Gramsci em meio ao MST: uma entrevista com Neuri Rossetto

Dossiê n. 54

Foto: Mídia Ninja

 

As fotografias desse dossiê, editadas pelo departamento de arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, são retratos da cultura viva do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por meio da arte, educação, produção agrícola, comunicação popular e mobilização de massa. Cada fotografia contém a presença de um retrato daqueles que lutaram antes de nós e que continuam a alimentar nossas lutas atuais, como Rosa Luxemburg em um banner, Carlos Marighella em um instrumento de samba, Carolina Maria de Jesus em uma bandeira, Zumbi dos Palmares em uma parede, Frida Kahlo em uma pintura, Bruno Pereira e Dom Phillips em um palco, Che Guevara em um galpão e, claro, o próprio Antonio Gramsci com vista para uma mística. Assim como o texto do dossiê, as imagens trazem experiências concretas de um movimento que se alimenta das ideias de Gramsci – sementes para a criação de um novo ser humano e a transformação da sociedade.

 

Foto: Coletivo de Comunicação do MST no Norte do Paraná

 

Introdução

Apesar da insistente hegemonia do capitalismo e suas ideias neoliberais vigentes, vivendo em uma conjuntura marcada pela crise econômica, política,  social e ambiental – e ainda sem perspectivas de superar a crise sanitária -, diversas formas de resistência, lutas sociais e propostas de um futuro emancipado continuam emergindo.

É nesta perspectiva de futuro, que se fundamenta na possibilidade de mudança e na esperança da emancipação humana, que nossos intelectuais devem “colocar seu coração e sua alma”, como afirmamos no dossiê n. 13, O Novo Intelectual, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Temos que elaborar propostas criativas de como usar nossa riqueza social para resolver os problemas imediatos da humanidade, como a fome, a miséria, as doenças e as catástrofes climáticas; estudar e conhecer as resistências e lutas que emergem em todos os cantos do mundo. Algumas propostas, em forma de esboço, estão disponíveis no dossiê n. 48, Construiremos o futuro: um plano para salvar o planeta, desenvolvido por uma rede de institutos de pesquisa. Também devemos nos desafiar a usar a criatividade para elaborar possibilidades de cooperação, solidariedade e enriquecimento social e cultural entre os povos.

O comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) já atentava ao papel dos novos intelectuais que, ao participarem ativamente nas organizações políticas, dedicam-se a elaborar a consciência popular e a criar espaço para que as lutas populares prosperem.

É nesse contexto que queremos resgatar o trabalho de Gramsci e seu legado para as atuais trincheiras de luta, reforçando a Batalha de Ideias e, como sempre disseram Fidel Castro e José Martí, sabendo que as lutas dentro das várias instituições culturais e intelectuais são tão importantes quanto as lutas nas ruas, pois estas batalhas caminham juntas e se retroalimentam.

Por isso achamos importante trazer à tona as experiências sociais contemporâneas que bebem dessa fonte, que se alimentam das ideias de Gramsci e conseguem, na vida concreta, construir as sementes de esperança desse novo mundo. Usamos esperança não apenas com essa perspectiva de futuro, mas também do verbo esperançar, como nos ensinou Paulo Freire, que é se levantar, ir atrás e levar adiante, é juntar-se com outros para construir desde hoje novas formas sociais. É na ação desse verbo, diante das experiências sociais atuais, que reside o caminho alternativo da humanidade.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil se desafia cotidianamente a criar essa esperança. O MST, maior movimento popular de luta da América Latina, surgiu no início da década de 1980, rapidamente transformando a luta camponesa em uma ferramenta de contestação do autoritarismo em meio à ditadura militar em que se encontrava o Brasil naquele momento. Suas ações, muito mais amplas do que a busca pelo acesso à terra, inclui a realização da reforma agrária – para democratizar o acesso à terra e nela produzir alimentos saudáveis – e a luta por justiça social. Hoje conta com aproximadamente 500 mil famílias organizadas no campo, dentre as quais acampadas (em ocupações de terra demandando reforma agrária) e assentadas (que já conquistaram a terra por meio da luta). Todas essas famílias seguem se organizando numa estrutura participativa, democrática e inclusiva em nível local, regional, estadual e nacional.

Nesta perspectiva, para compreender melhor a importância de Gramsci e seu legado para a construção deste movimento popular, nosso dossiê n. 54, Gramsci em meio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): uma entrevista com Neuri Rosseto, conversou com o membro da Coordenação Nacional do MST. Nesta entrevista, Rossetto fez questão de ressaltar, primeiro, que ele não se considera um gramscista, um conhecedor da sua obra. É apenas um militante político que, admirador de Gramsci, busca trazer para os movimentos populares um pouco da inestimável e grandiosa contribuição que o pensador italiano trouxe ao movimento revolucionário da classe trabalhadora.

Refletindo, portanto, sobre esse legado gramsciano e suas contribuições atuais, Neuri Rossetto considera que há três desafios principais na ordem do dia: identificar com precisão os adversários dos programas de enfrentamento aos dilemas da humanidade (como a reforma agrária); estabelecer um diálogo permanente com a classe trabalhadora para construir um projeto político para cada país; e fortalecer a capacidade organizativa e política de nossa base social.

Como diziam as palavras de ordem da Revista L’Ordine Nuovo, já em 1919, de Gramsci, Tasca, Togliatti e Umberto Terracini: “Instruí-vos, porque precisamos da vossa inteligência. Agitai-vos, porque precisamos do vosso entusiasmo. Organizai-vos, porque carecemos de toda a vossa força”. Renata Porto Bugni, vice-diretora do Instituto Tricontinental de Pesquisas Social, entrevistou Rossetto em 2021. Uma versão anterior desta entrevista foi publicada no Notebooks: The Journal for Studies on Power [Cadernos: A Revista de Estudos sobre o Poder], uma revista apoiada por GramsciLab. Agradecemos a parceria do GramsciLab e do Centro per la Riforma dello Stato (CRS), ambos membros da Rede de Institutos de Pesquisa, para a realização deste dossiê.

Esta entrevista também contou com a contribuição indispensável e solidária da professora Cristina Bezerra, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

 

Foto: Mídia Ninja

 

Qual foi a importância do legado de Gramsci para as formulações da luta do MST? Você considera que o pensamento gramsciano é útil ainda hoje para a construção de organizações sociais e políticas e para a transformação da sociedade?

Para nós do MST, um movimento popular de camponeses que promove a luta pela reforma agrária no Brasil, é inestimável e extremamente necessária a contribuição de Antonio Gramsci para compreendermos a atualidade e a complexidade da sociedade burguesa. Sua superação, numa perspectiva socialista, nos exige uma compreensão cada vez mais precisa e atual do seu funcionamento, da sua reprodução e, a partir de suas próprias contradições, descortinar os caminhos de atuação política das classes subalternas.

O MST sempre teve clareza na compreensão de que o êxito da luta pela reforma agrária no Brasil não será decorrente apenas da força e da atuação política dos camponeses. Democratizar o acesso e a propriedade das terras agricultáveis exige mobilizar a sociedade em defesa dessa bandeira e incluir a reforma agrária – e o modelo de desenvolvimento da agricultura brasileira – no cerne de um projeto político-econômico, que atenda às necessidades e os interesses do povo brasileiro, não os da classe capitalista. Nesse sentido, as contribuições de Gramsci nos alertam para as lutas cotidianas pela hegemonia e pela necessidade urgente de um projeto societário que venha a ser construído com a centralidade das lutas dos trabalhadores. Este é o caminho que estamos tentando construir.

Com esses objetivos, temos um triplo desafio: 1) identificar e definir os principais inimigos da reforma agrária, assim como Gramsci fez com as forças do fascismo; 2) estabelecer um diálogo permanente com as forças populares da sociedade civil, para construirmos um consenso em torno de um projeto político para o país; 3) elevar o nível de organização e de politização da nossa base social.

Portanto, podemos citar três exemplos de como a vasta e valiosa contribuição teórico-política de Gramsci é atual e valiosa para os movimentos populares se constituírem como protagonistas na luta de classes nos dias atuais: compreender a atuação do Estado, em sua forma ampliada, nas tentativas de obter o controle dos conflitos originados por uma sociedade dividida em classes; olhar para a sociedade civil com seu potencial das classes subalternas abrirem novas e diversificadas trincheiras de lutas contra o domínio de uma minoria sobre a maioria; e nos desafiarmos, permanentemente, a nos constituirmos como uma força política, tendo como referência o conceito gramsciano de hegemonia.

 

De acordo com Gramsci, a sociedade civil é composta pelo que ele denomina de aparelhos privados de hegemonia (que são instituições de legitimação do poder, como escolas, Igreja, sindicatos, meios de comunicação, entre outros). Qual avaliação se faz hoje da atuação da sociedade civil diante do atual governo de Jair Bolsonaro em meio à pandemia? Como o movimento atua/dialoga com essas instituições (nas trincheiras e fortalecimento da sociedade civil)?

Infelizmente, a sociedade ainda permanece inerte diante de toda a tragédia humanitária, provocada pela pandemia do Covid-19 e maximizada pela política genocida do governo de Jair Bolsonaro. Há a impressão de que a sociedade naturalizou as milhares de mortes que ocorreram e, em menor medida, ainda ocorrem diariamente por causa da pandemia. Há que ressaltar que essa imobilidade da população antecede o período da pandemia. O Brasil é um dos países com maior desigualdade social e econômica do mundo; milhares e milhares de pobres, especialmente da população negra, são mortos anualmente por forças policiais; o Estado, com políticas públicas, se faz cada vez mais ausente nas crescentes aglomerações de favelas nos centros urbanos. A imobilidade social frente à pandemia e a esse governo genocida precisa ser vista sob este cenário que estruturalmente martiriza a população pobre.

No entanto, há sinais animadores e crescentes desde meados de 2021 de que essa letargia social começou a ser derrotada, ocorrendo mobilizações sociais nos centros urbanos.

Sobre nossa atuação, desde o início de 2020, quando começou a pandemia do Covid-19 no Brasil, o MST elegeu como seu principal objetivo “Salvar Vidas”.  E em torno dessa bandeira, nos estruturamos em quatro frentes de lutas: 1) Nos cuidados com a pandemia: a) internalizando na nossa base social as orientações e os cuidados preventivos feitos pela Organização Mundial da Saúde (OMS); b) exigindo a vacina como um direito universal para todos os povos; c) cobrando do governo brasileiro uma ajuda econômica emergencial, para que a população tivesse as mínimas condições de permanecer em casa enquanto durar a pandemia; d) Em defesa e valorização da saúde pública, através do Serviço Único de Saúde (SUS).  2) Uma frente de Brigadas de Solidariedade para distribuir alimentos doados pelos assentamentos rurais da reforma agrária e, junto com outras organizações progressistas da sociedade, organizar cozinhas populares para distribuir ao menos uma refeição diária à população em situação de rua nos grandes centros urbanos. Somente no estado de Pernambuco, foram distribuídas mais de 720 toneladas de alimentos e 600 mil refeições entre 2020 e 2021.

Não há notícias que o agronegócio, que monopoliza as terras, o financiamento público e a assistência técnica para a produção agroexportadora, tenha feito doações de alimentos para a população pobre.

Em alguns estados, principalmente no nordeste brasileiro, além da distribuição de alimentos,  formaram-se brigadas de agentes populares de saúde para visitar e orientar as famílias pobres das periferias das cidades. 3) A Campanha “Fora Bolsonaro”, um governo genocida! Temos um governo militarizado, que, desde o início da pandemia, trabalhou sistematicamente contra a ciência, as orientações da OMS e o acesso às vacinas, tornando-se o maior responsável pelas mais de 650 mil mortes causadas pelo Covid-19 no país. “Salvar Vidas” foi a campanha que, em 2021, exigia afastar do cargo de Presidente da República esse genocida e responsabilizá-lo criminalmente pelas milhares de mortes ocorridas. 4) Campanha do Plantio de Árvores, iniciada meses antes da pandemia, mas que ganhou uma importância ainda maior nesse período excepcional, que nos impede de fazer ações que aglomeram muitas pessoas. Nossa meta é plantar 100 milhões de árvores em todo o país em 10 anos; apenas nos dois primeiros anos do plano, o alcance foi de 2 milhões de árvores plantadas e a construção de 100 unidades da Rede de Viveiros Populares distribuídas por todo país. O objetivo é avançarmos na recuperação e preservação ambiental dentro das nossas áreas.

É do conhecimento de todos que o irracional desenvolvimento capitalista, promovendo a destruição ambiental em busca da maximização das taxas de lucros, ameaçam a vida e o planeta.

Assim, são quatro trincheiras de lutas que nos permitem, diariamente, dialogar e promover articulações políticas com a sociedade civil, além de se contrapor com os preconceitos ditados pelos aparelhos privados de hegemonia contra os camponeses e suas lutas.

 

Foto: Wellington Lenon / MST-PR

 

Em contexto de pandemia vemos que as crises sanitária, econômica e política podem deixar brechas para a contestação popular e a mobilização em torno de outra hegemonia. Como o movimento analisa essas crises no país e quais as possíveis consequências e as alternativas que estão sendo criadas?

Nós estamos vivendo uma crise estrutural do capitalismo que antecede a pandemia. Diferente das crises cíclicas, resultantes da superprodução capitalista, e da crise final, caracterizada pelo colapso do capitalismo, as crises estruturais são períodos de mudanças e de novas formas de acumulação capitalista. São períodos de grandes e profundas transformações, gerando crises políticas, econômicas, sociais e ambientais. Crises que aceleram a concentração da renda e da riqueza produzida e, consequentemente, aumentam a exclusão social e a pobreza em todos os continentes do planeta. Acrescenta-se a esse cenário a insana e desvairada exploração capitalista dos recursos naturais, provocando uma destruição ambiental que ameaça a vida no planeta. Ou seja, o capitalismo se mostra, socialmente, cada vez mais desumano, mais injusto, incapaz de promover uma sociedade igualitária, solidária e democrática.

Assim, vivemos um período de instabilidade mundial, prenunciando mudanças de época. E essas crises abrem sim possibilidades históricas de as classes subalternas promoverem a contestação da sociedade burguesa e consolidar vitórias na perspectiva de uma sociedade socialista.

O MST, juntamente com a Via Campesina – organização mundial dos camponeses – já carregam bandeiras de lutas com fortes conteúdos anticapitalistas. Fazem isso ao defender que os recursos naturais sejam excluídos da lógica do mercado e sobre eles se exerça um controle social; ao lutar para que o alimento deixe de ser uma mercadoria e passe a ser um direito universal; ao empunhar a bandeira da soberania alimentar de todos os povos; ao defender as sementes como patrimônio da humanidade e a produção de alimentos livre de agrotóxicos. Essas lutas, ainda restritas ao seu caráter anticapitalista, já são embriões de uma nova sociedade ou de uma nova hegemonia.

Há, ainda nesse cenário de instabilidade mundial, uma disputa pela hegemonia do planeta entre os Estados Unidos e a China. O primeiro, embora mantendo uma superioridade militar inquestionável, está em declínio frente à ascensão da China como potência mundial. Aqui, acreditamos, também se abrem brechas históricas para o surgimento de uma nova ordem mundial. E, por meio da Assembleia Internacional dos Povos (AIP), lutamos por um mundo livre de países imperialistas, livre de guerras e da fome, que promova um desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável, socialmente justo, igualitário e democrático. Lutamos por uma humanidade socialista.

Por isso, a AIP está promovendo seu 3º Seminário Dilemas da Humanidade – Diálogos entre Civilizações, com o objetivo de discutir medidas emergenciais pós-pandemia e definir bandeiras de lutas que sinalizem um mundo pós-capitalismo. As atividades realizadas culminarão em 2023 numa grande atividade internacionalista com representações dos povos de todos os continentes do planeta. Este evento será realizado no continente africano.

Por último, a pandemia do Covid-19 mostrou o fracasso das políticas neoliberais no mundo todo, em especial na área de saúde, com a gritante incapacidade da medicina comercial enfrentar uma pandemia.

Os governos que adotaram políticas em defesa da vida e instituíram medidas econômicas emergenciais para assegurar condições de vida digna aos seus povos, não apenas tiveram maiores êxitos no enfrentamento da pandemia como também estão saindo mais rápidos e mais fortes da crise econômica gerada pelo Covid-19.

A pandemia, a um custo imensurável de centenas de milhares de vidas, nos deu a possibilidade de fortalecer nossas lutas em defesa de políticas públicas de saúde, de moradia, de saneamento básico, educação, dos direitos de gênero e dos cuidados com a natureza. Enfim, políticas públicas de promoção da dignidade humana.

Em síntese, a crise estrutural do capitalismo e a crise mundial gerada pela pandemia abriram possibilidades históricas tanto de lutas, que atendam demandas imediatas emergenciais, quanto as bandeiras que resgatam a utopia socialista como um ideal de sociedade futura.

O tempo dirá o quanto as classes subalternas souberam aproveitar as brechas que hoje se abrem na história da humanidade.

 

Gramsci ressalta a importante tarefa dos partidos políticos na sociedade moderna de criar um terreno propício para a reforma intelectual e moral para o desenvolvimento de uma nova vontade coletiva nacional-popular. No Brasil, MST tem assumido esse papel?

O MST é um movimento popular, composto por trabalhadores e trabalhadoras rurais e camponeses que tem como pauta imediata a luta pela reforma agrária no Brasil e a garantia de condições de vida dignas aos assentados. Ao longo de nossa existência, fomos nos tornando cada vez mais convictos de que essa luta não se faz isoladamente no campo nem encontra seus limites na ordem burguesa. Desta forma, o movimento foi ampliando sua rede de relações sociais e políticas, buscando aliados nessa tarefa, tanto no campo quanto na cidade, e se fazendo aliado em outras tantas lutas que são necessárias no confronto com a sociabilidade burguesa.

A globalização econômica neoliberal e a divisão planetária da produção capitalista subordinou o desenvolvimento econômico brasileiro a uma plataforma exportadora de produtos primários. O que tornou inviável uma reforma agrária que atendesse também os interesses da burguesia industrial e que ao menos se limitasse à distribuição de terras a camponeses para produzir matéria-prima à indústria e ao fortalecimento do mercado interno. Nem isso aconteceu. À burguesia que monopoliza as terras interessa, unicamente, os interesses do mercado externo (para ler mais sobre esse assunto, acesse nosso dossiê 27, Reforma Agrária Popular e a luta pela terra no Brasil).

Coube ao MST reelaborar sua proposta de reforma agrária, sistematizado em seu Programa de Reforma Agrária Popular, onde, além de lutar pela democratização da propriedade da terra, há a defesa de um modelo de agricultura centralizado na produção de alimentos saudáveis para a população brasileira.

Foi essa complexidade atual da luta pela reforma agrária, tanto por suas demandas populares quanto por sua abrangência política, que exigiu novas elaborações de propostas para a agricultura, qualificação organizativa e amplitude no campo de aliados, tanto nacionais quanto internacionais.

Nesse cenário, estamos cientes das responsabilidades e da necessidade de qualificarmos nossa força política, tanto em seu nível organizativo quanto em seu nível ideológico, para termos uma incidência maior na luta de classes.

No entanto, não temos a pretensão de assumir o papel de um partido político stricto sensu, pois acreditamos que este instrumento político está para além de nossa atuação. Isso não significa dizer que temos uma postura suprapartidária ou apartidária. Consideramos que a articulação de movimentos populares, sindicatos e partidos políticos é fundamental para a construção de uma outra sociabilidade, alternativa e contrária à ordem burguesa.

 

Foto: Matheus Alves

 

Gramsci não foi um intelectual de “biblioteca”. Sua construção intelectual se dava nas relações de convergências e divergências que permeavam sua vida, que antes da prisão era politicamente muito ativa. É notório que um movimento social amplo como o MST tem sido capaz de desenvolver essa conexão intrínseca entre prática e teoria. Conte-nos mais sobre a importância dessa práxis hoje.

Esse é um desafio permanente e dinâmico, como qualquer outra relação dialética. Um amigo do MST, o professor José Paulo Netto, nos disse uma vez, didaticamente explicando a relação dialética entre teoria e prática (duas faces da mesma moeda) que: para a teoria a aquisição do conhecimento é um fim, para a prática é um meio para qualificar a ação política; o critério para a teoria é a verdade, para a ação política é a correlação de forças; o tempo para a teoria é indefinido, para a ação política é o momento.

Sendo assim, como é possível pensar em separado uma da outra? Ou, ainda, como priorizar uma em detrimento da outra?

Necessitamos da teoria e do conhecimento para qualificar nossa ação política. Mas apenas o conhecimento, isolado da ação política, se torna uma força morta.

No outro extremo, é atual o alerta de Lenin: “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”.

E, ainda, é certeiro o alerta que nos fez Palmiro Togliatti, dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI) e companheiro de Gramsci, ao afirmar que quem erra na análise, erra na ação política.

A partir desse legado dos grandes pensadores da classe trabalhadora e das lutas populares, em todos os tempos e lugares, procuramos sempre consolidar o conhecimento adquirido com a ação prática. De nada adiantaria nos apropriarmos do conhecimento libertador do educador Paulo Freire se não o implementarmos em nossas escolas nas áreas de assentamentos e acampamentos. O mesmo vale para o conhecimento na agroecologia. Esse conhecimento somente se realiza quando é posto em prática no cultivo dos alimentos. De pouco adiantaria decorar o extraordinário O Que Fazer, do Lenin, se não tivermos a capacidade de compreender sua mensagem para ação política, de acordo com nosso tempo e nossa realidade.

Assim, em todas as nossas áreas de atuação buscamos, de forma permanente e, volto a ressaltar, com seu caráter dinâmico, a complementariedade entre a teoria e a prática. Essa dualidade-unidade exige uma vigilância e uma persistência constante da organização.

Por último, não subestimamos a importância e a força da ação política e das mobilizações populares como elemento educador das classes subalternas. As massas populares aprendem e se educam nas mobilizações populares. Ali, no movimento das massas, reside a força política da organização e se qualifica o nível político-ideológico das massas.

 

Como são os processos formativos de elevação da consciência nas práticas do movimento? E como a ideia de intelectual orgânico de Gramsci é entendida e praticada entre os militantes?

A resposta para essa pergunta encontra-se, inicialmente, no enunciado da pergunta anterior, de que Gramsci não foi um intelectual de biblioteca.

Mas acredito que o exemplo primeiro de intelectual orgânico veio do próprio Karl Marx. O filósofo alemão, com sua obra complexa e genial, tinha a permanente preocupação de revisar a forma e a metodologia de exposição de suas pesquisas à classe trabalhadora. Pelo menos três preocupações centrais orientavam suas exposições: ser melhor compreendido pelos trabalhadores, a certeza que somente a classe trabalhadora poderia transformar o conhecimento científico em ferramenta da luta de classes e a necessidade de promover uma síntese entre a teoria e a prática política.

Sobre Lenin, basta lembrar que o próprio Gramsci o considerava, juntamente com Marx e Engels, um dos fundadores da filosofia da práxis. Mas, certamente, além de sua trajetória histórica de liderança partidária, o triunfo da revolução de 1917, sob sua liderança, deu a Lenin o mérito definitivo de ser um filósofo da práxis.

O pensador marxista Michel Löwy nos diz que os intelectuais que a classe trabalhadora necessita devem ter a responsabilidade de transmitir a herança do pensamento crítico e revolucionário; ter a capacidade de analisar as estruturas dinâmicas da sociedade burguesa e o funcionamento e a capacidade de renovação do capitalismo e propor alternativas; e ter capacidade de aprender com os movimentos populares.

Para o gramsciano Guido Liguori, não há nenhum momento em Gramsci a exaltação do povo ou dos subalternos assim como são; se os subalternos são assim, continua Liguori, mas querem se tornar hegemônicos, devem antes de mais nada transformar-se a si mesmos e adquirir consciência de classe. Como fazer dos estratos subalternos uma classe ou uma aliança de classes? O próprio Liguori responde: um grupo de dirigentes conscientes deve educar as massas, senão elas permanecerão estacionadas no nível espontâneo do senso comum, um nível limitado, insuficiente e intrinsecamente subalterno.

Nós, do MST, recorremos a todos esses conhecimentos que nos foram legados por meio das lutas pela emancipação humana e social e pelos elaboradores do pensamento crítico e revolucionário. Com esse legado, sistematizamos nossa compreensão sobre o intelectual orgânico e seu papel na luta de classes. Para nós, a própria classe trabalhadora deve formar seus intelectuais, a partir da educação formal, da formação política e das lutas populares e classistas. Esse intelectual tem a tarefa de contribuir na educação e na organização da classe em torno de um projeto político e na construção de uma hegemonia. E, ainda mais, repetindo Liguori, contribuir para que os extratos sociais subalternos adquiram um senso crítico e uma consciência de classe, superando o senso comum.

Por último, o dinamismo da luta de classes, cada vez mais complexa, irá impor, no seu tempo, renovações e adequações nas atribuições e no perfil dos intelectuais orgânicos que a classe trabalhadora necessita.

 

Foto: Juliana Adriano

 

Gramsci escreveu seus cadernos de anotações na prisão durante um momento de derrota. Ele queria saber por que a classe trabalhadora se desviou da hegemonia dos sindicatos e dos partidos de esquerda para as organizações fascistas. Você poderia refletir sobre estas observações de Gramsci?

É verdade que a classe trabalhadora vivia um período de derrota, no momento dos escritos de Gramsci no cárcere. Porém, na análise gramsciana, nesse mesmo período histórico, os segmentos sociais dominantes também estavam fragmentados em relação às classes subalternas.

Há contradições e diferenças entre os segmentos dominantes, tão profundas e complexas que ameaçavam sua hegemonia sobre a sociedade. Havia, assim, a necessidade de uma unificação política da dominação burguesa. Essa necessidade era a mais exata constatação da fragilidade da hegemonia dominante naquele momento.

Dessa relação política provém toda a complexidade e a riqueza do olhar de Gramsci para seu tempo histórico e sobre o papel que o fascismo cumpriria para restabelecer o domínio e a hegemonia da classe dominante, fragilizada após a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918).

O extraordinário pensador latino-americano marxista e cubano, Fernando Heredia, sempre nos lembrava que a chave de dominação é o momento do consenso e não da coerção. Ao recorrer ao fascismo, uma construção histórica, a burguesia buscava recompor a centralidade dos seus interesses sobre a sociedade italiana.

Nesse cenário histórico, um dos segmentos da classe dominante, tendo apoio dos grandes proprietários de terras e do grande capital industrial, logrou obter o consentimento da pequena burguesia para seu projeto de dominação fascista. Esses segmentos dominantes, com seu projeto fascista, promoveram um subversionismo reacionário – algo que dialoga muito bem com o conceito gramsciano de revolução passiva, isto é, um processo que parece ser revolucionário, mas que não altera a estrutura social ou estatal. Frente a uma ordem – burguesa – fragmentada e fragilizada, não nos parece difícil compreender a construção de um consenso em torno de um projeto político que carrega uma mensagem de transformação e que abre a perspectiva de um futuro que atenda os anseios de um povo, mesmo que esse projeto seja de natureza reacionária e coercitiva. Assim, a pequena burguesia, instrumentalizada pelo Estado e associações capitalistas, se sentiu protagonista dos acontecimentos políticos, fascistas.

A partir destas reflexões, Gramsci desenvolve toda sua teoria sobre a esfera da política e das relações que se constroem nessa esfera na luta pela hegemonia. Descobre também que esta hegemonia se dá por meio de elementos ideológico-culturais e relaciona as formas como o fascismo utiliza destes elementos no processo de dominação.

Portanto, para Gramsci, a luta pela emancipação humana e social exige que os sujeitos menos favorecidos, os mais excluídos e oprimidos, organizados de modo coletivo, promovam a ruptura com o consenso dominante. Paulo Freire, educador brasileiro, complementava esse desafio dizendo que as classes subalternas deveriam adquirir a capacidade de promover um desvendar crítico da realidade – recriando sua maneira de “ler” o mundo, ser protagonista de sua própria história e ser o sujeito da transformação da sua realidade.

Por último, uma das mais belas reflexões de Gramsci é quando afirma que hegemonia é um processo que expressa consciência e valores organizados em torno de um projeto político.

 

Foto: Igor de Nadai

 

Um dos principais conceitos estratégicos de Gramsci é o ‘bloco histórico’, a estratégia de hegemonia de Gramsci. Você poderia refletir um pouco sobre o processo de construção de tal bloco histórico no contexto brasileiro?

Essa pergunta me permite complementar o conceito gramsciano de hegemonia, como foi enfatizado na resposta da pergunta anterior.

Para Gramsci o processo de conquista da hegemonia nunca foi algo abstrato, limitado apenas ao campo das ideias, da consciência ou de valores idealizados. Alicerçado no método do materialismo histórico, tão bem fundamentado por Karl Marx e Friederich Engels, Gramsci ressalta que o processo de conquista da hegemonia ocorre no campo da infraestrutura da sociedade. Em outras palavras, na estrutura econômica. Ou, precisamente, nas relações de produção.

Foi isso o que aconteceu com o fascismo naquele momento histórico. Ele conquistou uma hegemonia porque logrou dar resposta para vários processos econômicos, culturais, ideológicos e políticos. E assim, por meio da pequena burguesia, o Estado e as associações capitalistas obtiveram o consenso e a direção das classes dominadas. Ressalta-se que nunca foi uma hegemonia plena. Existiu uma resistência significativa de parcelas da classe trabalhadora.

Nada mais didático do que a formulação gramsciana de que a hegemonia da classe trabalhadora começa no chão da fábrica. Ali, com suas lutas econômicas e corporativas é que a classe trabalhadora adquire a consciência para um momento ético-político e evolui para uma consciência em si, consciência de classe.

Assim, hegemonia é a capacidade que uma determinada força política tem de construir um consenso em torno de um projeto político. É esse o projeto político que evidencia a necessidade de um bloco histórico, para que a classe trabalhadora possa conquistar sua hegemonia.

No Brasil, vivemos um longo período de descenso da classe trabalhadora. Um período que se inicia nos anos de 1990 e se estende até os dias de hoje.

Do outro lado, a crise estrutural do capitalismo evidenciou a incapacidade da burguesia brasileira alimentar o imaginário popular que lhe assegurasse vitórias eleitorais na condução do país. As quatro vitórias consecutivas dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) não abalaram os alicerces da hegemonia dominante. Mas assustaram a burguesia. Foi o suficiente para que ela promovesse um golpe de Estado, em 2016, para tirar Dilma Rousseff do cargo de Presidenta da República, legitimamente reeleita em 2014. Passo seguinte, ainda como reflexo da fragilidade de sua hegemonia, a burguesia não hesitou em apoiar um candidato conhecidamente desvairado, diante da possibilidade de uma nova vitória da candidatura petista.

O inominável vencedor [Jair Bolsonaro], em retribuição ao apoio massivo que recebeu da burguesia, tratou de implementar uma política econômica ultra neoliberal e de exercer seu mandato presidencial como um governo que flerta com o fascismo, para alguns, e com traços de um governo bonapartista, para outros.

Assim, entre os setores progressistas, há o entendimento, quase que unânime, que teremos uma jornada longa para derrotar o bolsonarismo que aflorou na sociedade brasileira, mesmo que Bolsonaro seja derrotado nas eleições de outubro de 2022.

Em seu livro O que é Revolução, o sociólogo marxista Florestan Fernandes perguntava-se a si mesmo qual seria o papel da classe trabalhadora em períodos defensivos e quando o proletariado é carente de meios próprios de organização e de autonomia de classe.

Ele mesmo respondia à pergunta, dizendo que esse era o tempo da classe trabalhadora promover lutas pelas reformas estruturais, a revolução dentro da ordem. E enfatizava que o envolvimento político da classe trabalhadora no aprofundamento da Revolução dentro da ordem produziria consequências socializadoras de importância estratégica.

O MST, por meio da sua luta pela Reforma Agrária Popular, uma das reformas estruturais que a classe dominante da sociedade urbano-industrial não fez, busca elevar o nível de organização e de politização da sua base social, numa perspectiva da conquista de um projeto político emancipador, socialista.

Em outra frente de luta, o MST é um dos protagonistas na construção de um Projeto Popular para o Brasil. Esse Projeto está sistematizado em torno de sete paradigmas:

    1. Vida boa para todos;
    2. Defesa da natureza como um bem comum;
    3. Construção permanentemente de uma sociedade igualitária;
    4. Valorização e respeito à diversidade social e cultural;
    5. Democracia e participação popular na gestão do Estado;
    6. Soberania e desenvolvimento em benefício do povo; e,
    7. Prática dos valores humanistas.

Esperamos que tanto o projeto político da Reforma Agrária Popular quanto o Projeto Popular para o Brasil nos ajudem a incorporar mais atores sociais e populares que assumam posições de contestação do sistema capitalista, resgatem uma matriz ético-político-cultural que permita integrar todas as demandas emancipadoras e promovam a articulação social e política dos sujeitos subalternos, como protagonistas de alternativas emancipatórias anti-imperialista e anticapitalistas. Assim, esperamos que a consolidação desse bloco histórico, em torno dos dois projetos, nos possibilite avançar no processo de conquista da hegemonia da classe trabalhadora.

 

Foto: Mídia Ninja

 

 

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