Beijando a morte, Ali Arkady, Mosul 2016

Queridos amigos e amigas,

Há 16 anos, nesta semana, os Estados Unidos iniciaram uma nova fase em sua guerra contra o Iraque. Vale a pena lembrar que o bombardeio massivo – chamado Shock and Awe [choque e pavor] – começou no complexo Dora Farms, nos arredores de Bagdá. As agências de inteligência dos Estados Unidos acreditavam que o presidente iraquiano Saddam Hussein estava visitando seus filhos Uday e Qusay na fazenda. Quatro bombas de 1 tonelada foram lançadas de aviões, enquanto 40 mísseis Tomahawk foram disparados contra a fazenda por quatro navios de guerra dos EUA. Todas essas armas foram fabricadas pela Raytheon, uma das maiores revendedoras de armas do mundo (sua receita em 2017 foi de 25 bilhões de dólares).

Saddam Hussein não visitava a fazenda desde 1995 e não estava lá naquela noite. As bombas mataram um civil e feriram outros 14, incluindo uma criança – segundo a Cruz Vermelha Internacional. O secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, não se desculpou pelo “erro”. “É preciso levar em conta as realidades que você encontra no mundo”, disse ironicamente. “E não fazer isso seria um erro terrível”. Em outras palavras: valeu a pena fazer o bombardeio e matar civis com base em informações errôneas.

TBT: Layla al-Attar

O desrespeito a vidas humanas em lugares como o Iraque por parte dos poderes dominantes tem uma longa história. Remonta há cem anos. No meio da carnificina está o ataque de mísseis dos EUA em Bagdá em 27 de junho de 1993, que matou a artista iraquiana e diretora do Centro Nacional de Arte Layla al-Attar. Não havia razão para matar essa artista pioneira, assim como não havia razão para matar tantos milhões de iraquianos, destruindo a vida de milhões de pessoas (incluindo a filha de Layla, Rema, que perdeu o olho no ataque).

Entre os que foram mortos pelo imenso poderio estadunidense estavam os funcionários da Reuters Namir Noor-Eldeen e Saeed Chmagh. Eles foram mortos a tiros por helicópteros Apache. Os EUA negaram participação em suas mortes até que Chelsea Manning divulgou um vídeo que esclarecia os eventos.

O governo dos EUA deteve Chelsea Manning em 8 de março para que ela não revelasse mais nada sobre o vazamento do material. “Não vou colaborar”, disse bravamente.

Memórias da guerra dos EUA no Iraque perduram. E, no entanto, como o poeta Duniya Mikhail escreve em Iraqi Nights [noites iraquianas], “no Iraque, depois de mil e uma noites, alguém conversará com outra pessoa”. Não se pode permitir que a guerra defina o país, já que os iraquianos querem construir um mundo além das guerras que destruíram tantas vidas. “As galinhas, nas aldeias, não bicam a carne humana na grama”, escreve Mikhail sobre sua esperança de que o Iraque vá além de seu sofrimento.

O nascer do sol será o mesmo

Para aqueles que acordarem

E para os que nunca acordarão

E a cada instante

Algo corriqueiro

Acontecerá

Debaixo do sol.

Mas nada corriqueiro é permitido para o Iraque. O governo dos EUA continua a ameaçar o país – dissolve milícias, não compra petróleo iraniano, detém o fluxo de mercadorias do Iraque para a Síria. Faça isso, faça aquilo. Essa é a arrogância do imperialismo com suas exigências ininterruptas de que as nações se comportem de uma maneira determinada.

O Iraque não pode se dar ao luxo de ser a marionete dos Estados Unidos. Tem sua própria história e sua própria geografia. Nesta semana, os chefes de defesa do Irã (Mohammed Baqeri), Iraque (Othman al-Ghanimi) e Síria (Ali Abdullah Ayyoub) se reuniram em Damasco (Síria) para considerar o que a saída dos EUA da Síria significará para a região. O Iraque abriu a fronteira de al-Qaim para permitir a entrada de mercadorias na Síria – incluindo produtos iranianos. Isso será uma parte vital dos planos iranianos para a reconstrução da Síria. O fato de o Iraque se recusar a parar de comprar petróleo iraniano significou que o governo dos EUA foi forçado – para evitar humilhação – a oferecer ao Iraque mais uma concessão em relação às sanções dos EUA ao Irã. O presidente iraniano, Hassan Rouhani, foi ao Iraque para acertar os planos para a construção de uma conexão ferroviária que ligará a fronteira de Shalamcheh, no Irã, até o porto sírio de Latakia. Isso é parte do setor iraniano da Iniciativa do Cinturão e Rota, liderada pela China.

Cao Fei, Housebreaker, 2004

A guerra dos EUA contra o Iraque, em 2003, começou em um momento em que os Estados Unidos pareciam inatacáveis, o país mais poderoso do mundo. Quagmire, no Afeganistão, bem como o Iraque, e a crise econômica de 2007-2008 enfraqueceu o poder dos EUA. A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e seu ataque às instituições multilaterais colocaram o país em um estado de isolamento, ou pelo menos diminuíram o que parecia ser o poder esmagador dos EUA sobre os assuntos mundiais.

A desobediência às posições dos EUA parece estar aumentando. A Turquia, aliada da Otan nos EUA, se recusou a abandonar seu sistema russo de mísseis S-400. A desobediência turca pelas exigências dos EUA não é um sinal de que o governo da Turquia tenha de alguma forma mudado sua orientação de extrema-direita, mas mostra um sinal do desgaste da autoridade norte-americana (ainda mais interessante devido aos problemas econômicos internos da Turquia, como explica E. Ahmet Tonak, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social). A Itália, membro da União Europeia e do G-7, não apenas abrirá seus portos para a Iniciativa do Cinturão e Rota, liderada pela China, incluindo o porto de Gênova, mas desenvolverá portos com a China Communications Construction e a COSCO, ambos empreendimentos estatais chineses. O medo do controle chinês sobre os portos do Mediterrâneo (também há um projeto na Grécia) fez soar os alarmes na Europa. Os europeus se sentem muito preparados para se inserir em todo o mundo, mas ficam desconfortáveis quando o jogo vira.

Rússia e a China não só conduziram uma agenda pela Eurásia e pela África, mas agora estão procurando ser muito mais ativas na América do Sul. Não são estranhas para o continente, sendo a China uma importante compradora de commodities primárias do continente na última década. A China investiu, ao longo dos últimos anos, em projetos de energia no Equador e no México, bem como em projetos rodoviários e ferroviários no Peru e na Bolívia. É dessa motivação, e não de algo especificamente político, que a China e a Rússia surgiram como importantes parceiros econômicos para a Venezuela. Bilhões de dólares foram emprestados à Venezuela e, nesta semana, o governo Maduro disse que dependerá das compras chinesas e russas de seu petróleo.

Dois dos principais importadores de petróleo da Venezuela – Estados Unidos e Índia – não receberão mais o petróleo venezuelano. É para a China e a Rússia que os navios petroleiros se moverão (como mostro em minha coluna), e é por decisões em Pequim e Moscou que os eventos se desdobram: “Nem a China nem a Rússia estão dispostas a ver os Estados Unidos derrubarem o governo da Venezuela. Ambos têm interesses comerciais no país. Ambos também buscam aprofundar uma ordem global mais diversificada, com os Estados Unidos não mais vistos como um árbitro viável. O teste de seu compromisso com a multipolaridade será verificado em como a China e a Rússia se comportarão diante da tentativa dos Estados Unidos de pressionar o Irã e a Venezuela”.

Enquanto isso, Trump encontrou seu irmão gêmeo brasileiro – Jair Bolsonaro – em Washington e sugeriu que o Brasil poderia ser incluído na aliança da OTAN (Bolsonaro, como um sinal de sua inatividade, cedeu a base espacial de Alcântara para lançamentos de satélites dos EUA). Sob essa retórica, outra realidade se apresenta. Desde 2009, a China tem sido o principal parceiro econômico do Brasil. O comércio chinês com o Brasil (102 bilhões de dólares) agora é o dobro do comércio com os EUA (57 bilhões de dólares). Isso não é necessariamente bom para o Brasil, que se posicionou como fornecedor de matérias-primas para a China (e agora está pronto, como dizemos em nosso recente dossiê, para intensificar a mineração na Amazônia além de seus limites, como mostramos em nosso dossiê). Mas essa é, no entanto, a realidade da atual economia brasileira. Bolsonaro pode dizer o que quiser na Casa Branca. Mas quando retornar ao Brasil, terá que lidar com os chineses.

A Venezuela apostou na mudança de uma ordem mundial unipolar para uma multipolar. A observação cuidadosa dos desenvolvimentos aqui é essencial, pois nos dirão o quanto a agulha da bússola se afastou do domínio americano dos assuntos mundiais em direção a uma fragmentação do poder. Mas essa fragmentação, essa multipolaridade não surgirá rápido o suficiente. Vai levar seu tempo. E tempo é algo que novos experimentos sociais não têm. Eles são atacados antes de poderem respirar. Essa é a minha avaliação do experimento socialista na Venezuela. Não foi dado tempo suficiente para superar as penalidades do passado colonial e oligárquico. O povo venezuelano deve não apenas lutar para defender sua revolução, mas também lutar para superar os fardos do passado (como a falta de diversidade econômica, imposta pela velha oligarquia). Esse foi o tema de uma entrevista que dei em Caracas no início deste mês.

Parlamento das mulheres em Kannur, Kerala, em apoio à Frente Democrática da Esquerda, 12 de março de 2019

A Índia vai às urnas no próximo mês. Centenas de milhões de pessoas farão fila para votar. Nate Singham, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, entrevistou nosso membro sênior, P. Sainath, sobre o papel das organizações de agricultores e trabalhadores agrícolas nas eleições. As organizações de mulheres lançaram uma carta de exigências para os partidos políticos. Elas rejeitam o mundo da pobreza e da violência. Elas rejeitam o estilo de “empoderamento das mulheres” do FMI, como analisa Tanya Rawal-Jindia, do Tricontinental. Elas querem acabar com o “regime de pesadelo, violência, medo, fome e desemprego”. Elas querem que o nascer do sol seja o mesmo para aqueles que estão acordados, e para aqueles que logo acordarão.

Cordialmente,

Vijay.