Dez teses sobre marxismo e descolonização

Dossiê no 56

 

Tricontinental and Casa de las Américas logos

 

Violeta Parra (Chile), Untitled (unfinished), 1966. Embroidery on sackcloth, 136 x 200 cm.

Violeta Parra (Chile). Sem título (inconcluso), 1966. Bordado / arpillera natural. 136 x 200 cm.

 

As obras deste dossiê são da coleção Arte de Nuestra América Haydee Santamaría, da Casa de las Américas. A Casa de las Américas, desde a sua fundação estabeleceu vínculos significativos com um grande número dos mais importantes artistas contemporâneos que, em escala internacional, foram marcando padrões no desenvolvimento das artes visuais da região. Dessa maneira, as galerias da Casa têm recebido mostras transitórias que incluíram diferentes gêneros, expressões e técnicas de várias gerações de artistas da América Latina e Caribe fundamentalmente. Muitas dessas obras, expostas inicialmente em nossas salas, premiadas nos concursos que lançados pela instituição ou doadas por seus autores, passaram a fazer parte da mencionada coleção Arte de Nuestra América Haydee Santamaría que hoje é abrigada pela Casa de las Américas, e constituem um patrimônio artístico excepcional.
Roberto Matta (Chile), Cuba es la capital (‘Cuba Is the Capital’), 1963. Soil and plaster on Masonite (mural), 188 x 340 cm. Located at the entrance to Casa de las Américas.

Roberto Matta (Chile). Cuba es la capital (mural), 1963. Terra e gesso / masonita. 188 x 340 cm. Localizado na entrada da Casa de las Américas.

 

Prefácio

 

Política cultural e descolonização no projeto socialista cubano

Abel Prieto, diretor da Casa de las Américas

 

A Revolução Cubana se impôs em um país subordinado aos Estados Unidos de todos os pontos de vista. Embora com fachada de uma República, éramos uma colônia perfeita, exemplar, em termos econômicos, comerciais, diplomáticos e políticos. E estivemos perto de também ser em termos culturais.

Nossa burguesia olhava o tempo todo para o Norte; de lá importava sonhos, esperanças, fetiches, modelos de vida. Enviava seus filhos ao Norte para estudar, com o desejo de que assimilassem o admirável espírito competitivo dos “vencedores” ianques, seu estilo, sua maneira única e superior de se estabelecer neste mundo e de subjugar os “perdedores”.

Essa “vice-burguesia”, como chamou Roberto Fernández Retamar, não se limitava a consumir avidamente qualquer produto da indústria cultural dos Estados Unidos que caía em suas mãos; não só isso. Colaborou ao mesmo tempo na divulgação, no âmbito ibero-americano, do american way of life e manteve para si parte dos lucros. Cuba era um laboratório cultural eficaz a serviço do império, concebido para multiplicar a exaltação da “nação escolhida” e sua liderança mundial.  Atrizes e atores cubanos dublavam em espanhol as mais populares séries de televisão estadunidenses, que depois inundariam o continente. De fato, estivemos entre os primeiros países da região a ter televisão — desde 1950. Parecia um salto para a frente, para o chamado “progresso”; mas era um fruto envenenado. A programação da televisão cubana, muito comercial, funcionava como uma réplica da pseudocultura made in USA, com telenovelas, jogos de beisebol das Grandes Ligas e da liga nacional, programas de competição, cópias de reality shows estadunidenses e publicidade o tempo todo. A revista Selecciones de Reader’s Digest começou a aparecer em espanhol em 1940, em Havana, com toda a sua carga venenosa, publicada por uma empresa de mesmo nome. Esse símbolo da idealização do modelo ianque e da demonização da URSS e de qualquer ideia próxima à emancipação foi traduzido e impresso na Ilha, e daqui distribuído para toda a América Latina e Espanha.

A própria imagem de Cuba que se difundia internacionalmente foi reduzida ao “paraíso” tropical fabricado pela máfia ianque e seus cúmplices cubanos. Drogas, jogos de azar, prostituição, tudo colocado a serviço do turismo VIP do Norte. Lembre-se que o projeto de Las Vegas havia sido projetado para o nosso país e a Revolução o abortou.

Fanon falou do triste papel da “burguesia nacional” – já formalmente independente do colonialismo – diante das elites das antigas metrópoles, “que se apresentam como turistas apaixonados pelo exotismo, caça e cassinos”. E acrescentou:

Se você quer uma prova dessa eventual transformação dos elementos da antiga burguesia colonial em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu na América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as jovens brasileiras ou mexicanas, as mestiças de 13 anos, Acapulco, Copacabana, são os estigmas dessa atitude da burguesia nacional (Fanon, 2011 [1961]).

Nossos burgueses, submissos “organizadores de festas” para os Ianques, fizeram todo o possível para ter Cuba culturalmente absorvida por seus senhores durante a república neocolonial. Mas houve três fatores que frearam esse processo: o trabalho das minorias intelectuais que defenderam, contra toda a maré, a memória e os valores da nação; a semeadura de princípios de José Martí e patrióticos dos professores de escolas públicas cubanas; e a resistência de nossa poderosa cultura popular, mestiça, altiva, ingovernável, nutrida pela rica herança da espiritualidade de origem africana.

Fidel, em seu discurso A História me absolverá, listou os seis principais problemas de Cuba e, entre eles, ressaltou “o problema da educação”. E ele se referia à “reforma integral do ensino” como uma das missões mais urgentes que a futura república libertada teria que empreender (Castro, 2007 [1953]).

Assim, a revolução educacional e cultural começou praticamente a partir do triunfo de 1º de janeiro de 1959. No dia 29 do mesmo mês, convocado por Fidel, um primeiro destacamento de 300 professores, 100 médicos e outros profissionais partiram para a Sierra Maestra para levar educação e saúde para as áreas mais remotas. Na mesma época, Camilo Cienfuegos e Che lançaram uma campanha para erradicar o analfabetismo nas tropas do Exército Rebelde, levando em conta que mais de 80% dos e das combatentes eram analfabetos.

Em 14 de setembro, o antigo Campo Militar de Columbia foi entregue ao Ministério da Educação para se construir ali um grande complexo escolar. A promessa de converter quartéis em escolas começava a ser cumprida: 69 fortalezas militares tornaram-se centros educacionais. Em 18 de setembro, a Lei n. 561 criou 10 mil salas de aula e entregou o credenciamento a 4 mil novos professores.

Em 1959 foram criadas instituições culturais de grande importância: o Instituto Cubano de Arte Cinematográfica e Indústria (ICAIC), a Gráfica Nacional, a Casa de las Américas, o Teatro Nacional de Cuba, com um Departamento de Folclore e uma visão sem preconceitos e antirracista sem precedentes no país. Toda essa nova institucionalidade revolucionária foi orientada para uma compreensão descolonizada da cultura cubana e universal.

Foi 1961, porém, foi o ano-chave em que uma profunda revolução educacional e cultural começou em Cuba.

É o ano em que Eisenhower rompe relações diplomáticas com nosso país. O ano em que Roa denunciou na ONU “a política de assédio, retaliação, agressão, subversão, isolamento e ataque iminente dos Estados Unidos contra o governo cubano e o povo” (Roa, 1986); o ano da invasão de Playa Girón e da luta contra grupos armados e financiados pela CIA. É o ano em que o governo dos EUA, já presidido por Kennedy, intensificou sua ofensiva para sufocar economicamente Cuba e isolá-la da Nuestra América e de todo o mundo ocidental.

1961 é também o ano em que Fidel proclama o caráter socialista da Revolução, em 16 de abril, na véspera da invasão denunciada por Roa. Algo que, levando em conta a influência na ilha do clima da Guerra Fria e da cruzada macartista, antissoviética e anticomunista, mostrou que o jovem processo revolucionário vinha conformando, a uma velocidade incrível, uma hegemonia cultural em torno do anti-imperialismo, da soberania, da justiça social, e da luta para construir um país radicalmente diferente.

Mas é igualmente o ano da epopeia da alfabetização; da criação da Escola Nacional de Instrutores de Arte; das reuniões de Fidel com representantes da intelectualidade e seu discurso fundador de nossa política cultural — Palavras aos Intelectuais; ano do nascimento da União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac) e do Instituto Nacional de Etnologia e Folclore (Castro, “Palavras aos Intelectuais”, discurso de 1961).

Quase quatro décadas depois, em 1999, na Venezuela, Fidel resumiu seu pensamento em torno do componente cultural e educativo em todo processo revolucionário verdadeiro: “Uma revolução só pode ser filha da cultura e das ideias” (Castro, 1999).

Mesmo que faça mudanças radicais, mesmo que dê terra aos camponeses e elimine o latifúndio, mesmo que construa moradias para aqueles que sobrevivem em bairros insalubres, mesmo que coloque a saúde pública a serviço de todos, mesmo que nacionalize os recursos do país e defenda sua soberania, uma revolução nunca seria completa ou duradoura se não der um papel determinante à educação e à cultura. Devemos mudar as condições materiais de vida do ser humano e devemos simultaneamente mudar o ser humano, sua consciência, seus paradigmas, seus valores.

A cultura nunca foi para Fidel algo ornamental ou uma ferramenta de propaganda — um erro frequente ao longo da história entre os líderes da esquerda. Ele a via como uma energia transformadora de alcance excepcional, que está intimamente ligada à conduta, à ética, e é capaz de contribuir decisivamente para a “melhoria humana” na qual José Martí tinha tanta fé. Mas Fidel a viu, acima de tudo, como a única maneira imaginável de alcançar a emancipação completa do povo: o que lhes oferece a possibilidade de defender sua liberdade, sua memória, suas origens, e de desfazer a vasta teia de manipulações que fecham o caminho do dia a dia. O cidadão educado e livre que está no centro da utopia de Martí e Fidel deve estar preparado para compreender plenamente o entorno nacional e internacional e decifrar e contornar as armadilhas das máquinas da dominação cultural.

Em 1998, no VI Congresso da Uneac, Fidel concentrou-se no tema “relacionado à globalização e à cultura”. A chamada “globalização neoliberal”, disse ele, é “a maior ameaça à cultura, não só à nossa, mas à do mundo”. Devemos defender nossas tradições, nossa herança, nossa criação, contra o “instrumento mais poderoso de dominação do imperialismo”. E concluiu: “tudo está em jogo aqui: identidade nacional, pátria, justiça social, Revolução, tudo está em jogo. Essas são as batalhas que temos que lutar agora” (Prieto, 2021).

 

Enrique Tábara (Ecuador), Coloquio de frívolos (‘Colloquium of the Frivolous’), 1982. Acrylic on canvas,140.5 x 140.5 cm.

Enrique Tábara (Equador). Coloquio de frívolos, 1982. Acrílico / tela. 140,5 x 140,5 cm.

 

São, naturalmente, “batalhas” contra a colonização cultural, contra o que Frei Betto chama de “globocolonização”, contra uma onda que pode liquidar nossa identidade e a própria Revolução.

Fidel já estava convencido de que, na educação, na cultura, na ideologia, há avanços e retrocessos. Nenhuma conquista pode ser considerada definitiva. É por isso que ele retorna ao assunto no estremecedor discurso de 17 de novembro de 2005 na Universidade de Havana (Castro, Discurso na Universidade de Havana, 2005).

Fidel nos adverte que as máquinas da mídia, juntamente com a incessante propaganda comercial, vêm para gerar “respostas condicionadas”. A mentira”, diz ele, “afeta o conhecimento”; mas “a resposta condicionada afeta a capacidade de pensar”.1

Desta forma, continuou Fidel, se o Império diz que ‘Cuba é ruim’, então ‘todos os explorados do mundo, todos os analfabetos, e todos aqueles que não recebem assistência médica ou educação ou têm qualquer garantia de trabalho ou de qualquer coisa” repetem que “a Revolução Cubana é ruim”. Assim, a soma diabólica da ignorância e manipulação engendra uma criatura patética: o pobre de direita, aquele infeliz que opina, vota e apoia seus exploradores.

“Sem cultura não há liberdade possível”, repetia Fidel. Os revolucionários, segundo ele, são obrigados a estudar, a nos informar, a nutrir nosso pensamento crítico dia após dia. Essa formação cultural, juntamente com os valores éticos essenciais, nos permitirá nos libertar definitivamente em um mundo onde predomina a escravidão de mentes e consciências.

Seu apelo para “nos emancipar por nós mesmos e com nossos próprios esforços” equivale a dizer que devemos nos descolonizar com nossos próprios esforços. E a cultura é, naturalmente, o principal instrumento desse processo descolonizador de autoaprendizagem e de auto-emancipação.

Em Cuba estamos atualmente mais contaminados do que em outros momentos de nossa história revolucionária pelos símbolos e fetiches da “globocolonização”. Devemos combater a tendência de subestimar esses processos e trabalhar em duas direções fundamentais: promover intencionalmente opções culturais genuínas e promover uma visão crítica em torno dos produtos da indústria do entretenimento hegemônico.

É fundamental fortalecer a articulação efetiva de instituições e organizações, comunicadores, professores, instrutores, intelectuais, artistas e outros atores que contribuam direta ou indiretamente para a formação cultural do nosso povo. Todas as forças revolucionárias da cultura devem trabalhar de forma mais coerente. O sentido anticolonial deve ser transformado em um instinto.


 

Introdução

Em 1959, a líder revolucionária cubana Haydee Santamaría (1923-1980) chegou a um centro cultural no coração de Havana. Os revolucionários decidiram que esse edifício seria dedicado à promoção da arte e da cultura latino-americanas, tornando-se um farol para a progressiva transformação do mundo cultural do hemisfério. Renomeado Casa de las Américas, tornaria-se o coração do desenvolvimento cultural do Chile ao México. A arte preenche as paredes da casa e, em um prédio adjacente, fica o enorme arquivo de correspondência e rascunhos dos escritores mais importantes do século passado. A arte da Casa ilustra este dossiê. O atual diretor da Casa, Abel Prieto – cujas palavras abrem este dossiê – é romancista, crítico cultural e ex-ministro da cultura. Sua tarefa é estimular a discussão e o debate no país.

Ao longo da última década, os intelectuais cubanos foram cativados pelo debate sobre descolonização e cultura. Desde 1959, o processo revolucionário cubano estabeleceu – aum altocusto – a soberania política da ilha e lutou contra séculos de pobreza para consolidar sua soberania econômica. Desde 1959, sob a liderança das forças revolucionárias, Cuba procurou gerar um processo cultural que permitisse aos 11 milhões de habitantes da ilha romper com a asfixia cultural herdada do imperialismo espanhol e estadunidense. Seis décadas depois de sua revolução, é possível dizer que Cuba é soberana em termos culturais? O balanço sugere que a resposta é complexa, pois a investida da produção cultural e intelectual dos EUA continua atingindo a ilha, tal como os furacões anuais.

Nesse sentido, a Casa de las Américas vem realizando uma série de encontros sobre o tema da descolonização. Em julho de 2022, Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, deu uma palestra que se baseou no trabalho que está sendo produzido pelo Instituto Tricontinental. Este dossiê n. 56, Dez teses sobre marxismo e descolonização, foi extraído dessa palestra, expandindo os temas ali abordados.


Antonio Seguí (Argentina), Untitled, 1965. Oil on canvas, 200 x 249 cm.

Antonio Seguí (Argentina). Sem título, 1965. Óleo / tela, 200 x 249 cm.

 

Dez teses sobre marxismo e descolonização

 

Tese um: o fim da História

O colapso da URSS e do sistema estatal comunista na Europa Oriental em 1991 veio junto de uma terrível crise da dívida no Sul Global que começou com a moratória do México em 1982. Esses dois eventos – o fim da URSS e a debilidade do Projeto do Terceiro Mundo – depararam-se com o ataque do imperialismo estadunidense e com um projeto de globalização impulsionado pelos EUA na década de 1990. Para a esquerda, foi uma década de fragilidade, pois nossas tradições e organizações experimentaram dúvidas e não conseguiram avançar facilmente suas posições em todo o mundo. A história havia acabado, diziam os ideólogos do imperialismo, sendo a única possibilidade pela frente o avanço do projeto estadunidense. A pena infligida à esquerda pela rendição da liderança soviética foi pesada e levou não apenas à dissolução de muitos partidos de esquerda, mas também ao enfraquecimento da confiança de milhões de pessoas em relação ao pensamento marxista.

 

Tese dois: a batalha de ideias

Durante a década de 1990, o presidente cubano Fidel Castro convocou seus compatriotas a se engajarem em uma “batalha de ideias”, expressão emprestada de A Ideologia Alemã (1846), de Karl Marx e Friedrich Engels. O que Castro quis dizer com essa frase é que as pessoas de esquerda não tinham que se encolher diante da maré crescente da ideologia neoliberal, mas confiar no fato de que o neoliberalismo é incapaz de resolver os dilemas básicos da humanidade. Por exemplo, o neoliberalismo não tem resposta para a persistente mazela da fome: 7,9 bilhões de pessoas vivem em um planeta com comida suficiente para 15 bilhões, no entanto, cerca de 3 bilhões de pessoas têm dificuldade para comer. Esse fato só pode ser resolvido pelo socialismo e não pela indústria da caridade.1 A batalha de ideias se refere à luta para evitar que os difíceis dilemas de nosso tempo – e as soluções apresentadas para resolvê-los – sejam definidos pela burguesia. Em vez disso, as forças políticas do socialismo devem procurar oferecer uma avaliação e soluções muito mais realistas e confiáveis. Por exemplo, Castro falou nas Nações Unidas em 1979 com grande sentimento sobre as ideias de “direitos humanos” e “humanidade”:

Fala-se muitas vezes de direitos humanos, mas também é necessário falar de direitos da humanidade. Por que algumas pessoas deveriam andar descalças para que outras possam viajar em automóveis luxuosos? Por que alguns devem viver por 35 anos para que outros possam viver por 70? Por que alguns devem ser miseravelmente pobres para que outros possam ser excessivamente ricos? Falo em nome das crianças do mundo que não têm um pedaço de pão. Falo em nome dos doentes que não têm remédio. Falo em nome daqueles cujo direito à vida e à dignidade humana foi negado.2

Quando Castro voltou à batalha de ideias na década de 1990, a esquerda foi confrontada por duas tendências inter-relacionadas que continuam a criarproblemas ideológicos em nosso tempo:

  1. Pós-marxismo. Floresceu uma ideia de que o marxismo estava muito focado em “grandes narrativas” (como a importância de transcender o capitalismo para o socialismo) e histórias fragmentadas seriam mais precisas para entender o mundo. As lutas da classe trabalhadora e do campesinato para ganhar poder na sociedade e nas instituições estatais eram vistas como apenas mais uma falsa “grande narrativa”, enquanto a política fragmentada das organizações não governamentais era vista como mais viável. O deslocamento da perspectiva de poder para a de prestação de serviços e para uma política de reformas foi feito em nome de ir além de Marx. Mas esse argumento – ir além de Marx – era realmente, como apontou o falecido Aijaz Ahmad, um argumento para retornar ao período anterior a Marx, negligenciar os fatos do materialismo histórico e a possibilidade em ziguezague de construir o socialismo como a negação histórica da brutalidade e da decadência capitalista. O pós-marxismo foi um retorno ao idealismo e ao perfeccionismo.
  2. Pós-colonialismo. Setores da esquerda começaram a argumentar que o impacto do colonialismo era tão grande que nenhuma transformação seria possível, e que a única resposta para o que poderia vir depois do colonialismo era um retorno ao passado. Tratavam o passado, como o marxista José Carlos Mariátegui argumentou em 1928 sobre a ideia de indigenismo, como destino e não como recurso. Várias vertentes da teoria pós-colonial se desenvolveram, algumas delas oferecendo insights genuínos, muitas vezes extraídos dos melhores textos de intelectuais patrióticos das novas nações pós-coloniais e da tradição revolucionária de libertação nacional (ancorada por escritores como Frantz Fanon). Na década de 1990, a tradição pós-colonial, que antes estava comprometida com a mudança revolucionária no Terceiro Mundo, foi agora varrida pelas correntes universitárias do Atlântico Norte que favoreciam a impossibilidade revolucionária. O afro-pessimismo, uma parte dessa nova tradição, apontava para – em sua versão mais extrema – uma paisagem desolada de “morte social” para os afrodescendentes, sem possibilidade de mudança. O pensamento decolonial ou decolonialidade aprisionou-se ao pensamento europeu, aceitando a afirmação de que muitos conceitos humanos – como a democracia – são definidos pela “matriz do poder” colonial ou “matriz da modernidade”. Os textos do pensamento decolonial retornaram repetidamente ao pensamento europeu, incapazes de produzir uma tradição que estava enraizada nas lutas anticoloniais de nosso tempo. A necessidade de mudança foi suspensa nessas variantes do pós-colonialismo.

A única descolonização real é o anti-imperialismo e o anticapitalismo. Não é possível descolonizar sua mente a menos que você também descolonize as condições de produção social que reforçam a mentalidade colonial. O pós-marxismo ignora o fato da produção social, bem como a necessidade de construir riqueza social que deve ser socializada. O afro-pessimismo sugere que tal tarefa não pode ser realizada por causa do racismo permanente. O pensamento decolonial vai além do afro-pessimismo, mas não pode ir além do pós-marxismo, deixando de ver a necessidade de descolonizar as condições de produção social.

 

Antonio Martorell (Puerto Rico), Silla (‘Chair’), n.d., edition unknown. Woodcut. 100 x 62 cm

Antonio Martorell (Porto Rico). Silla, s/f. Xilografia. 1000 x 620 mm. Ed. s/n.

 

Tese três: um fracasso da imaginação

No período de 1991 ao início dos anos 2000, a ampla tradição do marxismo de libertação nacional se sentiu esmagada, incapaz de responder às dúvidas semeadas pelo pós-marxismo e pela teoria pós-colonial. Essa tradição do marxismo não tinha mais o tipo de apoio institucional fornecido em um período anterior, quando movimentos revolucionários e governos do Terceiro Mundo se ajudavam e quando até as instituições das Nações Unidas trabalhavam para promover algumas dessas ideias. As plataformas que se desenvolveram para germinar formas de internacionalismo de esquerda – como o Fórum Social Mundial – pareciam não querer ser claras sobre as intenções dos movimentos populares. A palavra de ordem do Fórum Social Mundial, por exemplo, era “outro mundo é possível”, o que é uma afirmação fraca, já que esse outro mundo também poderia ser o fascismo. Havia pouco apetite para lançar em uma palavra de ordem mais precisa, como “o socialismo é necessário”.

Um dos grandes males do pensamento pós-marxista – que obteve muitas de suas munições de formas de anarquismo – tem sido a ansiedade purista sobre o poder do Estado. Em vez de usar as limitações do poder estatal para defender uma melhor gestão, o pensamento pós-marxista tem argumentado contra qualquer tentativa de assegurar o poder sobre o Estado. Esse é um argumento feito a partir do privilégio daqueles que não têm que sofrer os fatos obstinados da fome e do analfabetismo, que afirmam que formas de ajuda mútua ou caridade em pequena escala não são “autoritárias”, como projetos estatais para erradicar a fome. Trata-se de um argumento purista que acaba por renunciar a qualquer possibilidade de abolir a persistente mazela da fome e outras agressões à dignidade e ao bem-estar humanos. Nos países mais pobres, em que as pequenas formas de caridade e ajuda mútua têm um impacto insignificante nos enormes desafios que a sociedade enfrenta, a única garantia é a tomada do poder do Estado e o uso deste poder para erradicar fundamentalmente a desigualdade e a miséria.

Abordar a questão do socialismo requer uma consideração atenta das forças políticas que devem ser acumuladas para confrontar a burguesia em sua hegemonia ideológica e controle do Estado. Essas forças sofreram um revés importante quando a globalização neoliberal reorganizou a produção em uma linha de montagem global a partir da década de 1970, fragmentando a produção industrial em todo o mundo. Isso enfraqueceu os sindicatos nos setores mais importantes e de alta densidade e invalidou a nacionalização como uma possível estratégia para construir o poder proletário. Desorganizada, sem sindicatos, com longos deslocamentos e jornadas de trabalho, toda a classe trabalhadora internacional encontrava-se em situação de precariedade.3 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) refere-se a esse setor como precariado – o proletariado precarizado. Forças desorganizadas da classe trabalhadora e do campesinato, dos desempregados e dos subempregados, acham virtualmente impossível, a partir de suas lutas, construir o tipo de teoria e confiança necessárias para enfrentar diretamente as forças do capital.

Uma das principais lições para os movimentos de trabalhadores e camponeses vem das lutas que estão sendo incubadas na Índia. Na última década, houve greves gerais que envolveram quase 300 milhões de trabalhadores por ano; em 2020-2021, milhões de agricultores fizeram uma greve de um ano que forçou o governo a retirar suas novas leis que “uberizavam” o trabalho agrícola. Como o movimento dos agricultores e o movimento sindical conseguiram fazer isso em um contexto em que há uma densidade sindical muito baixa e mais de 90% dos trabalhadores estão no setor informal?  Por causa das lutas lideradas pelos trabalhadores informais – principalmente mulheres trabalhadoras do setor de cuidados – os sindicatos começaram a assumir as questões dos trabalhadores informais – novamente, principalmente trabalhadoras – como questões de todo o movimento sindical ao longo das duas últimas décadas. As lutas pela permanência no posto de trabalho, por contratos salariais adequados, por dignidade para as mulheres trabalhadoras etc., produziram uma forte unidade entre todas as diferentes frações de trabalhadores. As principais lutas que temos visto na Índia são lideradas por esses trabalhadores informais, cuja militância é agora canalizada através do poder organizado das estruturas sindicais. Mais da metade da força de trabalho global é composta por mulheres – mulheres que não veem questões que lhes dizem respeito como questões apenas suas, mas como questões pelas quais todos os trabalhadores devem lutar e vencer. O mesmo ocorre em questões relativas à dignidade dos trabalhadores em relação às questões raciais, de casta e outras diferenciações sociais. Ademais, os sindicatos vêm abordando questões que impactam a vida social e o bem-estar da comunidade fora do ambiente de trabalho, defendendo o direito à água, à rede de esgoto, à educação das crianças e contra todo tipo de intolerância. Essas lutas “comunitárias” são uma parte integral da vida dos trabalhadores e camponeses; ao ingressar nelas, os sindicatos estão se enraizando no projeto de resgate da vida coletiva, construindo o tecido social necessário para o avanço rumo ao socialismo.

 

Tese quatro: retorno às fontes

É hora de recuperar e retornar à melhor da tradição marxista de libertação nacional. Essa tradição tem suas origens no marxismo-leninismo, que sempre foi ampliado e aprofundado pelas lutas de centenas de milhões de trabalhadores e camponeses das nações mais pobres. As teorias dessas lutas foram elaboradas por pessoas como José Carlos Mariátegui, Ho Chi Minh, EMS Namboodiripad, Claudia Jones e Fidel Castro. Há dois aspectos centrais nessa tradição:

  1. Das expressão “libertação nacional”’, obtemos o conceito-chave de soberania. O território de uma nação ou região deve ser soberano contra a dominação imperialista.
  2. Da tradição do marxismo, obtemos o conceito-chave de dignidade. A busca pela dignidade implica uma luta contra a degradação do sistema salarial e contra as velhas e condenáveis hierarquias sociais herdadas (incluindo as de raça, gênero, orientação sexual etc.).

 

Alirio Palacios (Venezuela), Muro público (‘Public Wall’), 1978. Oil on canvas, 180 x 200 cm.

Alirio Palacios (Venezuela). Muro público, 1978. Óleo / tela. 180 x 200 cm.

 

Tese cinco: marxismo “levemente esticado”

O marxismo entrou nas lutas anticoloniais não por meio de Marx diretamente, mas mais precisamente através dos importantes desenvolvimentos que Vladimir Lenin e a Internacional Comunista fizeram da tradição marxista. Quando Fanon disse que o marxismo foi “levemente esticado” quando saiu de seu contexto europeu, era esse estiramento que ele tinha em mente.4  Cinco elementos-chave definem o caráter desse marxismo “levemente esticado” em uma ampla gama de forças políticas:

  1. Ficou claro para os primeiros marxistas que o liberalismo não resolveria os dilemas da humanidade, as persistentes mazelas da vida sob o capitalismo (como a fome e problemas sanitários). Nenhum projeto estatal capitalista colocou a solução para esses dilemas no centro de seu trabalho, deixando-o para a indústria de caridade. Os projetos do Estado capitalista levaram à abstração a ideia de “direitos humanos”; os marxistas, por outro lado, reconheceram que somente se esses dilemas fossem transcendidos é que os direitos humanos poderiam ser estabelecidos no mundo.
  2. A forma moderna de produção industrial é a pré-condição para essa transcendência, porque só ela pode gerar riqueza social suficiente que pode ser socializada. O colonialismo não permitiu o desenvolvimento das forças produtivas no mundo colonizado, impossibilitando a criação de riqueza social suficiente nas colônias para transcender esses dilemas.
  3. O projeto socialista nas colônias tinha que lutar contra o colonialismo (e, portanto, por soberania), e também contra o capitalismo e suas hierarquias sociais (e, portanto, por dignidade). Esses continuam sendo os dois aspectos-chave do marxismo de libertação nacional.
  4. Devido à falta de desenvolvimento do capitalismo industrial nas colônias e, portanto, de um número suficientemente grande de trabalhadores industriais (o proletariado), o campesinato e os trabalhadores agrícolas tiveram que ser uma parte fundamental do bloco histórico do socialismo.
  5. É importante registrar que as revoluções socialistas ocorreram nas partes mais pobres do mundo – Rússia, Vietnã, China, Cuba – e não nas partes mais ricas, onde as forças produtivas estavam mais desenvolvidas. A tarefa dual das forças revolucionárias nos Estados mais pobres que conquistaram a independência e instituíram governos de esquerda era construir as forças produtivas e socializar os meios de produção. Os governos desses países, moldados e apoiados pela ação pública, tinham uma missão histórica muito mais complexa que qualquer coisa imaginada pela primeira geração de marxistas. Um marxismo novo e sem limites emergiu desses lugares, onde surgiu uma atitude experimental em relação à construção socialista. No entanto, muitos desses desenvolvimentos na construção socialista não foram elaborados em teoria, o que significava que a tradição teórica do marxismo de libertação nacional não estava totalmente disponível para contestar tanto o ataque pós-marxista quanto o pós-colonial à práxis socialista no Terceiro Mundo.

 

Tese seis: dilemas da humanidade

Relatórios apontam regularmente a terrível situação que o mundo enfrenta, desde a fome e o analfabetismo até os resultados cada vez mais frequentes da catástrofe climática. A riqueza social que poderia ser gasta para resolver esses profundos dilemas da humanidade é desperdiçada em armas e paraísos fiscais. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas para acabar com a fome e promover a paz exigiriam uma infusão de 4,2 trilhões de dólares por ano, mas, como está hoje, uma fração infinitesimal desse valor é gasta para atingir esses objetivos.5 Com a pandemia e a inflação galopante, ainda menos dinheiro será destinado aos ODS, e as referências que medem o bem-estar, a soberania e a dignidade humana ficarão cada vez mais distantes. A fome, o maior dilema da humanidade, não está mais ao alcance de ser erradicada (exceto na China, onde a pobreza absoluta acabou em 2021).6  Estima-se que cerca de 3 bilhões de pessoas se vejam obrigadas a lidar com a fome em suas diversas formas diariamente.7

Vejamos, por exemplo, o caso da Zâmbia e do quarto ODS: erradicar o analfabetismo. Aproximadamente 60% das crianças das crianças de 1ª a 4ª séries da província de Copperbelt não sabem ler.8 Essa é uma região que produz grande parte do cobre do mundo, metal essencial para nossos eletrônicos. Os pais dessas crianças possibilitam que o cobre vá para o mercado mundial, mas seus filhos não sabem ler. Nem o pós-marxismo nem o pós-colonialismo abordam o analfabetismo ou a determinação desses pais para que seus filhos aprendam a ler. A teoria do marxismo de libertação nacional, enraizada na soberania e dignidade, no entanto, trata dessas questões: exige que a Zâmbia controle a produção de cobre e receba pagamentos de royalties mais altos (soberania), e exige que a classe trabalhadora zambiana tenha uma parcela maior da mais-valia (dignidade). Maior soberania e dignidade são caminhos para enfrentar os dilemas que a humanidade enfrenta. Mas, ao invés de investir a riqueza social nesses avanços elementares, aqueles que possuem propriedades e exercem privilégios e poder gastam mais de 2 trilhões de dólares por ano em armas e muitos outros trilhões em forças de segurança (dos militares à polícia).9

 

Hervé Télémaque (Haiti), Fait divers, 1962. Oil on canvas, 130 x 195 cm.

Hervé Télémaque (Haiti). Fait divers, 1962. Óleo / tela. 130 x 195 cm.

 

Tese sete: a racionalidade do racismo e do patriarcado

É importante notar que, sob as condições do capitalismo, as estruturas do racismo e do patriarcado obedecem uma racionalidade. Por que é assim? Em O Capital (1867), Marx detalhou duas formas de extração de mais-valia e insinuou uma terceira. As duas primeiras formas (mais-valia absoluta e mais-valia relativa) foram descritas e analisadas detalhadamente, apontando como o roubo do tempo ao longo da jornada de trabalho extrai mais valia absoluta do trabalhador assalariado e como os ganhos de produtividade encurtam o tempo necessário para que os trabalhadores produzam seus salários e aumentam o excedente por eles produzido (mais valia relativa). Marx também sugeriu uma terceira forma de extração, escrevendo que, em algumas situações, os trabalhadores recebem menos do que seria justificável por qualquer compreensão civilizada dos salários naquela conjuntura histórica. Em O capital, Marx observou que os capitalistas tentam jogar “o salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho”, mas não discutiu essa forma com mais detalhes por causa da importância para sua análise de que a força de trabalho fosse comprada e vendida a um valor integral.10

Essa terceira consideração, que chamamos de superexploração, não é irrelevante para nossa análise, mas central na discussão do imperialismo. Como se justifica a supressão de salários e a recusa em aumentar o pagamento de royalties pela extração de matéria-prima? Por um argumento colonial de que, em certas partes do mundo, as pessoas têm expectativas de vida mais baixas e, portanto, seu desenvolvimento social pode ser negligenciado. Esse argumento colonial se aplica igualmente ao roubo de salários de mulheres que realizam trabalho de cuidado, que é não remunerado ou muito mal pago, sob a justificativa de que trata-se de “trabalho de mulher”.11 Um projeto socialista não está preso às estruturas do racismo e do patriarcado, uma vez que não requer essas estruturas para aumentar a parcela de mais valia do capitalista. No entanto, a existência dessas estruturas ao longo dos séculos, aprofundadas pelo sistema capitalista, criou hábitos difíceis de serem derrubados apenas pela legislação. Por isso, uma luta política, cultural e ideológica deve ser travada contra as estruturas do racismo e do patriarcado, luta essa que deve ser tratada com tanta importância quanto a luta de classes.

 

Tese oito: resgatar a vida coletiva

A globalização neoliberal derrotou o sentido de vida coletiva e aprofundou o desespero da atomização por meio de dois processos interligados:

  1. enfraquecimento do movimento sindical e das possibilidades socialistas embutidas na ação popular e lutas no local de trabalho enraizadas no sindicalismo.

 

Antonio Berni (Argentina). Juanito Laguna (tríptico), s/f. Colagem de madeira e metal pintado. 220 x 300 cm.

2. substituição da ideia de cidadão pela de consumidor – ou seja, a ideia de que os seres humanos são principalmente consumidores de bens e serviços, e que a subjetividade humana pode ser melhor apreciada por meiodo desejo por coisas.

O colapso da coletividade social e a ascensão do consumismo recrudescem o desespero, que se transforma em vários tipos de recuo. Dois exemplos disso são: a) um recuo para as redes familiares que não suportam as pressões impostas pela retirada dos serviços sociais, a crescente carga de trabalho de cuidado sobre a família e os tempos de deslocamento e jornadas de trabalho cada vez mais longos; b) um movimento em direção a formas de toxicidade social por meio de vias como a religião ou a xenofobia. Embora essas vias ofereçam oportunidades para organizar a vida coletiva, elas não estão organizadas para o avanço humano, mas para o estreitamento das possibilidades sociais.

Como resgatar a vida coletiva? Formas de ação popular enraizadas no auxílio social e na cultura são um antídoto essencial para essa desolação. Imagine dias de ação popular enraizada em tradições de esquerda acontecendo a cada semana e a cada mês, atraindo cada vez mais pessoas para realizarem atividades conjuntas que resgatem a vida coletiva. Uma dessas atividades é o Dia do Livro Vermelho, inaugurado em 21 de fevereiro de 2020 pela Associação Internacional de Editores de Esquerda, no mesmo dia em que Marx e Engels publicaram O manifesto do Partido Comunista em 1848. Em 2020, o primeiro Dia do Livro Vermelho, algumas centenas de milhares de pessoas em todo o mundo foram a locais públicos e leram o Manifesto em seus diferentes idiomas, do coreano ao espanhol; em 2021, devido à pandemia, a maioria dos eventos foi online e não se sabe quantas pessoas participaram da data, mas, em 2022, quase 750 mil pessoas participaram das várias atividades.

Parte do resgate da vida coletiva foi vividamente exibido durante a pandemia, quando sindicatos, organizações juvenis, organizações de mulheres e centros acadêmicos em nome do interesse coletivo em Kerala (Índia) construíram pias, costuraram máscaras, montaram cozinhas comunitárias, entregaram alimentos e conduziram pesquisas de casa em casa para que as necessidades de cada pessoa pudessem ser levadas em consideração.12

 

Tese nove: a batalha das emoções

Fidel Castro provocou um debate na década de 1990 em torno do conceito de Batalha de Ideias, a luta de classes no pensamento contra as banalidades das concepções neoliberais sobre a vida humana. Uma parte fundamental dos discursos de Fidel desse período não foi apenas o que ele disse, mas como disse, cada palavra impregnada da grande compaixão de um homem comprometido com a libertação da humanidade dos tentáculos da propriedade, privilégio e poder. Na verdade, a Batalha de Ideias não foi apenas sobre as ideias em si, mas também sobre uma “batalha de emoções”, uma tentativa de mudar o sabor das emoções de uma fixação na ganância para considerações de empatia e esperança.

Um dos verdadeiros desafios do nosso tempo é o uso da indústria cultural, das instituições educacionais  e da fé pela burguesia para desviar a atenção de qualquer discussão substancial sobre problemas reais – e sobre encontrar soluções comuns para dilemas sociais – e uma obsessão por problemas fantasiosos. Em 1935, o filósofo marxista Ernst Bloch chamou isso de “farsa da realização”, a semeadura de uma série de fantasias para mascarar sua impossível realização. O benefício da produção social, escreveu Bloch, “é colhido pelo grande estrato capitalista, que emprega sonhos góticos contra as realidades proletárias”.13 A indústria do entretenimento corrói a cultura proletária com o ácido das aspirações que não podem ser realizadas sob o sistema capitalista. Mas essas aspirações são suficientes para enfraquecer qualquer projeto da classe trabalhadora.

Uma sociedade degradada sob o capitalismo produz uma vida social impregnada de atomização e alienação, desolação e medo, raiva e ódio, ressentimento e fracasso. Essas são emoções feias que são moldadas e promovidas pelas indústrias culturais (“você também pode ter!”), establishments educacionais (“ganância é o principal motor”) e neofascistas (“ódio aos imigrantes, minorias sexuais e qualquer um outra pessoa que lhe nega seus sonhos”). O controle dessas emoções na sociedade é quase absoluto, e a ascensão dos neofascistas se baseia nesse fato. Os sentidos parecem esvaziados, talvez o resultado de uma sociedade do espetáculo que agora se esgotou.

De uma perspectiva marxista, a cultura não é vista como um aspecto isolado e atemporal da realidade humana, nem as emoções são vistas como um mundo próprio ou como estando fora dos desenvolvimentos da história. Uma vez que as experiências humanas são definidas pelas condições da vida material, as ideias de destino perdurarão enquanto a pobreza for uma característica da vida humana. Se a pobreza for superada, o fatalismo terá, então, uma base ideológica menos segura – mas não será automaticamente deslocado. As culturas são contraditórias, reunindo uma variedade de elementos de maneiras desiguais do tecido social de uma sociedade desigual que oscila entre reproduzir a hierarquia de classes e resistir a elementos da hierarquia social. As ideologias dominantes permeiam a cultura através dos tentáculos dos aparatos ideológicos como um maremoto, sobrecarregando as verdadeiras experiências da classe trabalhadora e do campesinato. Afinal, é por meio da luta de classes e das novas formações sociais criadas pelos projetos socialistas que novas culturas serão criadas – não apenas por ilusões.

É importante lembrar que, nos primeiros anos de cada um dos processos revolucionários – da Rússia em 1917 a Cuba em 1959 – a eflorescência cultural estava repleta de sensações de alegria e possibilidade, de intensa criatividade e experimentação. É essa sensibilidade que oferece uma janela para algo além das emoções macabras da ganância e do ódio.

 

Tilsa Tsuchiya (Peru), Pintura N° 1 (‘Painting N° 1’), 1972. Oil on canvas, 90 x 122 cm.

Tilsa Tsuchiya (Peru). Pintura N° 1, 1972. Óleo / tela. 90 x 122 cm.

 

Tese dez: atreva-se a imaginar o futuro

Um dos mitos duradouros da era pós-soviética é que não há possibilidade de um futuro pós-capitalista. Esse mito veio até nós saído da classe intelectual triunfalista estadunidense, cuja sensibilidade do “fim da história” ajudou a fortalecer a ortodoxia em campos como economia e teoria política, impedindo discussões abertas sobre o pós-capitalismo. Mesmo quando a economia ortodoxa não conseguiu explicar a prevalência de crises, incluindo o colapso econômico total em 2007-2008, o próprio campo manteve sua legitimidade. Esses mitos se tornaram populares por produções e programas de TV de Hollywood, em que filmes de desastres e distópicos sugerem destruição planetária em vez de transformação socialista. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que um mundo socialista.

Durante o colapso econômico, a frase “grande demais para falir” se estabeleceu na consciência coletiva, reforçando a natureza eterna do capitalismo e os perigos de até mesmo tentar abalar seus alicerces. O sistema ficou parado. A austeridade rosnou para o precário. Pequenas empresas desmoronaram por falta de crédito. E, no entanto, as massas não consideraram ir além do capitalismo. A revolução mundial não foi vista em um horizonte imediato. Essa realidade parcial sufocou tanta esperança na possibilidade de ir além desse sistema, um sistema – grande demais para falir – que agora parece eterno. Nossas tradições argumentam contra o pessimismo, afirmando que a esperança deve estruturar nossas intervenções do início ao fim. Mas qual é a base material para essa esperança? Essa base pode ser encontrada em três níveis:

  1.  A permanência da fome e do analfabetismo, a falta de moradia e indignidade, não podem ser invisibilizados. Tampouco serão silenciados aqueles a quem são negados seus direitos básicos, nem suas condições materiais desaparecerão se essas realidades não forem enfrentadas. Desolação e raiva são os produtos dessa negação.
  2. Avanços maciços na produção global – tanto na agricultura e na indústria quanto no setor de serviços – nos permitiram imaginar um mundo que transcende a necessidade e abre as portas para a liberdade. Não se pode ser livre simplesmente por um decreto legal. A liberdade exige que os fatos obstinados da vida sob o capitalismo sejam transcendidos. Por décadas, vivemos em um mundo com capacidade para atender às necessidades da humanidade.
  3.  Esses avanços maciços na produção global ocorreram não apenas por causa de melhorias na ciência e tecnologia, mas decisivamente por causa da socialização do trabalho. O que é conhecido como globalização vê todo o processo do ponto de vista do capital e do aumento dos retornos de escala. O que não reconhece é que esses avanços maciços na produção global ocorreram porque os trabalhadores agora trabalham uns com os outros através dos oceanos e que essa socialização do trabalho demonstra a integração da classe trabalhadora internacional. Essa socialização do trabalho vai contra os limites estreitos e sufocantes da propriedade privada, que retém novos avanços para seus próprios ganhos mesquinhos. O embate entre a socialização do trabalho e a propriedade privada aprofunda as lutas pela socialização da propriedade – base do socialismo moderno – como previu Marx.

O capitalismo já fracassou. Não pode enfrentar as questões básicas do nosso tempo – como a fome e o analfabetismo – que nos encaram de frente. Não basta estar vivo. É preciso ser capaz de viver e florescer. Esse é o estado de espírito que exige uma transformação revolucionária.


Precisamos recuperar nossa tradição de marxismo de libertação nacional, mas também elaborar a teoria de nossa tradição a partir do trabalho de nossos movimentos. Precisamos chamar mais atenção para as teorias de Ho Chi Minh e Fidel, EMS Namboodiripad e Claudia Jones. Eles não apenas fizeram, mas também produziram teorias inovadoras. Essas teorias precisam ser desenvolvidas e testadas em nossa própria realidade contemporânea, construindo nosso marxismo não apenas com os clássicos – que são úteis – mas com os fatos do nosso presente. A “análise concreta das condições concretas” de Lenin requer atenção especial ao concreto, ao real, aos fatos históricos. Precisamos de avaliações mais factuais de nossos tempos, uma interpretação mais fina do imperialismo contemporâneo que está impondo seu poderio militar e político para evitar a necessidade de um mundo socialista. Essa é precisamente a agenda do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, dos quase trinta institutos de pesquisa com os quais trabalhamos de perto através da Rede de Institutos de Pesquisa, e dos mais de 200 movimentos políticos cujas massas são a base do desenvolvimento de nossa agenda de pesquisa através da Assembleia Internacional dos Povos.

Certamente, o socialismo não vai aparecer magicamente. Devemos batalhar por ele e construí-lo, nossas lutas devem ser aprofundadas, nossas conexões sociais reforçadas, nossas culturas enriquecidas. Agora é a hora de uma frente única, de reunir a classe trabalhadora e o campesinato, bem como as classes aliadas, aumentar a confiança dos trabalhadores e afinar nossa teoria. Unir a classe trabalhadora e o campesinato, bem como as classes aliadas, requer a unidade de todas as forças de esquerda e progressistas. Nossas divisões neste momento de grande perigo não devem estar no centro; nossa unidade é essencial. A humanidade exige isso.

 

Osmond Watson (Jamaica), Spirit of Festival, 1972. Watercolor and varnished oil on paper, 104 x 78 cm.

Osmond Watson (Jamaica). Spirit of Festival, 1972. Pintura à agua e óleo envernizado / papel. 104 x 78 cm.


Referencias bibliográficas

 

Dez teses sobre marxismo e descolonização

Castro Ruz, Fidel. La historia me absolverá. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2007.Discurso en la Universidad de La Habana, 17 nov. 2005. Disponível em:  http://www.fidelcastro.cu/es/discursos/discurso-pronunciado-en-el-acto-por-el-aniversario-60-de-su-ingreso-la-universidad-en-el

Una Revolución solo puede ser hija de la cultura y de las ideas. La Habana: Editora Política, 1999.

Palabras a los intelectuales, 1961. Disponível em: http://www.fidelcastro.cu/es/audio/palabras-los-intelectuales.

Fanon, Frantz. Los condenados de la tierra. La Habana: Fondo Editorial Casa de las Américas, 2011 [1961].

Prieto, Abel. “‘Sin cultura no hay libertad posible’. Notas sobre las ideas de Fidel en torno a la cultura”, La Ventana, 12 ago. 2021. Disponível em: http://laventana.casa.cult.cu/index.php/2022/08/12/sin-cultura-no-hay-libertad-posible-notas-sobre-las-ideas-de-fidel-en-torno-a-la-cultura/.

Roa, Raúl. “Fundamentos, cargos y pruebas de la denuncia de Cuba”. En Raúl Roa. Canciller de la dignidad. La Habana: Ediciones Políticas, 1986.

 

Notas

 

Prefácio

1 Hoje, com o uso das redes sociais em campanhas eleitorais e em projetos subversivos, essa agudíssima observação de Fidel sobre os “reflexos condicionados” adquire muito peso.

 

Dez teses sobre marxismo e descolonização

1 Food and Agriculture Organisation, Building a Common Vision for Sustainable Food and Agriculture. Principles and Approaches (Rome: FAO, 2014); FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO, The State of Food Security and Nutrition in the World 2022: Repurposing Food and Agricultural Policies To Make Healthy Diets More Affordable (Rome: FAO, 2022), vi.2 Fidel Castro, declaração na Assembeia Geral da ONU como presidente do Movimento dos Não Linhados (MNA), 12 out. 1979. Disponível em: https://misiones.cubaminrex.cu/en/articulo/fidel-castro-human-rights-statement-un-general-assembly-capacity-nam-president-12-october.

3 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Nas ruínas do presente, documento de trabalho n. 1, 1 mar. 2018. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/working-document-1/.

4 Frantz Fanon, The Wretched of the Earth, trans. Richard Philcox. New York: Grove Press, p. 5.

5 Organisation for Economic Cooperation and Development, Global Outlook on Financing for Sustainable Development 2021, 9 nov. 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/newsroom/covid-19-crisis-threatens-sustainable-development-goals-financing.htm.

6 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Servir ao povo: a erradicação da extrema pobreza na China, 23 jul. 2021. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/studies-1-socialist-construction/.

7 FAO et al., The State of Food Security, vi.

8 Lusaka Times, ‘Over 60% Copperbelt Province Lower Primary Pupils Can’t Read and Write – PEO’, Lusaka Times, 18 jan. 2018. Disponível em: https://www.lusakatimes.com/2018/01/27/60-copperbelt-province-lower-primary-pupils-cant-read-write-peo/.

9 Stockholm International Peace Research Institute, ‘World Military Expenditure Passes $2 Trillion for First Time’, SIPRI, 25 abr. 2022. Disponível em: https://www.sipri.org/media/press-release/2022/world-military-expenditure-passes-2-trillion-first-time.

10 Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy – Volume I, trans. Ben Fowkes. London: Penguin Books, 2004, p. 670.

11Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Desatando a crise: trabalho de cuidado em tempos de coronavírus, dossiê n. 38, 7 mar. 2021. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/dossier-38-carework/.

12 Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, CoronaChoque e Socialismo, CoronaChoque n. 3. Disponível em: https://dev.thetricontinental.org/wp-content/uploads/2020/07/20200701_Coronashock-3_EN_Web.pdf.

13  Ernst Bloch. Heritage of Our Times, trans. Neville and Stephen Plaice. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1991, p. 103.

 

Esta publicação está sob uma licença Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0). O resumo legível da licença está disponível em https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/.