a religiosidade popular é uma marca dos movimentos sociais e influenciou a constituição de inúmeros movimentos; abordamos a trajetória da luta das mulheres Sem Terra dentro do Movimento, que culminou no Primeiro Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra em março de 2020; além de introduzir reflexões sobre o atual cenário religioso no país e o papel das mulheres nesse contexto. Na segunda parte de nosso estudo, buscamos abordar a importância da Igreja para a organização do cotidiano dessas mulheres, além de um protagonismo contraditório nas ações da Igreja; pensamos essas questões a partir da dimensão gênero, raça, classe e sexualidade e como a complexidade das identidades se relacionam com a fé evangélica em seus limites e contradições. No terceiro momento de nossa reflexão trouxemos a fé em disputa e o questionamento das companheiras sobre ser crente e estar em um movimento social; tentamos elucidar, a partir das falas, qual é o papel da espiritualidade para elas e como conseguem, a partir da sua religiosidade e identidade Sem Terra, construir ações e intervenções no MST. Por fim, este último texto é uma aposta no diálogo e uma abertura para que os militantes, que creem ou não, se somem nessa tarefa de criação de pontes com os evangélicos e evangélicas nos territórios periféricos dos campos e das cidades, pensando as dimensões do trabalho de base e do papel da Bíblia nesses territórios.
Trabalho de base: acolhimento, superação, dedicação e sociabilidade
A esquerda e o campo progressista têm avaliado no último período a necessidade de avançar no trabalho de base, e dentre as tantas possibilidades desse avanço, o estar no território, cotidianamente, aparece como passo fundamental para a tarefa. Em diálogo com essa necessidade, o que temos visto nos bairros periféricos, assim como nos acampamentos e assentamentos do MST é a proliferação de pequenas comunidades evangélicas que estão em cada esquina das ruas desses territórios. Em outros textos produzidos por nossa pesquisa e nas tantas reflexões sobre o tema – seja por acadêmicos ou militantes -, já não é mais novidade a compreensão de que os espaços vazios deixados pela esquerda não estavam realmente… vazios, são as Igrejas que lá ocuparam e que permanecem.
As explicações sobre o elevado aumento das Igrejas evangélicas nesses territórios podem ser compreendidos a partir de algumas chaves analíticas que não se anulam, não competem entre si, mas, antes, se complementam. Uma dessas chaves seria pela diminuição dos direitos sociais: o avanço das desigualdades, o aprofundamento da pobreza e da violência e a culpabilização do indivíduo pela sua própria miséria, consequências do neoliberalismo da década de 90, sistema político e econômico avassalador para a classe trabalhadora mais empobrecida, gerando nos indivíduos a necessidade de buscar auxílio psicossocial e espiritual em instituições como as Igrejas, uma resposta espiritual e material às suas angústias. Outra possível chave de interpretação seria o papel do imperialismo estadunidense no continente latinoamericano contra a Teologia da Libertação: alguns documentos e estudos apontam para essa interpretação, compreendendo que para enfraquecer a tendência crescente de religiosos católicosde esquerda, era necessário dar outras respostas espirituais nos territórios. São pesquisas que merecem aprofundamento e investigação, para além de teorias da conspiração. Entretanto abordaremos esse tema na América Latina brevemente.
Essas análises são fundamentais para compreendermos o fenômeno, no entanto não dão conta de toda a complexibilidade do tema. Para irmos além da reflexão sobre como e porquê as Igrejas evangélicas têm avançado numericamente de forma avassaladora em nossos territórios, queremos saber: como e porquê a classe trabalhadora mais empobrecida se mantém em alguns espaços e não em outros, e, para além de se inserirem, porque permanecem?
Acolhimento e superação: “Você não sai de lá da mesma forma que chegou”
Em 1999, o produtor de cinema João Moreira Salles acompanhou por um ano o Pastor Jamil, metalúrgico aposentado que fundou uma Igreja evangélica em um bairro de famílias extremamente pobres, quase todas de imigrantes nordestinos, na antiga zona rural no Rio de Janeiro. Essa história foi contada através do documentário Santa Cruz. A fundação e trajetória da Igreja são marcadas pelas histórias, principalmente de mulheres, de superação das mazelas diárias dos indivíduos que passam a frequentá-la e, consequentemente, pela transformação de toda aquela comunidade. São depoimentos, ou, na linguagem dos crentes, “testemunhos”, de uma vida que mudou para melhor, inegavelmente. No documentário, Salles faz uma pergunta que também dialoga com a nossa: “Por que uma doutrina que prega a abstinência de tanta coisa, bebida, fumo, saia curta, carnaval e até futebol, atrai precisamente aqueles que já tem tão pouco?” A companheira Lourdes, da Assembleia de Deus, assentada em um acampamento do Incra no Maranhão nos dá algumas pistas:
Ah, os louvores, as irmãs que são muito dadas com a gente, muita animação. Hoje mesmo o irmão mandou uma foto para mim da Igreja, é muito gostoso a gente estar na Igreja, a gente faz festa, é animado, nossa Igreja é muito linda, é bom demais. A gente faz também movimento das mulheres, tem ciranda das crianças também, tem tudo para as crianças, têm para nós também, ano passado fomos no cenário das mulheres, na Lagoa da Pedra, tem os estudos da Bíblia, tem as lições, eles passam muita coisa boa para a gente. Tem o Pastor Neri, ele vai na minha casa, eles vão tudinho, o almoço é lá em casa, aí a gente conta palestra, aí a gente lê a lição, a gente canta hino, a gente bota o som alto (LOURDES, MST-MA).
A fala da Cristina, do acampamento Marielle Vive em Valinhos, estado de São Paulo, que trouxemos no primeiro texto, nos dá outras pistas para a questão, pois nos mostra como a Igreja resolve questões aparentemente simples e pontuais, como, no caso dela, uma macarronada e um vestido para o dia do casamento da filha. Já para Sônia, da Assembleia de Deus Nova Dimensão (MST-AL) somam-se outras “pequenas” alegrias que dão sentido para a vida:
Em relação à Igreja, eu gosto muito de ouvir a palavra, orar, de ouvir os louvores. Às vezes a gente chega lá abatido, a gente é sentimental, sente muito, eu sou muito sensível, qualquer coisinha eu mudo. Aí você chega lá abatida, lá você ouve a palavra, ouve o louvor, e acredito que você não sai de lá da mesma forma que chegou. Sempre tem que sair diferente, tem que dar lugar, se a gente não dá lugar, a gente não sente (Sônia, MST-AL).
Marco Fernandes, pesquisador do Tricontinental e militante do MST, reflete sobre as respostas subjetivas e objetivas que as Igrejas têm dado à classe trabalhadora empobrecida das periferias de nosso país. Para Fernandes, as Igrejas são espaços de acolhimento às demandas “demasiadamente humanas, concretas, essenciais, como o desejo de fazer parte de grupos ou coletivos que nos acolham (sentimento de pertencimento)”(FERNANDES, 2017, p. 21). Além de serem espaços de arte, cultura e lazer em locais onde há extrema escassez desses direitos, são como festas populares, imersas em músicas (FERNANDES, 2017), onde os músicos “contratados” geralmente são fiéis que na maioria das vezes aprenderam a tocar os instrumentos na própria Igreja.
Gosto muito dos louvores. Louvores eu gosto. Que gosto muito de louvar, sinto uma alegria no coração, assim, quando tá cantando assim… Sabe, aquela tristeza sai, se tiver que chorar a gente chora e é muito bom, não tem nem explicação (Helena, MST-GO).
A Igreja é também a promessa de uma vida melhor, sem tanto sofrimento. São histórias divididas por meio de um testemunho pessoal que acontece nos cultos trazendo o poder da fé na superação de dores físicas e emocionais. O irmão que está no púlpito tem histórias muitas vezes semelhantes a muitos dos fiéis presentes, o testemunho é fundamental no culto evangélico, e a identificação é imediata:
Eu comecei a ir por um motivo muito forte. Eu separei do meu companheiro, que não era esposo na época, aí eu fiquei muito triste por coisas que descobri dele, que não vale a pena falar sobre, né? E fiquei triste com aquilo, com um filho novinho, aliás dois filhos para criar, só que um de um mês. Assim, quase que eu entrava em depressão, aí eu vim em um acampamento da Igreja Universal, na época, aí eu pensei, se aconteceu com uma mulher dando testemunho muito lindo que ela tava com um problema quase igual o meu e outra, foram dois testemunhos. A outra estava, tipo, com umas escamas, uma doença bem feia com umas escamas. Aí ela deu o testemunho que estava liberta e curada, aí pensei: se essa mulher estava quase leprosa e foi liberta, por que eu não vou ser? Por que não vou me libertar de tudo isso? Foi isso que me levou até a Igreja, eu fiquei um bom tempo na Universal, foi onde eu conheci Deus. Foi uma preparação. Depois da Igreja Universal, eu vi que não era mais lá. Aí passei para a Assembleia, hoje sou assembleiana, e glorifico mesmo a Deus por isso (Cleide MST-AL).
A pesquisadora Christina Vital em seu livro “Oração de Traficante” (2015) revela outros fatores fundamentais que contribuem para a permanência dos fiéis e o fortalecimento dos laços de solidariedade e ajuda mútua entre os irmãos: a oferta diária de cultos em diversos horários e o papel dos fiéis para a manutenção da Igreja, principalmente das mulheres, como principal elemento de conversão da família, como já abordamos na segunda parte de nosso texto. Para Vital: “(…) o caráter muitas vezes diário das atividades evangélicas é fundamental para a formação de redes e para a ‘fixação’ do membro da Igreja, visto que nesse contexto, as demandas por ajuda e por acolhimento podem ser repentinas” (VITAL, 2015, p. 188). Caminhando nessa direção, quando perguntamos sobre quantas vezes ia à Igreja por semana, a companheira Eliza de Goiás nos diz: “Eu vou terça, quinta, sexta e domingo. Dias de culto! Vou sempre”.
O acolhimento às necessidades mais repentinas é um ponto também da explicação dessa grande adesão por parte dos trabalhadores, nas palavras de Vital: “As redes evangélicas são promotoras de ajudas ou de um apoio que se diferencia da filantropia típica da Igreja Católica ou dos kardecistas por serem redes de apoio preferenciais aos ‘irmãos’ e por envolverem o indivíduo em reciprocidade” (Vital, 2015, p. 190). Ou seja, quando o indivíduo recebe um auxílio é considerado um “igual” do ponto de vista de possibilidades de se reerguer, a capacidade de mudança real em sua vida torna-se mais palpável do que a promovida por ações de caridade, dada a passividade que muitas vezes essas ações impõem. Ajudar o irmão a se erguer, a fazer parte da construção de uma Igreja que será dele também potencializa concretamente a criação de laços e redes sociais – um irmão precisa de outro irmão. Ainda que possamos questionar as formas dessa solidariedade popular entre irmãos e irmãs – dado que muitas vezes a conversão é a condição dessa solidariedade entre iguais, fato é que ela está presente nas Igrejas e tem sido muitas vezes a única possibilidade de superação de uma vida imersa em dores e ausências.
O documentário Santa Cruz, dentre as tantas mudanças vividas pelos fiéis da Igreja do Pastor Jamil, mostra a superação do analfabetismo da população através do desejo de ler a Bíblia por conta própria. A leitura da Bíblia é um elemento fundamental da identidade crente e é, muitas vezes, um enorme incentivo para processos de alfabetização. O professor, pesquisador e Teólogo David Mesquiati Oliveira nos auxilia nessa constatação:
Há muitos casos de motivação interna para a alfabetização dos pentecostais via leitura bíblica. Nos programas sociais de inclusão pela leitura, a educação de adultos contou com forte presença pentecostal, motivados pela vontade de fazer sua própria leitura da Bíblia. Por Palavra de Deus, eles entendem mais que as letras do texto sagrado. Trata-se de “letras vivas”, que dão sentido à vida. É uma leitura com forte apelo devocional, que mexe com a orientação da vida presente e futura do sujeito (OLIVEIRA, 2017, p. 131).
Eliza nos ilustra com o exemplo de sua mãe, evangélica e esposa de pastor, ainda que ela tenha aprendido a ler em uma escola, a Bíblia faz parte da concretização desta conquista:
Minha mãe não sabia ler. E precisa ver, que bonitinho ela lendo agora. Eu incentivei muito. Ela aprendeu na escola, eu ajudei muito minha mãe e minha irmã também ajudou. Eu sempre quis que minha mãe aprendesse a ler para que ninguém a passasse para trás, sabe? Porque já teve muita coisa assim que aconteceu, que eu não tava, mas Deus sabe das coisas, né? Por ela não ter leitura, conhecimento, aconteceu coisas muito chatas. Mas agora ela pega uma coisa e ela lê tão lindo! Eu filmo ela quando ela vai ler a Bíblia lá na frente (ELIZA, MST-GO),
A companheira Rosa Maria, do Pontal do Paranapanema, Estado de São Paulo e membra da Assembleia de Deus Madureira, falou bastante sobre a Bíblia em sua entrevista, por vários momentos nos disse que queria estar com a Bíblia na mão para mostrar uma passagem importante, com o objetivo de justificar a sua fala, em um momento, ela nos diz: “eu não tenho muito entendimento da leitura, quando eu via as pessoas lendo a Bíblia, eu pensava: meu Deus, será que um dia vou conseguir ler uns versículos dessa Bíblia? E hoje eu leio vários versículos, e eu gravo os versículos de ouvido, ouvindo alguém lendo. E os louvores também”.
Mas a fome e a sede não são só da Bíblia, mas de comida e bebida! No último período, com o agravamento da fome por conta da pandemia que assolou nosso país, a necessidade de responder às demandas concretas do povo – como a doação de marmitas e cestas básicas – tem sido uma lição aprendida cotidianamente pelos militantes que estão nos territórios. Ouvir as demandas e estar atento às necessidades mais, aparentemente, triviais, têm sido parte importante da metodologia das Igrejas, ligando um sinal de alerta sobre o que nós, do campo progressista, estamos deixando de fazer, Paula, de Minas Gerais, nos diz:
Hoje a Igreja acontece duas vezes por semana, na quinta e no domingo. Eu faço parte do coral de mulheres e sou dirigente do grupo de mulheres, então a gente tem várias atividades, desde fazer visitas nas casas, trabalho de base, aí eu concílio uma coisa com a outra: faço trabalho de base do MST e trabalho de base cristão (Paula, MST-MG).
Assim como Paula, Bete, da Assembleia de Deus em Goiás, concilia a militância política com sua militância na fé, “militante do MST, militante da Bíblia, por que também fala militar, quando a gente vai pregar, fala militar também, Cristo deixou isso bem claro, Paulo ensinou isso – militar – a boa milícia”. Ela nos conta o trabalho cotidiano da pastora de sua Igreja:
Ela vai nas periferias, ela vai lá no meio da cracolândia, ela busca as pessoas, leva para a Igrejas, presos, presidiários, ela trabalha com essa sociedade, mães, mulheres, que seu filho tá preso e não ter condição, esse é um trabalho extremamente social, eu até me arrepio por que eu nunca tinha visto alguém com esse chamado para trabalhar com essa classe. E agora ela está trabalhando com a comunidade LGBT, é o que mais tem na Igreja. São as pessoas que estão indo e ela não faz distinção, ela não discrimina, ela abraça, então é um trabalho bem diferente, ainda mais se tratando de Assembleia de Deus que é bem conservadora (BETE, MST-GO).
Apesar de Bete se manter firme nos dois espaços, ela avalia que, de fato, muitas vezes ao entrar na Igreja – que fica no assentamento – muitas mulheres passam a priorizar o trabalho eclesial, o que se torna um dado importante na tentativa de responder a inquietação inicial dessa reflexão:
Elas tendem a se afastar (do movimento por causa da Igreja) – “vou aqui dentro do meu quadrado, vou tocar a minha vida sem precisar do movimento”, que é a dificuldade que temos nas nossas áreas hoje, de estar trazendo mais as pessoas para dentro, aí a gente faz o trabalho na Igreja, faz o trabalho de base levando as orientações e levando na Igreja, por mais que ela receba as orientações, no fundo, no fundo não é aquilo que ela quer ouvir, de ter essa pertença ao movimento (BETE, MST-GO).
Dedicação e sociabilidade: “e então na Igreja tem, faz muita diferença”
A pesquisadora Jacqueline Moraes Teixeira, em seu livro “A mulher Universal: Corpo, Gênero e Pedagogia da Prosperidade” (2016), constrói uma narrativa de fundamental importância para compreendermos como a mulher pentecostal se insere na Igreja a partir de uma metodologia extremamente eficiente, onde ela é ensinada a “ser mulher”, sobre o que falaremos mais adiante. Muitos discursos acadêmicos e do campo progressista têm se limitado a uma visão simplista sobre a proliferação das Igrejas evangélicas, colocando os crentes em um papel passivo frente às artimanhas dos grandes pastores e de seus projetos de poder, mas não é bem assim. Um exemplo inusitado se refere à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e sua polêmica posição pró-aborto. Teixeira, ao investigar a coluna Mulher Cristã do jornal Folha Universal da IURD nos mostra:
“(…) foram verificadas 5 reportagens sobre o aborto. A lógica das reportagens é sempre muito semelhante: seus autores começam apresentando inúmeros dados sobre a mortalidade feminina decorrente da prática clandestina do aborto e classificam como desastroso o nascimento de filhos não desejados ou planejados (…). Os exemplos negativos (referentes ao aborto) são sempre associados às mulheres que, por medo ou por insistência familiar, não realizaram o aborto e que, por causa dessa escolha perderam seus empregos, não estudaram e foram abandonadas por seus maridos ou namorados” (TEIXEIRA, 2016, p. 97 e 98).
A lógica pró-aborto da IURD traz uma narrativa extremamente racional e vale a pena acompanhá-la: a família, célula central da sociabilidade crente, tem mais chances de ser próspera e eficiente se o número de filhos for reduzido. Menos gastos, mais tempo à família. Essa afirmação não é uma suposição, a Igreja demonstra em seus materiais de divulgação dados que comprovam esse argumento. Além disso, o crente teria mais tempo, com pouco ou nenhum filho, para se dedicar com maior disposição às tarefas da Igreja. Na prática, a IURD patrocina vasectomias para seus líderes – muitos deles com apenas um filho ou sem nenhum filho, defende o aborto como uma escolha da mulher (ou defendia, dado que o campo conservador religioso que está hoje no poder não apoia a descriminalização do aborto e é muito provável que Edir Macedo, bispo e fundador da IURD, não vai comprar essa briga) e imprime em seus fiéis a necessidade de se prevenirem de uma gravidez indesejada. O que buscamos trazer dessa narrativa vai além do impacto ou a surpresa que causa essa informação, mas refletirmos o que isso quer dizer para as mulheres crentes. A fé racional, defendida por Edir Macedo, base de sua metodologia, e um princípio protestante, vai muito além da visão de um grupo amorfo que caminha cegamente rumo ao seu líder. A construção do “ser crente” dentro da Igreja é fruto de uma disciplina, dedicação e sacrifício impostos por uma pedagogia pentecostal por meio de um arcabouço de instrumentos que a afirmam e a reafirmam exaustivamente – reuniões, atividades pontuais, grupos de jovens, de mulheres, de casais, jornais, revistas, músicas, rádios, mensagens diárias – quase sempre exigindo uma contrapartida que não é só financeira, como muitos supõem, mas de entrega, e, segundo a lógica pentecostal, quanto mais entrega, mais bênçãos. Para isso, há de se ter a maior dedicação possível.
Essa disciplina da mulher crente está imbricada com a ideia de submissão e de reorganização da vida desestruturada onde o casamento é a baliza da felicidade. Se o casamento vai bem, segundo essa lógica, a família cria um alicerce que garante que as outras instituições se mantenham de pé. Para isso, há um investimento nesse corpo crente, no caso da IURD, na construção cotidiana do “ser mulher” do ponto de vista estético, emocional e espiritual. Na verdade, o espiritual acaba sendo uma consequência dos aspectos anteriores. A submissão, para a IURD, se circunscreve em ações cotidianas bastante práticas e didáticas como “ter uma aparência agradável, cuidar de si mesma para agradar o marido (…) Ser eficiente na administração do lar (…). Dar assistência espiritual ao marido (…). Ter equilíbrio, cuidar das coisas da Igreja e do lar (…). Ela cuida da saúde do marido, prepara refeições saudáveis usando a criatividade pois está sempre querendo fazer algo novo para surpreendê-lo” (TEIXEIRA citando Cris Cardoso. p. 152-153). Para dar conta de tudo, a Igreja oferece cursos e formações em seus espaços sobre diversos assuntos que permeiam esse universo “feminino” em suas diversas realidades e especificidades: para solteiras, casadas, crianças, jovens, adultas.
A rigidez, disciplina e sacrifício impostos pela submissão certamente devolvem para esse crente algum benefício a ponto de, muitas vezes, não haver um questionamento profundo sobre suas ações. Rubem Alves traz, a partir da psicanálise, elementos para essa reflexão: o que faz alguém voluntariamente aceitar a repressão? Negociações internas e disputas entre vantagens e desvantagens são cálculos dessa aceitação:
Ninguém aceitaria a repressão se ela não trouxesse certas vantagens laterais. O fato é que a liberdade tem, frequentemente, um custo emocional maior que a dominação ao que o indivíduo está sujeito na vida institucional (…) É a linguagem proibida, linguagem da rebelião contra a verdade, que deve ser confessada como pecado. O discurso contra a repressão só se torna audível quando as novas realidades vitais já se impõem de tal forma que o custo da repressão é maior que o custo do protesto contra ela (ALVES, 1982, p. 45).
Quais vantagens são essas? Quais respostas estão sendo resolvidas? Por que o resultado do cálculo entre submissão e liberdade beneficia a primeira? Quais os nós e fissuras dos discursos fundamentalistas podem ser desatados e evidenciados a partir da realidade concreta da vida da trabalhadora crente? Como transformar “o discurso contra a repressão” em algo “audível” para as mulheres?
Luana, assentada no município de Promissão, estado de São Paulo e frequentadora da Assembleia de Deus, em sua entrevista nos contou que era muito dedicada às ações do MST, realizando constantemente o trabalho de base, chamando os companheiros para as reuniões, mas com o nascimento do filho, que criou sozinha, se afastou da militância e encontrou na Igreja seu espaço de atuação.
Eu já amava fazer as coisas de ajudar, ajudar as pessoas, depois da Igreja eu passei a gostar muito mais, é gostoso ver as pessoas sorrindo, ver as pessoas felizes, antes eu já gostava, por que era gostoso ir para a cidade, chamar para uma reunião, convidar para conquistar uma terra. Cê via a felicidade no rosto da pessoa, eu não faço mais assim, faço na Igreja, mas não quer dizer que é a mesma coisa, mas o significado é o mesmo, o sentimento é o mesmo (LUANA, MST-SP).
Ainda que em nossa conversa Luana demonstre uma gratidão explícita ao MST, dado que foi ali que ela conquistou sua terra, sua casa e que aprendeu muito sobre a realidade que vive, ela reclama das ausências, dos possíveis vazios que devem ser preenchidos em seu assentamento. Sua narrativa pode ser uma chave de explicação para compreendermos por que algumas mulheres passam a se dedicar mais às Igrejas do que à militância política, mesmo inseridas em um movimento como o MST:
Não tem projeto no assentamento que eu tô, não tem projeto para mulher, não tem projeto para jovem, não tem projeto que incentiva… (Na Igreja tem?). Na Igreja tem, tem o grupo de jovens que eles participam, eles se juntam lá, nois quer reunir todos os jovens, nois quer fazer um piquenique em tal lugar, nois quer fazer isso… então na Igreja tem, faz muita diferença, então no assentamento se tivesse um esporte, um lazer para reunir os jovens, porque assim você vai conversando, vai incentivando eles de fazer as coisas(LUANA, MST-SP).
A dirigente Lucineia Freitas, coordenadora nacional do setor de gênero do MST, segue o mesmo caminho de Luana em sua reflexão:
Uma dessas questões são os espaços de sociabilidade. Nas áreas de assentamento não tem espaço de sociabilidade que não seja o boteco, sabe? Então, para quem não vai para o boteco, o único espaço que sobra para conversar, dialogar, estar em público, para expor, é o espaço da Igreja. E aí a gente vê muito que tem famílias que o marido tá no boteco e a mulher tá na Igreja, porque o espaço de sociabilidade dele é no boteco e o espaço dela é na Igreja (LUCINEIA, dirigente MST-RJ).
Não queremos neste momento fazer uma análise crítica das ações das Igrejas nos territórios – compreendemos, como buscamos tratar ao longo dos textos, o papel das Igrejas na manutenção do status quo e das narrativas opressoras e fundamentalistas que atingem principalmente as mulheres. No entanto, não podemos ignorar o fato de que para além da necessidade de um espaço para viverem sua espiritualidade, as mulheres muitas vezes têm encontrado somente na Igreja um espaço de acolhimento e respostas às suas dores mais profundas e cotidianas:
Sobre a referência do pastor nos casos de violência doméstica: ao mesmo tempo que ele fala para a mulher “suporta”, ele conversa com o marido. Tem uma inserção na família, que a gente não foi percebendo. Era pra gente mesmo ir construindo organicamente e a gente cumprir essa função, ou entrar junto com as Igrejas cumprindo essas funções que a Igreja vem cumprindo(Lucineia, dirigente MST-RJ).
Tampouco iremos “jogar o bebê fora junto com a água”: queremos trazer a reflexão de que o trabalho realizado pelas Igrejas nas periferias tem sido essencial para um povo que grita por socorro e cujo grito muitas vezes ressoou no “vazio”. É fundamental adentrarmos nesses territórios ocupados, compreendendo a metodologia de trabalho para dialogar com a classe trabalhadora que está ali imersa, sejam os fiéis, sejam os pastores e pastoras das pequenas Igrejas. É fundamental também pensarmos quais respostas que nossas organizações estão dando para as demandas objetivas e subjetivas de nosso povo. Temos também que ter a humildade de dizer que esse é um campo novo para a esquerda e que, ainda que nossa história seja permeada pela junção entre fé e luta, uma nova narrativa deverá ser construída no diálogo com os pentecostais. O que fazer?
Variações sobre a Bíblia: “O que tá na Bíblia, tá na Bíblia.”
É impossível pensar nesse diálogo sem a Bíblia. Nesse tópico, emprestamos o termo “variações” de Rubem Alves. Em diversas vezes o teólogo e pedagogo utilizou o termo, como nas variações musicais, para representar as polifonias dentro do pensamento teológico, várias vozes, várias interpretações. O texto sagrado, ou texto da religião, é fruto da cultura. E pensar a Bíblia no contexto do Brasil é lidar com a multiplicidade de narrativas, disputa interpretativa e a relação mágica com o objeto-Bíblia.
Um primeiro ponto de compreensão é o que a Bíblia se tornou para os protestantes-evangélicos, e para isso, é necessário retomar brevemente um pouco a história do protestantismo e suas raízes teológicas. A Reforma Protestante de Martinho Lutero, em 1517, alterou a relação dos cristãos com a fé, a começar por um dos princípios fundantes da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes, ou seja, todos e todas têm acesso a Deus sem mediações, seja por pessoas ou instituições.
Outra grande contribuição é o livre exame da Bíblia, – Sola Scriptura (somente a Escritura) – após a insistência de traduções em diversas línguas, cada crente tinha o acesso a interpretação das Escrituras e leituras individuais. Entretanto, por mais que isso significasse múltiplas interpretações, e uma religião mais individualizada e focada no privado, o que também aconteceu foi a criação de uma “ortodoxia” e doutrinas inspiradas, majoritariamente, nos escritos atribuídos ao apóstolo Paulo. Formulada em inúmeras confissões de fé, na tentativa de abarcar a sã doutrina, a fé cristã protestante passou a ser caracterizada pela intelectualidade e a razão da fé. Para Rubem Alves:
A preocupação com a confissão correta chegou a se tornar obsessiva, produzindo um período que veio a se denominar “ortodoxia protestante”. A fé chegou mesmo a se identificar com a adesão intelectual a um certo número de proposições dogmáticas que, pretendia-se, expressavam o “sistema de doutrinas” contidas na Bíblia, e que eram necessárias para a salvação (2004, p. 71).
Não temos a pretensão de retomar os desdobramentos do protestantismo e suas doutrinas nesse texto, mas é importante ter em mente esses pontos para compreender as leituras bíblicas que hoje vigoram. A partir dessa preocupação com a doutrina, o protestantismo se tornou uma religião da eterna guerra e milhares de cisões por conta da verdade. O binômio heresia e ortodoxia opera até hoje, e essa é uma das razões, acompanhada de politicagem, para que haja inúmeras Igrejas protestantes/evangélicas crescendo e multiplicando-se a cada instante.
A partir do Iluminismo surge o método histórico-crítico, que visava investigar todo o contexto social e histórico em que os textos foram escritos, para poder interpretar as Escrituras.Para muitos, isso desafiava a autoridade da Bíblia, visto que, um dos princípios do protestantismo reformado é que a Bíblia interpreta a própria Bíblia. As leituras fundamentalistas protestantes nasceram num chão repleto de curto-circuitos e (des)entendimentos acerca da Bíblia. Esse processo reacionário dos avanços técnico-científicos criou inúmeras discussões, principalmente entre presbiterianos e batistas nos Estados Unidos que defendiam a interpretação literal, e culminou na publicação Fundamentalism, por James Barr. Esse livro tinha o objetivo de combater a relativização da Bíblia com os seguintes princípios e ações: i) inerrância da Bíblia, ou seja, não possui nenhum erro; ii) hostilidade contra os métodos, análises e resultados da teologia moderna, que ficou conhecida como teologia liberal protestante; iii) e a convicção de que quem não segue a mesma visão, interpretação bíblica, não são verdadeiros cristãos (CAMPOS, 2020, p. 87). Diria Nancy Cardoso que o fundamentalismo é o fim da interpretação, claro, pois se tudo já está dado, não há pensamento novo a ser feito, sendo que tudo o que é novo, que traz outras abordagens é heresia. Rubem Alves diz que assim, “o fundamentalismo […] constrói um mundo estável e fixo, dominado por certezas, e quem quer que ali penetre verá todas as suas dúvidas terminadas” (ALVES,2004, p. 72).
Entretanto, o processo de leitura é um jogo em que o autor/a dá caminhos, oculta fatos, nomes, instiga a imaginação, mas é o leitor/a que interpela esse escrito com suas experiências, outras leituras, com seu corpo. Quem defende a leitura a partir de apenas um viés interpretativo não compreende o processo de leitura e a experiência fluída do texto. O espaço e tempo do texto sagrado são distintos do leitor/a, a troca, negociação, adaptação, complementos que o leitor/a faz modificam o texto para torná-lo relevante a seu tempo. Um texto sagrado não continua sagrado se não se adapta às diversas leituras dos/as leitores/as (TOSTES, 2017). Assim se dá a hermenêutica, a interpretação do texto, o desvelamento do(s) significado(s) e sentido(s) da mensagem. Ivone Gebara define hermenêutica como “o conjunto de operações que utilizamos na tarefa de compreender um texto, de aproximá-lo de nós, sobretudo quando se trata de um texto cronológico e culturalmente distante da atualidade” (1991, p. 27).
Quando pensamos no fenômeno do Pentecostalismo, embora haja a importância da Bíblia, há diferenças nessa relação com as Escrituras. David Mesquiati Oliveira aborda essa hermenêutica pentecostal e traz elementos para essa construção, o primeiro a ser destacado é a experiência, diferentemente do protestantismo reformado. Para o autor:“A via preferida pelos pentecostais não se dá por meio da escolarização ou da intelectualização da fé, mas por meio de experiências místicas com o texto (diretamente ao sujeito), que é entendido como Palavra de Deus direta ao indivíduo e à comunidade” (OLIVEIRA, 2017, p. 128). Nesse sentido, para os pentecostais o texto sagrado é trazido para a vida cotidiana, “criando uma relação pessoal direta” (OLIVEIRA, 2017, p. 130). A pesquisadora Christina Vital, em seus estudos sobre o tráfico, periferia e pentecostalismo descreve os territórios das comunidades repletas de versículos bíblicos espalhados como graffiti pelas paredes (2015). Para as mulheres evangélicas entrevistadas, a Bíblia é um fator de grande importância, inclusive para a escolha das Igrejas. Silvia, MST-GO, da região de Formosa, nos conta o motivo que a levou a mudar da Igreja Tabernáculos da Fé para a Igreja Alimento da Alma:
Na minha família são todos católicos, católicos mesmo, com o tempo eu conheci Tabernáculos da Fé que é uma Igreja conhecida, muita gente conhece, eu fiquei lá por 20 anos aí como a gente estuda muito a Bíblia, a gente foi conhecendo coisas diferentes, né? Que era mais real na Palavra de Deus, aí hoje estou com três anos na Alimento da Alma por que ela é muito dentro da Palavra, sabe? Ela é uma congregação muito dentro da Bíblia de verdade, assisti o culto dela, gostei, fiz muitas visitas nas outras congregações, mas a gente considera tudo como irmão por parte de Adão e Eva, somos todos irmãos (Silvia, MST-GO).
Quando observamos atentamente as falas das companheiras evangélicas do MST, encontramos essas variações protestantes que tocam o pentecostalismo e a experiência, mas também, trazem dentro do discurso religioso o fundamentalismo bíblico, pois muitas vezes compreendem que há apenas uma leitura, uma interpretação da Bíblia. No nosso segundo texto pudemos ouvir um pouco do desconforto das companheiras sobre as temáticas de gênero e sexualidade. O exemplo citado ilustra a dificuldade que é dialogar com o texto religioso. Para Eliza, MST-GO, a “religião tem todo aquele processo de que você não pode isso, não pode aquilo, porque é o que tá na Bíblia, né? Mesmo que vem questionamentos, mas o que tá na Bíblia tá na Bíblia. O verdadeiro… Eu acho assim… que é bem complicado explicar isso…”. Rosa Maria, do Pontal do Paranapanema, diz:
Agora, o que acontece é que existem algumas coisas que são contra a Palavra de Deus, e nessa parte os movimentos não se dão a entender. Tem coisas que são meio assim, e acho melhor nem falar, como é uma gravação, pode criar um tumulto e outras coisas. Hoje existe lei pra esse tipo de coisa, é o que eu falei, todo mundo tem o direito de ser quem quer, só que vai arcar com a responsabilidade. É isso que quero dizer…(Rosa Maria, MST-SP).
As contradições e ambiguidades fazem parte da religião. Mas o que é e o que está na Bíblia para essas mulheres? A companheira Paula, de Minas Gerais, tem uma fala importantíssima sobre sua visão:
A Bíblia pra mim são testemunhos dos antepassados, de homens e mulheres, que tiveram uma convivência mais próxima com Deus […] Eu acredito que sejam testemunhos e relatos verdadeiros de pessoas que tiveram vidas próximas, conta história que o povo passou na mão dos reis que achavam que tinha poder sobre tudo[…] Então, eu acredito que tem vários tipos de interpretação da Bíblia (Paula, MST-MG).
A noção de Bíblia como testemunho pode ser encontrada nas reflexões do pensador francês Paul Ricoeur, e tem ecos latino-americanos na teologia feminista de Ivone Gebara. Em resumo, todo testemunho, assim como no campo jurídico, deve ser julgado e avaliado, da mesma maneira, os testemunhos bíblicos devem ser analisados de acordo com a realidade presente. Mas essa visão não é normatizada pelas evangélicas entrevistadas, Eliza acredita que: “Sempre vai ser um significado só. A gente pode ler de um jeito, de outro, de outro, mas um significado só”. Entretanto, as contradições aparecem em outros momentos da entrevista: “A Bíblia também vem uma forma de controle, se você não fizer assim você não vai pro céu. Mas eu acho assim, gente, que a gente não vai para o céu por tantas outras coisas também. O principal: amar o próximo como a ti mesmo” (Elisa, MST-GO).’
Como já mencionado, a partir de Mesquiati Oliveira, a experiência é o que faz a Bíblia ganhar outros significados. A experiência marcada pela espiritualidade e mística pentecostal faz o texto ganhar “vida” para essas mulheres: “Deus vai falar com você através da palavra”, diz a companheira Rosa Maria. A Bíblia, “assim, não se trata apenas de um livro (uma coisa), mas, performaticamente, é percebido como Deus falando-lhes por meio do texto” (OLIVEIRA, 2017, p. 131). A dirigente Atiliana do MST-MS e do Setor de Gênero nos diz:
As evangélicas levam a Bíblia, fazemos encontro com as mulheres e a Bíblia está sempre junta. Aquela leitura diária, tem isso, direcionamento do seu dias, de condução de vida para as mulheres que são evangélicas. Mas o interessante, o importante é que elas estão lá nos acampamentos, estão lá nas ocupações, fazendo a luta, com a Bíblia, estar com esse livro é força para ela e a gente podendo avançar na compreensão do sistema com a Bíblia na mão, não tem porque dizer: joga fora essa Bíblia, por que esse livro, em algum momento, deu muita força para ela (ATILIANA, MST-MS),
Ainda acompanhando a partilha de Rosa Maria, ela nos disse que é preciso ter intimidade com Deus:
Eu sempre gostei muito de ouvir a Palavra, se você começa a ter intimidade com Deus, você passa a ver o outro lado que você não conhece. As pessoas falam que Jesus não fala, Jesus fala, eu ouvi quantas vezes a voz de Deus para livramento, para cura, se colocava no meu coração eu ouvia a voz “ore por tal pessoa”, é bem lindo (Rosa Maria, MST-GO).
E é a partir dessa espiritualidade misturada com a vida cotidiana da luta, fé e terra que as mulheres vão encontrando interpretações, criando sentidos textuais, que podem e devem dialogar com a tradição hermenêutica latino-americana de resistência, que fala sobre terra e libertação.
Hermenêutica da terra, as mulheres e o chão: “ Eu também posso!”
A experiência de fé das mulheres evangélicas do MST se passa pela luta pela terra dentro do movimento, como já trouxemos na primeira e terceira partes de nosso texto, e a leitura da Bíblia, permeada de contradições, também. Conforme já abordamos, dentro do Movimento a “Igreja passou a ser um elemento fundamental de apoio à luta, partindo do princípio de que viver o evangelho não era apenas viver em busca de uma dimensão espiritual, mas viver o evangelho se encontrava também no engajamento político, apoiando a luta pela libertação dos oprimidos” (PEDRA, 2019). É importante, nesse momento de avanço dos fundamentalismos entre as Igrejas, católicas e evangélicas, e a expansão do neopentecostalismo entre a classe trabalhadora urbana e rural, o resgate das hermenêuticas da terra e de libertação. Entretanto, como Mariátegui nos aponta, em um escrito de 1928: “O passado nos interessa na medida em que pode nos servir para explicar o presente. As gerações construtivas sentem o passado como uma raiz, como uma causa. Jamais como um programa”.
A tradição latino-americana da Leitura Popular da Bíblia, a partir da Teologia da Libertação, foi construída a muitas mãos, mãos do povo, daqui e de fora, de gente compromissada com gente. Nomes como Carlos Mesters, Milton Schwantes, Nancy Cardoso, Maricel Mena Lopez, Francisco Orfino, Odja Barros, entre outras pessoas, pensaram/pensam como realizar leituras bíblicas libertadoras e conscientizadoras; e também instituições como o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular) contribuíram para essa construção, o continuam nesta empreitada até os dias de hoje. A Leitura Popular da Bíblia (LPB) surgiu a partir dos encontros populares e das comunidades eclesiais de base (CEBs) na tentativa de encontrar correlações bíblicas para a história do povo sofrido. A LPB possui método de leitura que consiste na tríade: Realidade – conviver com o povo, aprender o que eles sabem, ser povo; Bíblia – trazer a BBíblia para o diálogo com o cotidiano, para a realidade, e buscar respostas; Comunidade – partilhar o pão, a vida, através da transformação comunitária da realidade (SANTOS, 20210, p.26).
Os esforços foram grandes, igualmente as resistências, mas quando pensamos nesse caminhar latino-americano da Leitura Popular da Bíblia e da Teologia da Libertação, não podemos esquecer as investidas contra o povo construindo a sua própria fé. Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental, nos mostra essa ofensiva imperialista e cristã no continente latino-americano contra a Teologia da Libertação: “Seitas protestantes, particularmente aquelas com raízes estadunidenses (…) pregavam o evangelho da empresa individual e não da justiça social” (2020, p. 101). O lema “seja patriótico1, mate um padre” foi levado ao pé da letra em El Salvador, quando em 1977, Rutilio Grande, padre jesuíta, foi assassinado pelas forças de segurança salvadorenhas. Na década de 70, junto à CIA, a inteligência boliviana construiu um dossiê contra os teólogos da Teologia da Libertação. Na década seguinte, o governo dos EUA estreitou laços com a Igreja Católica e, no mesmo período, o Papa João Paulo II esteve na revolução nicaraguense atacando os padres progressistas. No Chile, 32 Igrejas pentecostais celebraram o golpe de Pinochet contra o socialista Salvador Allende, afirmando que o golpe “foi a resposta de Deus às orações de todos os crentes que reconheceram que o marxismo era a expressão de um poder satânico das trevas” (2020, p. 102).
Com isso, o campo progressista religioso e teológico foi tendo outros contornos, e alguns deles distanciaram-se do povo. Como alerta a pastora e teóloga Odja Barros Santos, “os estudos bíblicos feministas estão se tornando cada vez mais elitistas e academicistas, distantes das camadas populares e das bases eclesiásticas” (2010, p. 13). Dessa forma, os espaços vazios da espiritualidade popular foram sendo preenchidos de leituras fundamentalistas, conservadoras e opressoras que tomaram os territórios periféricos e rurais. Através das leituras bíblicas libertárias, homens e mulheres da classe trabalhadora podem “tomar consciência das estruturas de dominação inseridas no texto bíblico, nas interpretações e transmissões, bem como nas estruturas sociais, políticas, econômicas e eclesiais nas quais estamos inseridas.” (SANTOS, 2010, p. 14).
Dessa forma, compreendemos que a neutralização das leituras fundamentalistas, das Igrejas conservadoras, e da fé que ganha contornos políticos não basta. Neutralizar já não é uma alternativa, pois esses discursos se tornam uma “verdade absoluta, dogmática, que vai muito além da religião, [pois] ela constrói modelos de vida políticos, econômicos e sociais.” (TOSTES, CORAZZA, 2021, p. 230). A disputa hermenêutica é necessária. Entendemos por disputa hermenêutica o alargamento das formas interpretativas da Bíblia a partir das teologias contextuais desenvolvidas nos últimos anos, como as teologias feministas, mulheristas, asiáticas, negras, queer etc. A Teologia da Libertação e a Leitura Popular da Bíblia da década de 70 nos auxiliam a compreender a história de Nuestra América, mas não dão mais conta da complexidade e nuances da sociedade do século XXI. Como Mariátegui nos avisa, temos que aprender, mas nunca como um programa para, na linguagem de hoje, “copiar e colar”. Antes, dar a continuidade criativa na relação dos movimentos populares e os companheiros e companheiras de fé, que também se encontram na mesma trincheira da luta de classes, buscando novas formas de se relacionarem com o Sagrado a partir da transformação social no aqui e agora.
A partir desse percurso, observamos nas falas das mulheres visões de como a fé é assunto do chão, como a fé e a leitura da Bíblia é inspiração para a luta pela terra. Quando as mulheres se colocam em movimento, seja na Igreja ou no MST, as coisas vão mudando, vão adquirindo outros ritmos, outras texturas. Helena, da Assembleia de Deus e acampada em Goiás, diz: “Eu acho, assim, que a pessoa tá na fé por um objetivo, que é a Reforma Agrária para ter a sua terra, para que cada um tenha seu pedaço de chão. E eu acho que incluindo isso junto com a fé é mais fácil para alcançar”.
As nossas companheiras, mesmo frequentando Igrejas tradicionalistas e com discursos fundamentalistas, encontram, ou melhor, reencontram uma fé e religiosidade popular que busca uma vida digna. Para elas, esse Deus não está longe, mas perto. Rosa Maria justifica a luta dizendo:“Porque a terra é bíblica.” E continua: “E Deus fala assim, é… salmo 24, do Senhor é a terra e toda sua plenitude, e o Senhor dá a terra aqueles que lutam. Deus entrega a terra para quem tá na luta. Agora o Estado e o Capital é que embaraçou tudo.” Em outro momento da entrevista, Rosa Maria repete o mesmo versículo bíblico, e questiona ainda mais a relação com o capitalismo:
E na questão da terra, ele fala assim, do Senhor é a terra e toda a sua plenitude. Se a terra é de Deus ele dá para quem ele quiser. O homem quer tomar a terra na marra, ele mata para tomar a terra, e a terra ele dá de graça. A água Deus dá de graça. E se não faltar muito, o homem quase quer cobrar o sol. Que vem os raios na placa solar e tão vendo como cobrar? Como cobrar uma coisa que vem de Deus? Essas coisas que o homem faz, esses avanços, de querer passar por cima de tudo, essa ambição… isso não é bom! (Rosa Maria, MST-GO).
Essa relação simbiótica entre o capitalismo e a religião protestante foi tema de interesse de Karl Marx, havendo mencionado por diversas vezes na obra O Capital, apontando como o protestantismo contribuiu para a “acumulação primitiva de capital” (LOWY, 2016, p. 37). Essa ideia vai de encontro com o pensamento de Max Weber na obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. E vale notar a linguagem mítico-religiosa de Marx, como aponta Michael Löwy:
Por outro lado, Marx muitas vezes se referia ao capitalismo como “religião do cotidiano” baseada no fetichismo da mercadoria. Descreveu o capital como “um Moloch que exige o mundo inteiro como sacrifício a ele devido” e o progresso capitalista como “um monstruoso deus pagão que só quer beber néctar nos crânios dos mortos” (LÖWY, 2016, p. 37).
Assim como as companheiras fizeram essa reflexão, a teóloga e agente da CPT Nancy Cardoso aponta que:
O capitalismo é o fundamentalismo econômico contra a terra, sem a terra, apesar da terra reduzida a “meio de produção”, forma básica de renda e acumulação. No Brasil, não podemos perguntar pela reforma agrária, por outro modelo agrícola. Os fundamentos fundamentais do capitalismo paralisam a interpretação e os meios de comunicação pedem que as maiorias sem-território observem, decorem, repitam, cumpram, obedeçam às verdades eternas da propriedade privada (CARDOSO, 2017).
As hermenêuticas das mulheres que entrevistamos trazem questões concretas, e não está preocupada com dimensões dogmáticas, embora haja um zelo pela espiritualidade e a Bíblia. Essas questões concretas desse cotidiano, já tão explorado em nossos textos, transformam esse Deus em um cúmplice na trincheira da luta por terra. A companheira Rosana, de Santa Catarina, fala dessa mistura de aprendizados com a Bíblia e o MST: “Eu aprendi dentro do MST que a gente tem que lutar, por que a Bíblia também diz que não precisa aceitar tudo o que vem, que está nos seus olhos, a palavra de Deus diz, nem tudo me convém”. A companheira em seu desabafo compartilhou a luta que está enfrentando com outros companheiros do movimento:
A gente está lutando para conquistar o lote. E eu acredito que, em nome de Jesus, a gente vai conseguir, porque se Deus falou, tá falado. Em uma assembleia, eu disse para as pessoas, eu só vou sair daqui quando Deus disser que é para eu sair, porque eu acho que quando Deus determinou uma coisa não é para a gente fracassar, é para a gente ter esperança. Esse tempo que a gente tá passando agora é um tempo já predito em muitas profecias, então, dentro da Igreja, não é só eu falando, mas muitas outras profecias, que haveria uma mudança muito grande e as pessoas não conseguem adquirir isso, só que dentro disso eu acredito que tá sendo uma aprendizado para todos nós hoje e quando mudar isso, muitas portas vão se abrir, sabe? Muita coisa boa vai acontecer (ROSANA, MST-SC).
O processo de leitura e interpretação de um texto é um exercício de falar da própria realidade do/a leitor/leitora. Recontar a vida através dos textos bíblicos, através da fé. Ao trazer essa corporeidade ao texto, Rosa Maria encontra uma dimensão espiritual na luta pela terra, algo além do material e conta com o auxílio divino para tal:
Por isso que falo para você: existe a questão da luta pela terra, não é apenas uma luta material, é uma luta espiritual. Porque já vem desde o tempo do Senhor, e essa luta não acaba. Vai ser uma luta constante. Vamos supor, mesmo que esse governo aí não libere essas terras aí agora, mas vai entrar um governo que pode entender e liberar as terras, porque é bíblico! A luta pela terra! Porque já teve aquelas lutas, bíblico que eu falo é assim: pessoas que lutaram para conquistar as suas terras, e hoje a gente continua a luta para conquistar mais terra, a nossa terra (Rosa Maria, MST-SP).
As mulheres evangélicas entrevistadas trazem a palavra luta em seu vocabulário. E com essa palavra dançam em suas interpretações bíblicas, encontrando no texto de milhares de anos atrás, com inúmeras marcas de violência física e simbólica contra a mulher, as vozes silenciadas das mulheres no contexto bíblico, mulheres que possivelmente também tinham a palavra luta no seu cotidiano. E essa identificação é quase imediata, e é o que promove ainda mais o gosto e o empoderamento dessas mulheres através da fé, pois o resgate da “história das mulheres não simplesmente como uma história de opressão das mulheres pelos homens, mas como história do agir histórico das mulheres e de suas lutas contra a subordinação e a opressão” (SANTOS, 2010, p. 40) dentro do contexto bíblico. A dirigente Lucineia nos traz a importância desse resgate para a construção do diálogo entre o Movimento e sua base:
Eu acho que a gente tem que disputar a perspectiva religiosa, sabe? Não é formar pastores, ir para a Igreja, mas como a gente entende a leitura a partir da Bíblia, para ajudar, por exemplo, as mulheres a se libertarem da violência. Na Bíblia, no antigo testamento, tem os livros das mulheres, têm uma delas que mata o rei. Como a gente resgata essas mulheres? Trazer essa mulher para dialogar. Hoje as evangélicas são a maioria, e elas vão agir a partir do que tá na Bíblia, e não se apropriar nessa leitura a gente não chega nelas e a gente vai querer que elas cheguem na gente, e elas não vão.
A companheira da Assembleia de Deus Belém,Luana, de Promissão-SP, disse que gosta de ler a Bíblia: “Eu adoro ler, tanto que eu até trouxe minha Bíblia. Eu tento ler a Bíblia todo dia, mas tem dia que eu não leio”. Ela nos conta uma das suas histórias preferidas:
Eu gosto da história de Rute e sua sogra Noemi […]. A Rute voltou para Israel, passou dificuldade com a sogra, mas não abandonou ela, era um amor de verdade de uma pessoa pela outra, de cuidar. Aí, ela foi escolher as espigas que caiam, elas eram pobrezinhas de pobrezinhas.O que aconteceu?O dono da roça se apaixonou por ela, ela casou e assim ela pode ajudar muitas outras mulheres que passaram pelas mesmas coisas.Então eu falo que é uma história bonita, uma história de sofrimento, mas que ela não desistiu, passou dificuldade, cuidou da sogra e foi honrada na frente, se deu bem, conseguiu ajudar, foi mãe de um dos grandes… que foi o Boas. Eu gosto porque são de lutadoras, eu gosto (Luana, MST-SP).
Interessante essa ser a história que Luana nos conta, uma história de duas mulheres, que frente à viuvez e pobreza se unem, mesmo diante das diferenças culturais e religiosas, para encontrar estratégias de sobrevivência na luta para conquistar seu próprio sustento (Rt 2:7). O livro de Rute é um dos poucos textos bíblicos nos quais as mulheres “aparecem vinculadas e em solidariedade entre si com um forte vínculo afetivo”(CANDIOTTO, 2015, p. 211). Seguindo essa inspiração, Luana termina sua fala sobre a Bíblia dizendo: “A luta na Bíblia… tem muitas mulheres que lutaram, foram juízas, defenderam seu povo, tem camponesas, na Bíblia, eu também posso.”
Neutralizar não é uma opção: “Tanto o Movimento quanto a Igreja nos ensinam a lutar!”
Quando fomos ao Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra tínhamos uma tarefa específica – captar o trabalho de base realizado nas Igrejas e como esse trabalho era traduzido pelas vozes das mulheres evangélicas Sem Terra. Nas entrevistas, e depois de participarmos de alguns espaços de debate da militância que tem atuado nos territórios, pudemos refletir sobre a necessidade do diálogo direto com pastores, pastoras e fiéis, para além de compreender a metodologia do trabalho de base realizado nas Igrejas – fundamental para a disputa. Mas o que queremos dizer sobre esse diálogo?
O revolucionário Lênin, em seu texto “Socialismo e Religião”, de 1905, afirma que não se deve declarar o ateísmo no programa do Partido Bolchevique e que com o avanço da luta de classes, visões “mágicas” sobre a realidade se dissiparão e as análises científicas serão a possibilidade real e concreta de leitura do mundo. “O proletariado moderno coloca-se ao lado do socialismo, que integra a ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os operários da fé na vida de além-túmulo por meio da sua união para uma verdadeira luta por uma melhor vida terrena” (Lênin, 1984). Na América Latina, essa visão teve novos contornos e como vimos, a Teologia da Libertação foi elemento propulsor da construção dessa melhor vida terrena que Lênin construiu a partir da Revolução.
O Dossiê no 37 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social “Amanhecer: Marxismo e Libertação Nacional” traz uma importante reflexão sobre o enraizamento do Marxismo na América Latina, Ásia e África, um convite para compreendermos a nossa realidade a partir de teóricos fundamentados no método histórico dialético e por isso, em diálogo direto com as distintas realidades desses continentes:
José Carlos Mariátegui (1894-1930) escreveu em Aniversário e balanço (Revista Amauta, 1928): “Não queremos, certamente, que o socialismo seja, na América Latina, decalque nem cópia. Deve ser criação heroica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Aqui está uma missão digna de uma nova geração”.
Dentro dessa perspectiva, Cuba tem muito a nos ensinar sobre as possibilidades de avanço no diálogo entre a construção da Revolução e a junção entre fé e luta. Após um momento inicial, muitos religiosos que permaneceram em Cuba não se sentiam, de fato, parte do processo revolucionário, dada a resistência do Estado às Igrejas, fruto de uma leitura ainda limitada do tema pelo marxismo europeu e também pela origem estadunidenses das Igrejas evangélicas no país. Essa resistência ainda era muito presente na década de 70, mas lentamente se foi abrindo espaços para uma nova perspectiva de atuação conjunta entre Igreja e Estado. Segundo a Teóloga cubana Gisela Pérez :
Al paso de los años, la Revolución se dio cuenta que, aunque nuestras iglesias eran hijas de la Iglesia norteamericana, eran cubanas, que no todos los líderes pretendían irse ni estaban interesados en hacer contrarrevolución (…). Después de tantas horas de debate él (o presidente cubano Fidel Castro) reconoció que, efectivamente los evangélicos habían sido discriminados y dijo que haría todo lo posible para que eso se enmendara (Massón, 2006, p. 102-103).
Fidel Castro e os membros das Igrejas sabiam que esse processo não seria fácil dada a formação antirreligiosa de boa parte dos membros do Estado, mas, com o avanço do diálogo, as tensões iniciais da Revolução abriram espaços para um aliança estratégica entre Estado e Igreja, principalmente com as Igrejas evangélicas. Em entrevista para Frei Betto, realizada em 1985, Fidel afirma que ao observar, percebia que os evangélicos tinham um compromisso forte com a população mais humilde, além de terem uma disciplina militante em suas Igrejas. A pesquisadora cubana Caridad Massón afirma que o aspecto inicial antirreligioso da Revolução passa a mudar a partir da década de 80 fruto de ações pró revolucionárias de religiosos cubanos e também pela Teologia da Libertação que avançava em toda a América Latina, sendo assim, não era mais possível ignorar a força social do segmento religioso em nosso continente.
A experiência Cubana e as reflexões de Mariátegui nos trazem o desafio de pensar as estratégias do campo popular a partir de nosso chão, da nossa história, das religiosidades dos tantos povos que nos pariram. No Brasil, a relação entre fé e luta não segue um caminho linear ou não está totalmente resolvida para o campo progressista, como pudemos trabalhar em nossos textos. O que podemos afirmar é que ignorá-la, de fato, não é uma opção, dado, principalmente, o crescente número de fiéis que são da classe trabalhadora mais empobrecida dos nossos campos e cidades:
um grande público nosso é evangélico, o MST não está fora da sociedade, somos produtos dessa sociedade. Como há uma onda crescente de evangélicos na sociedade, no MST também vai ter. Se a gente se afastar desse processo da religião, a gente pode se afastar das famílias, e as famílias, em especial, as mais necessitadas que nós conversamos, elas têm a sua religião e que a gente não pode simplesmente desmerecer isso, porque faz parte de uma cultura popular e isso é importante na nossa formação (Atiliana, dirigente MST-MS).
A dirigente Lucineia Freitas nos traz uma importante reflexão para avançarmos no diálogo: adentrarmos na linguagem, superarmos nossos preconceitos e construirmos uma disputa de narrativa:
Precisamos nos apropriar de setores das evangélicas, por exemplo, Nancy Cardoso, tem vários textos sobre Bíblia e Mulher, e quantas vezes, a gente, feminista, lê a Nancy? É o nosso desafio de buscar. Se eu conheço a área, e sei que a maioria é evangélica, então tenho que pensar como eu me aproprio do discurso das evangélicas progressistas para fazer o diálogo (Lucineia, MST-RJ).
Para além da tarefa fundamental de nos aprofundarmos nas referências teológicas do campo evangélico como parte indispensável na realização do diálogo, como trabalhamos acima, nos parece imprescindível buscar as referências metodológicas da religiosidade popular que se traduz hoje no (neo)pentecostalismo e também construir novas metodologias de ação que de fato respondam às demandas das mulheres trabalhadoras. Atiliana, dirigente do MST em Mato Grosso do Sul nos diz: “A gente tem a perspectiva de compreender os evangélicos, porque a gente precisa entender o povo para saber o que temos que alimentar para a construção de uma vida melhor (…) a questão da religião é muito importante, por que ela permeia cada indivíduo”.
Se é verdade que temos fome de comida, mas também de beleza e arte, como saciar essa fome? Quais alimentos nossas almas tanto necessitam? Para Lucineia é nossa tarefa avançarmos na construção de metodologias que de fato possam disputar as narrativas não somente no conteúdo, mas também nas tantas formas que aquecem esse corpo crente em seus cotidianos de opressão:
Enquanto esquerda, temos um desafio muito grande de se pensar cultura e lazer, porque a gente tem pouco lazer, temos mais a prática do trabalho. Não no lazer, ócio…Nossa perspectiva de espaços de sociabilidade está relacionada com a lógica do capitalismo, ou a gente trabalha, ou tá no bar consumindo ou numa festa. E romper com isso é um grande desafio. E a religião traz essa perspectiva, por mais que as Igrejas evangélicas estão vinculadas a uma lógica capitalista, por exemplo, se não dá o dízimo não tem direito a isso ou aquilo, mas é ali que você vai para conversar, antes da missa, do culto, onde a comadre te visita, onde o jovem tem instrumento para praticar. Pode ser uma Igreja de tábua véia, mas tem um violão, uma caixa de som, tem possibilidades.
Isso não quer dizer, como temos insistido, que a disputa da forma e do conteúdo de narrativas seja somente criar novos espaços de sociabilidade popular para que as mulheres não precisem mais da Igreja, dado que defendemos que espaços de comunhão da espiritualidade são fundamentais para nosso povo. Compreender nossos buracos, assim como saber como estão sendo preenchidos é de fundamental importância para avançarmos nas nossas estratégias. No entanto nos parece que adentrarmos no campo religioso não é mais uma opção facultativa. Se nos convencermos disso, precisamos dar um outro passo, ou seja, estarmos em diálogo com as mulheres crentes em suas Igrejas não é simplesmente substituir Marielle por Maria, mas entender e dialogar com esse corpo crente, que diz muito mais do que palavras quando canta, quando ora, quando louva, quando lê.
Nas nossas entrevistas, pudemos perceber que o MST tem se colocado no desafio de ouvir essas mulheres, assim como de compreender e ressignificar espaços “vazios”, tem buscado a partir de experiências que seguem em curso, mais do que uma neutralização, um diálogo que pressupõe uma escuta atenta como processo metodológico. Pressupõe também ações menos passivas frente ao fenômeno. Marina Viana, dirigente do MST, assentada em Mato Grosso do Sul, a partir de suas experiências nos territórios pelas Brigadas de Trabalho de Base do Congresso do Povo que tem atuado para além dos acampamentos e assentamentos, chegando nas periferias das cidades em todo país, nos aponta caminhos interessantes que vão ao encontro a reflexões que temos defendido neste desafiador diálogo. Primeiro, assumindo que é um campo que não temos muito domínio de atuação, que estamos em um processo de reconhecimento do território e que, humilde e respeitosamente, pequenos passos lentos podem nos ajudar a percorrer caminhos mais longos. Sobre uma reunião realizada dentro de uma Igreja pentecostal, na periferia de Campo Grande, ela nos conta:
Os pastores fizeram o culto, no final nos apresentou para a Igreja: “Olha, esse pessoal aqui é do bem, eles veem a gente não como só pessoas que ficam nesse templo só lendo a Bíblia, então a gente vai ouvir, e eles vão falar a essência do que eles fazem”. A gente ficou super com medo, com cuidado, pensando: O que a gente fala? Tudo o que a gente fala, nos nossos debates, tudo a gente é muito crítico em tudo. Mas estamos pisando em ovos, aí falei a gente tem que ir devagar, porque dependendo como forem os pastores e os fiéis, eles correm com a gente daqui. E aí a gente foi tranquilo, começamos a conversar, e para eles tudo é testemunho, e vou te dizer, é muito emocionante a experiência, porque a gente falava o que o Congresso do Povo fazia, quem somos nós. E a gente se apresentava..
Depois, para além dessa fala e escuta respeitosa, a solidariedade foi um instrumento de aproximação fundamental, uma porta de entrada para novos diálogos:
E a gente foi em muitos bairros, isso na experiência do ano passado, aí nesse ano… Como a gente começou a conversar com eles? Nas campanhas de solidariedade. Ai a pastora falava, Marina, Léia, a nossa comunidade é muito carente, estamos passando por uma situação assim… E fizemos campanha de roupas, calçados, móveis, fizemos diversas campanhas com eles. E eles têm uma gratidão muito grande, porque eles viam que eram gestos de solidariedade de um pequeno grupo, até teve uma fiel que veio uma vez: “Até agora não entendi porque vocês vieram”. Aí a gente: “Plha, como é que você vê esse governo?”. Ela, que era uma jovem, inquieta: “Meu Deus, a gente não tem governo!Vou falar a linguagem nossa aqui, a gente tem um capeta dirigindo o mundo”. Aí eu: “É, essa visão sua é a nossa visão, nós temos um alguém aí que tá aí que não se preocupa com essa sociedade, principalmente com os menos favorecidos”.
Esse processo, nos conta Marina, incluiu a leitura comunitária da Bíblia, o aprendizado mútuo de formas de estar no espaço: “A gente foi aprendendo o linguajar deles, a ficar em silêncio, quietinho ouvindo eles, porque a gente é muito inquieto e muito terrível, a gente é muito dinâmico, o povo da luta. E a gente foi reaprendendo com eles”. Com o avançar desta relação, foram se inserindo efetivamente nos espaços, criando dinâmicas conjuntas de ações e puderam, finalmente, levar algumas de suas pautas para além das ações de solidariedade.Para Marina: “Mostrar para eles o que eram os assentamentos, como a gente se organizava, o que era… e a gente podia adentrar a Igreja deles sem modificar o que eles faziam, mas a gente se incluir nesse debate que já tinha, e colocar nossas pautas, mas com muita cautela, muito medo para eles não se afastasse”.
“Adentrar a Igreja deles sem modificar o que eles faziam”. Nos parece que, aqui, Marina anuncia a profundidade da reflexão que quisemos trazer a partir das vozes das mulheres evangélicas do MST. Ainda que a disputa de narrativas seja o propósito de nossas reflexões, que pressupõe transformar aquilo que existe ou “modificar”, esse transformar precisa ser compreendido primeiro a partir do que queremos – e o que queremos não é tão fácil delimitar como parece, talvez o fim sim, mas o percurso pode nos confundir. Queremos, por fim, uma sociedade livre de todas as opressões: nesse caminhar, a fé é um empecilho ou um estímulo? Deixemos esse assunto para o campo privado ou assumimos as múltiplas identidades de nosso povo, incluindo suas religiosidades, como elemento de fundamental importância para o avanço de nossa estratégia? São questões difíceis de responder, nos parece, mas as perguntas seguem criando um caldo necessário para o debate e aqui apontamos, sem a pretensão de responder, alguns caminhos.
Nos parece que para além de neutralizar, precisamos criar um diálogo efetivo com os crentes que são em sua maioria mulheres e negras, como sabemos. Esse diálogo pressupõe tanto absorvermos metodologias do trabalho de base, criando novos espaços onde os corpos e as vozes das mulheres crentes e de toda a classe trabalhadora dos campos e cidades de nosso país seja ouvida de fato, a partir das necessidades do corpo e da alma. Pressupõe também nos colocarmos em disputa, em um papel ativo frente ao avanço dos tantos fundamentalismos que seguem sendo narrativas nos nossos territórios. No entanto, essa disputa não quer “modificar” aquilo que é a essência dessa mulher crente – sua fé e a forma de viver sua fé – mas de superar aquilo que oprime esse corpo. Para isso, nos parece que adentrar sem modificar, como nos disse Marina, seja um passo fundamental para avançar no diálogo, entendendo que um diálogo pressupõe uma aproximação entre as linguagens: se a minha língua não comunica, não há diálogo. Quais linguagens têm nos escapado? Como resgatá-las ou melhor, como (re)conhecê-las? Adentrar sem modificar também pressupõe um respeito genuíno por essas mulheres, dialetizando os saberes envolvidos, desconstruindo preconceitos e opressões, que atingem tanto o campo popular não religioso como as mulheres crentes, ainda que muitas vezes em distintos aspectos. O que nos une?
Tanto o Movimento quanto a Igreja nos ensinam a lutar – lutar por igualdade, embora com diferenças – no movimento, no âmbito da radicalidade, na Igreja dentro das caixas, ainda muito superficial, aí que cabe a gente enquanto liderança, enquanto evangélica, extrapolar esse paradigma. A Igreja me ensinou a ser companheira, a ir em busca daqueles que estão precisando de apoio, há também busca pela igualdade (Eliane, dirigente MST-BA).
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