Alta na inflação dos alimentos e a mercantilização das necessidades humanas
Por Matheus Gringo de Assunção*
As importações de alimentos em nível mundial deverão bater recorde neste ano, alcançando a cifra de US$ 1,715 trilhão, 12% superior ao registrado no ano de 2020, aponta as projeções realizadas pela Agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
Este aumento se deve, em parte, pela elevação da demanda por produtos básicos em países que avançam no controle da pandemia de covid-19, impactando no volume demandado, mas também pelo aumento nos preços internacionais dos alimentos e nos fretes em 2021.
Ainda segundo a FAO, o índice de preços dos alimentos cresceu cerca de 40% em maio, comparado ao mesmo período de 2020, sendo o maior crescimento desde outubro de 2010.
Os maiores aumentos nos preços se concentram nos cereais, com uma elevação de 35,7% em relação ao ano anterior, o que deverá incrementar a fatura das importações de alimentos em cerca de US$ 37 bilhões.
Na sequência vem os preços dos óleos vegetais, que registraram a 12ª alta consecutiva entre os meses de abril e maio, de 7,8%, incrementando as projeções dos custos de importação de alimentos em US$ 31 bilhões.
Segundo a agência das Nações Unidas, outros índices que tiveram incremento nos preços são os produtos de laticínio, que registraram alta de 28%, marcando um ano ininterrupto de aumento nos preços.
Para as carnes, o incremento anual no índice de preços ficou em 10%, enquanto o açúcar registrou alta de 6,8% em maio em relação ao mês anterior.
O impacto da inflação global dos alimentos é maior na América do Sul com 21%, seguida da África e Ásia Meridional com 12% e Oceania com 8%; estas são as regiões mais afetadas pela elevação dos preços.
A alta na inflação dos alimentos em países estruturalmente dependentes, como o Brasil, penaliza principalmente as populações de menor renda, impactando no aumento da insegurança alimentar e a fome.
No Brasil, a inflação de alimentos no primeiro ano da pandemia atingiu a marca de 14,09%, enquanto a inflação geral medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ficou na casa de 4,53%. Não obstante, o aumento nos preços dos alimentos persiste.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a inflação voltou a crescer no mês de maio, impactando principalmente os mais pobres, com elevações de 8,91% para a camada de renda muito baixa (até R$ 1.650,50), de 8,73% para renda baixa (entre R$ 1.650,50 à R$ 2.471,09) e de 8,59% para renda média-baixa (entre 2.471,09 à 4.127,41).
Neste contexto, nas camadas de mais baixa renda o peso relativo da alimentação representou o terceiro maior aumento mensal, segundo o índice do IBGE, atingindo aumento de 0,13% entre abril e maio, atrás apenas do aumento dos gastos com habitação (0,42%) e transporte (0,14%).
Os fatores elencados que ajudam a explicar esse aumento dos preços dos alimentos a nível global podem ser encontrados, parcialmente, em dois elementos: os efeitos da pandemia na desarticulação de cadeias globais de suprimentos, com elevação dos custos de transporte e restrições impostas por países exportadores de alimentos em relação a oferta destes bens, e os problemas climáticos, que impactaram nas previsões das safras de grãos. No Brasil, por exemplo, a seca impôs redução da previsão da safra de milho.
No entanto, também é preciso buscar respostas no modelo do agronegócio, no qual os alimentos são tratados como commodities, com seus preços definidos não por aspectos internos, mas subordinado a dinâmica de preços internacionais.
Alimentos deveriam ser commodities?
A forma como os capitalistas, em especial por meio dos processos de financeirização, estruturam os mercados das commodities agrícolas, leva necessariamente a perda da capacidade de formação dos preços internos dos alimentos a partir dos elementos domésticos de produção, ou seja, dos próprios custos da produção.
Nesta perspectiva, os alimentos são transacionados nestes mercados financeiros, e os preços que serão formados seguem a dinâmica do mercado internacional. Isso significa que a medida em que os países importadores, como a China, elevam a demanda por essas mercadorias, acaba por impactar nos preços destas commodities.
Para se ter uma ideia da elevação dos preços das commodities agrícolas, entre abril de 2020 à abril de 2021, os preços das diversas mercadorias agrícolas negociadas nos mercados financeiros registraram variações que vão de 20% a 100% de aumento.
Como exemplo, destacamos o aumento de 100% nos preços do óleo de soja, 84% do milho, 79% da soja, 59% do arroz, 40% do açúcar, entre outros.
Este modelo dependente das dinâmicas internacionais também impacta nos processos inflacionários das variações cambiais, pois na atual conjuntura, com a moeda estadunidense em alta em relação ao real, faz com que seja mais vantajoso para o agronegócio vender a produção em moeda estrangeira em detrimento do mercado interno, além de levar ao encarecimento da importação de alimentos e elevação dos custos, por ser um modelo altamente dependente da importação de insumos para a produção.
Outro aspecto importante a ser destacado é o processo de especulação financeira sobre os alimentos na condição de commodities, que por meio de milhares de contratos de entrega futura de mercadorias agrícolas, amplia a volatilidade dos preços dos alimentos, entregando esta definição nas mãos dos monopólios que operam o mercado financeiro.
Tal processo é centralizado pelas empresas transnacionais, que exercem controle até mesmo sobre itens produzidos pela agricultura familiar, que cada vez mais perde autonomia sobre o processamento e a distribuição dos alimentos.
Portanto, é falacioso afirmar que o aumento dos preços dos alimentos se deve a alta da demanda, como propangandeou o governo federal quando da liberação do Auxílio Emergencial no ano passado, uma vez que a demanda, no caso brasileiro, é reprimida por uma política econômica contracionista e pelo alto desemprego registrado no país, por conta da política de atendimento aos interesses do capital financeiro.
Além disso, o governo atual tem aplicado à lógica ultraliberal sobre os alimentos, desestruturando políticas públicas e programas fundamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), e desmantelando instituições vitais para regulação de estoques, como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Isso sem falar na destruição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Conseam) e outras formas de participação da sociedade na política de combate à fome.
Repensar o modelo de produção de alimentos
Diante do cenário de inflação global dos alimentos, que penaliza os países dependentes e destrói as bases para a soberania alimentar dos povos, e em função deste modelo de produção atrelado aos grandes monopólios do agronegócio e a especulação financeira, coloca-se o desafio de se construir um modelo de produção que privilegie os circuitos locais de produção de alimentos saudáveis.
Para isso, são necessárias políticas públicas que avancem no fortalecimento da agricultura familiar, para que os preços domésticos sejam determinados por variáveis internas.
Ademais, é premente avançarmos para um modelo de produção com matriz agroecológica, em consonância com a sustentabilidade ambiental e de fortalecimento da imunidade e promoção de saúde da população.
Por fim, para rompermos com a lógica da valorização financeira e especulativa sobre os alimentos, é essencial a realização de uma ampla reforma agrária, que seja popular, agroecológica e revolucione a forma de produzir alimentos no Brasil, rompendo com a lógica dos alimentos como commodities.
No ano de 2020 tivemos a prova que as supersafras e recordes nas exportações do agronegócio não se convertem em solução diante da fome e das desigualdades sociais.
Ao contrário, segundo a Rede Penssam, o Brasil tem atualmente 19,1 milhões de pessoas passando fome e 106,8 milhões vivendo em insegurança alimentar. Que o direito à alimentação esteja acima dos interesses do mercado e que nenhum alimento seja tido como mercadoria.
*Matheus Gringo de Assunção é pesquisador do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Integração Latino Americana e mestrando em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC, além de ser membro da Direção Estadual do MST/SP.