Policlínica Populares: A iniciativa do movimento comunista Telugo
De acordo com a Carta das Nações Unidas (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), os países são obrigados a garantir o direito à saúde. A Constituição de 1946 da Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Esses padrões modernos não garantem que todos sejam saudáveis, mas que tenham acesso a cuidados médicos, bem como à alimentação, roupas, moradia e serviços sociais necessários. O Banco Mundial e a OMS descobriram recentemente que ao menos 800 milhões de pessoas utilizam 10% de seu orçamento doméstico em gastos com saúde; pelo menos 100 milhões caíram na extrema pobreza por causa de altas despesas médicas. Surpreendentemente, esse estudo descobriu que metade da população do mundo carece de serviços essenciais de saúde.
Dados do governo indiano informam que as despesas com a saúde no país são as mais altas do mundo. Um indiano médio arca diretamente com 67,78% das despesas com saúde, enquanto a média global é de 18,2%. A cada ano, 57 milhões de indianos estão entre levados à pobreza devido a esses custos médicos. O maior item isolado entre eles é a compra de medicamentos. Ao longo das décadas, o governo indiano demonstrou falta de disposição em fornecer os recursos necessários para resolver essa crise na área da saúde. As despesas de saúde per capita da Índia na última década são inferiores ao valor gasto em outros países.
O movimento comunista indiano – que completa cem anos este ano – fez diversas experiências de Policlínicas Populares (PP), espaços que fornecem assistência médica gratuita ou a custo reduzido a qualquer pessoa. O epicentro dessa experiência foi na região de língua telugo – incluindo o atual estado de Andhra Pradesh e Telangana (com população atual de 85 milhões de pessoas). Este dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social se centra na história das policlínicas nessa região.
Comunistas e saúde
Séculos de domínio colonial degradaram as condições de vida da grande maioria daqueles que vivem no sul da Ásia. Apesar da justificativa de que os colonizadores haviam chegado para “civilizar” a população, quando os britânicos saíram do sul da Ásia, a fome, epidemias e analfabetismo continuavam a atingir negativamente a população. Quando o movimento comunista se desenvolveu há cem anos, precisou levar a sério a questão do alívio imediato de todos esses males agravados por séculos de domínio colonial, e também a questão do poder político, o que o levou a organizar sindicatos de trabalhadores agrícolas e de camponeses, sindicatos de operários, além de partidos políticos. As demandas por reforma agrária e salários mais altos acompanharam iniciativas concretas de combate à fome e epidemias.
Durante a Segunda Guerra Mundial, muitas partes da Índia foram afetadas por uma fome terrível – em parte devido ao descaso colonial em relação à infraestrutura agrária e em parte devido ao envio de grãos do subcontinente para alimentar tropas europeias. Milhões morreram na fome de 1943, principalmente em Bengala, mas também na região de língua telugo. Nessa última, os comunistas tiveram a iniciativa e arrecadaram fundos para abrir centros de distribuição de mingau. O Partido Comunista da Índia (PCI), sob a liderança de P. Sundarayya, mobilizou militantes e voluntários para consertar o sistema de canais que havia sido completamente negligenciado pelas autoridades coloniais. Como resultado da degradação dos canais, enormes extensões de terra fértil permaneceram sem cultivo, o que contribuiu para a escassez de alimentos. Os comunistas combateram manualmente o assoreamento no sistema de canais do rio Krishna e fizeram importantes reparos para a irrigação dos campos.
Ao mesmo tempo, o PCI começou a prestar assistência médica em aldeias onde as pessoas morriam em tenra idade devido a problemas de saúde facilmente evitáveis e tratáveis. Nos anos 1930, Sundarayya começou um pequeno ambulatório em sua aldeia, que fornecia tratamento básico de primeiros socorros – como limpeza e curativos para ferimentos – bem como remédios para doenças comuns. Os pacientes que precisavam de tratamentos mais elaborados eram encaminhados para policlínicas com médicos mais especializados. Sundarayya, por sua experiência pessoal, considerou que o movimento comunista deveria incentivar e inspirar médicos a servir em áreas rurais, onde o acesso à assistência médica era mínimo. Ele pediu a seu irmão mais novo, Ramachandra Reddy, que estudasse medicina para prestar assistência médica à classe trabalhadora.
A fase inicial
O objetivo dessa Policlínica ou hospital era tratar todos que demandassem cuidados de saúde; não era uma preocupação da Policlínica se o paciente podia pagar pelo tratamento ou medicamentos (embora se solicitasse pagamento aos que tinham condições). Dr. Ram abriu uma Policlínica em Nellore, na década de 1940, embora não tivesse dinheiro para iniciá-la, pois, assim como seu irmão – Sundarayya –, havia dado todo seu dinheiro ao Partido Comunista. O irmão mais velho deles, Venkata Ramana Reddy, deu a ele 5 mil rúpias para iniciar a Policlínica. Ram trabalhou com os médicos Suguna e Somayya, bem como com Rahim, um farmacêutico e assistente hospitalar, nessa primeira Policlínica Popular. Se o Dr. Ram visse uma pessoa doente – especialmente os gravemente enfermos –, ele a trazia para a Policlínica em um riquixá [veículo de tração humana, similar a uma bicicleta, mas com um assento na parte traseira] e a tratava. A Policlínica funcionou sem maiores problemas, mas teve que ser fechada quando os médicos foram convocados a ingressar ao Exército.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo colonial britânico na Índia exigiu que os médicos se alistassem para aumentar os reforços na guerra. Os médicos Ram, Suguna e Somayya foram a Madras (hoje Chennai) se apresentar ao serviço militar. Em 1942, o governo colonial britânico convidou Dr. Suguna e Dr. Somayya para servir nas Forças Armadas. Dispensaram Dr. Ram, provavelmente porque ele era comunista, e seu irmão – Sundarayya –, um dos principais comunistas do país. Dr. Ram trabalhou no Stanley Hospital (Madras), onde estudou para ser um cirurgião mestre e participou ativamente do movimento pela liberdade. Em 1943, foi à Bengala afetada pela fome para trabalhar nos esforços de alívio.
A luta armada em Telangana começou sob a liderança dos comunistas logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e ocorreria de 1946 a 1951. A região não estava formalmente sob o domínio colonial britânico, mas era um estado principesco sob o domínio dos Nizams; os colonizadores britânicos tinham soberania sobre eles, que lhes pagavam tributos (os Nizams, graças às minas de diamante de Golconda, estavam entre as pessoas mais ricas do mundo). Os camponeses, os trabalhadores agrícolas e os pobres rurais de Telangana sofreram sob o jugo opressor da classe proprietária. Sob a liderança do Partido Comunista, eles pegaram em armas contra o regime dos Nizams e dos proprietários de terra.
Dr. Ram se envolveu na luta armada a partir de 1946. Ele supervisionou a logística do PCI, embora não pegasse em armas, pois ia contra seu juramento de médico de não tirar a vida de um ser humano. Ele prestou serviços médicos cruciais a ativistas clandestinos e ficou conhecido como um médico comunista, ao lado de seus companheiros, incluindo o Dr. Ramadas, que foram para as florestas para tratar combatentes feridos. Durante esse período, a Policlínica Popular de Nellore era frequentemente forçada a fechar temporariamente, pois seus médicos estavam fornecendo auxílio à luta armada.
Socorristas
O colonialismo britânico deixou para trás um sistema de saúde em ruínas. Em 1951, a proporção médico-população era muito baixa – apenas 50 mil médicos em um país de 360 milhões de habitantes – um médico para cada 7.200 pessoas. A situação é melhor hoje, com um médico para cada 1.457 habitantes, embora esteja abaixo da recomendação da OMS (um médico para cada mil pessoas) e exista imensas variações regionais e de classe ocultadas nessa proporção. O Estado latifundiário-burguês – que não fez dos cuidados de saúde uma prioridade – é o culpado por essa realidade. No entanto, o país conduziu uma agenda para a criação de unidades públicas rurais de saúde, denominadas Centros Primários de Saúde. Em 1955, havia apenas 77 deles; em 2011, esse número havia aumentado para 23.887, destinados a atender uma população de 1,3 bilhão. Esses centros enfrentam escassez de médicos, muitos dos quais não se sentem motivados a trabalhar em áreas rurais (onde está 68% da população). Serviços de saúde rural – inclusive por meio da Missão Nacional de Saúde Rural do governo indiano (lançada em 2013) – são essenciais em um país como a Índia, onde os pobres rurais não podem se dar ao luxo de viajar a áreas urbanas para ter atendimento médico.
Nos anos 1950, Dr. Ram ajudou a criar um programa para treinar voluntários na área da saúde. Epidemias de cólera, que ceifaram milhares de vidas, poderiam ter sido facilmente superadas com a prestação de cuidados primários de saúde. Os pobres rurais sofrem terrivelmente com essas epidemias, e sofrem ainda mais profunda- mente por conta do desrespeito do Estado por seu destino. Quando a cólera ou qualquer outra epidemia visita os bairros dos dalits (casta anteriormente chamada de “intocáveis”), eles são ainda mais condenados ao ostracismo por outras comunidades e proibidos de deixar seu setor da cidade (inclusive para ir à feira semanal local). Isso não apenas leva a altas taxas de mortalidade, mas também à destruição econômica. Os problemas, portanto, não são apenas médicos, mas também sociais. Dr. Ram reconheceu que 90% das doenças que afetavam os pobres rurais não necessitavam dos serviços de um médico; cuidados primários e campanhas sociais contra o sistema de castas, por exemplo, seriam suficientes em muitos casos. A partir dessa perspectiva, Ram trabalhou para construir um movimento chamado Socorristas.
Militantes do Partido Comunista, jovens das aldeias e professores se juntaram ao movimento. Ram treinava grupos de quinze a vinte voluntários por um período de quatro semanas na Policlínica Popular de Nellore. Os estagiários ali trabalhavam durante o dia para obter uma compreensão prática dos problemas médicos, incluindo como diagnosticar doenças, como administrar medicamentos e injeções; à noite, aprendiam a teoria da medicina, incluindo um entendimento básico da etiologia das doenças. Os estudantes também recebiam alimentação e hospedagem.
Dr. Ram e sua equipe treinaram cerca de três mil socorristas, muitos dos quais foram para as aldeias e começaram a realizar tratamentos e prestar primeiros socorros. Naqueles dias, injeções em áreas urba- nas custavam 1 rúpia, o que era inacessível para a população rural. Os socorristas forneceram aos moradores injeções a 25 centavos – um quarto do custo nas áreas urbanas. Se houvesse um problema médico particularmente sério, eles encaminhavam o paciente a um especialista.
Dr. Rajeshwar Rao, atual chefe administrativo do hospital, disse ao Instituto Tricontinental de Pesquisa Social que recentemente houve uma expansão do programa de treinamento em primeiros socorros nas áreas tribais de Andhra Pradesh. Nelas, ocorrem fre- quentes crises sanitárias devido a epidemias. O primeiro grupo de estudantes voluntários em áreas tribais se unirá em fevereiro de 2020 e trabalhará por três meses; eles tomarão um conjunto de medidas para ajudar a prevenir epidemias e cuidar daqueles que foram impactados pela crise sanitária de longo prazo na região.
Instalação permanente
Até 1953, Dr. Ram administrava o hospital sozinho. Naquele ano, o Dr. Sesha Reddy, sobrinho de Ram, ingressou na Policlínica Popular de Nellore. Depois de terminar o curso de Medicina, Reddy ingressou ao Partido Comunista como militante em tempo integral. O Partido Comunista da Índia (Marxista) ou PCI (M), que saiu do PCI em 1964, destacou o valor de seu trabalho como médico, aconselhando-o a praticar sua atividade política por meio da medicina, em vez de desistir dela para se tornar um militante em tempo integral. Ser médico do povo é uma atividade revolucionária, Sundarayya lhe disse.
Foi o Dr. Reddy quem institucionalizou a Policlínica Popular de Nellore. Geyanand, um dos médicos que esteve na Policlínica na década de 1980, refere-se ao espaço como um experimento único – nada como ela existe no país. É uma instituição politicamente ativa, que frequentemente intervém em problemas sociais em Nellore. Altamente respeitada pelo povo, a Policlínica tem estatura moral para acalmar tensões socialmente tóxicas, sendo particularmente conhecida por seu trabalho sobre harmonia comunitária. Dr. Ram e seu assistente hospitalar, Rahim, eram conhecidos como “a dupla Ram-Rahim”, sendo Ram de origem hindu e Rahim de origem muçulmana.
Apenas um diploma médico básico
A Policlínica em Nellore começou como um pequeno espaço em uma casa de palha com apenas três médicos. Hoje é um hospital com 60 médicos e 250 leitos para pacientes internados, administrado por um grupo com 25 membros. Após a morte de Dr. Ram, em 1967, o hospital foi renomeado para homenageá-lo. O primeiro novo complexo hospitalar foi construído em 1984 e inaugurado pelo líder do PCI (M), Harkishan Singh Surjeet.
Desde a sua criação, disponibilizar medicina moderna aos pobres a preços acessíveis tem sido o lema orientador da Policlínica Popular de Nellore. No contexto indiano, foi decidido que um diploma básico de médico (MBBS, sigla em inglês) – normalmente um programa de cinco anos – é suficiente para tratar quase todas as doenças e males que afetam a maioria das pessoas. A Policlínica Popular da Nellore iniciou um curso de treinamento de três anos para aqueles que concluíram o MBBS, que depois estudam para se tornar clínico geral. A Policlínica ensina esses médicos sobre procedimentos básicos em todas as áreas da especialização médica, para que possam fornecer alguns dos cuidados necessários aos pacientes que, de outra forma, só são prestados por especialistas (como parto). Esse curso de três anos não foi desenvolvido pelas escolas de medicina – surgiu da prática concreta da Policlínica Popular de Nellore.
O programa de treinamento prepara os médicos para atuar em áreas remotas e rurais, onde precisam prestar assistência médica por meio de uma variedade de especializações – geralmente sozinhos. Esses médicos aprendem a realizar anestesia, atendimentos de emergência e cardíacos, além de diversas cirurgias e serviço odontológico. Quase todos os problemas de saúde podem ser tratados por esses médicos que não possuem especialização formal para além do MBBS. Essa iniciativa é particularmente importante em regiões onde há escassez de especialistas sendo formados em faculdades formais. Para ajudar os médicos, a Policlínica Popular de Nellore treina voluntários da área da saúde, muitos dos quais são militantes em movimentos de esquerda. Esses voluntários passam por um curso de dois a três meses em que aprendem a administrar primeiros socorros em áreas rurais.
Desde a sua fundação, a Policlínica Popular de Nellore treinou mais de quinhentos médicos que agora prestam serviços em toda a região de língua telugo e que – nas últimas décadas – desempenharam um papel fundamental na prestação de serviços de saúde a pessoas que foram afetadas por calamidades naturais (como ciclones) e epidemias; os médicos da Policlínica Popular de Nellore costumam ser os primeiros a montar centros médicos para prestar socorro. Como parte da tentativa de enfrentar os amplos problemas que afetam a saúde humana, incluindo saúde mental, os médicos trabalham para combater superstições e gurus pseudorreligiosos que induzem as pessoas a usarem produtos não médicos. Foi a partir dessa experiência que a Jana Vignana Vedika (JVV), ou Movimento de Ciência Popular, surgiu em 1989, uma organização que busca avançar em direção ao pensamento científico e lutar contra superstições que tenham impacto negativo na saúde.
A ideia de tratar não apenas o corpo do indivíduo, mas também avaliar o impacto do ambiente no paciente, surgiu no final dos anos 1980. Tornou-se claro que a crise social gerada pelo desemprego e pela pobreza, bem como a oferta de bebida alcoólica barata (arrak, um destilado), criaram as condições para o alto consumo de álcool, o que, por sua vez, levou a uma terrível crise social e sanitária. Isso inclui taxas crescentes de violência doméstica e de doenças relacionadas ao consumo de álcool. Mulheres das áreas rurais foram às ruas para exigir que o governo banisse as bebidas no estado, o que levou ao movimento contra o arrak. A Policlínica Popular de Nellore, como resultado, vinha tratando pacientes com vários problemas relacionados ao álcool e à violência doméstica, o que a levou à vanguarda do movimento. O papel da Policlínica é uma demonstração da necessidade de os médicos participarem de campanhas públicas não apenas contra os sintomas da doença (alcoolismo), mas também contra as causas principais: desemprego, pobreza e os lucros dos que vendem álcool.
Mil pacientes por dia
Hoje, a Policlínica Popular de Nellore trata 312 mil pacientes por ano, o que corresponde a cerca de mil pacientes por dia. O ambulatório funciona das 8h às 17h, enquanto a enfermaria fica aberta 24 horas por dia, seis dias por semana (fecha apenas aos domingos). Os pacientes que precisam de tratamento podem se inscrever em um programa de associação ao longo da vida que custa 20 rúpias mensais, além de uma taxa de consulta de 50 rúpias, válida por um mês. Existem 13 departamentos ambulatoriais, 5 departamen- tos ginecológicos e um departamento cirúrgico, todos gerenciados pelos médicos seniores. Há ainda 18 unidades para pacientes internados, cada uma chefiada por um médico sênior, assistido por dois médicos residentes.
A Policlínica Popular de Nellore leva sua experiência a outros locais através de acampamentos itinerantes de saúde a cada dois meses. O hospital realiza esses acampamentos no domingo para fornecer consultas gratuitas a pessoas que não podem ir à Policlínica; esses pacientes também podem obter medicamentos para doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e epilepsia por 200 rúpias – uma fração do custo de mercado. Os testes de açúcar no sangue são feitos pela taxa de 10 rúpias.
A Policlínica concluiu recentemente um programa de saúde rural de três anos que ocorreu em quatro aldeias ao redor de Nellore, que não têm um Centro de Saúde Primário. Ao longo de três anos, uma equipe da Policlínica composta por um médico e uma enfermeira visitou essas quatro aldeias todos os dias e prestou tratamento a qualquer um que se aproximasse. Todas as noites, a equipe organizava reuniões em que apresentações audiovisuais eram compartilhadas com os moradores sobre problemas básicos de saúde, como picadas de cobra e escorpião, gastroenterite e o impacto social do tabaco e do álcool. A Policlínica também compartilhou informações sobre nutrição e distribuiu sementes para o cultivo de folhas verdes.
O hospital possui um laboratório completo que fornece resultados de exames no mesmo dia. Também possui uma máquina de raios-X digital que foi doada ao hospital pela Life Insurance Corporation, estatal indiana, quatro máquinas de eletrocardiograma e dois centros cirúrgicos. Quando um paciente obtém os resultados de seus exames, espera-se que ele visite seu médico para falar sobre eles, o que educa os pacientes em práticas da medicina moderna.
Os médicos são majoritariamente responsáveis pela administração da Policlínica. Existem 60 médicos e 444 funcionários de apoio. O hospital é financiado pela renda gerada por meio dos pagamentos feitos pelos pacientes. Apesar de cobrar 40% menos que hospitais particulares em Nellore, esse hospital popular é capaz de funcionar em um alto nível e pode pagar salários (incluindo décimo terceiro) iguais aos de grandes hospitais. A Policlínica não apenas presta serviços à população em geral; tornou-se também um centro de treinamento.
Dr. B. Rajeshwara Rao, atual diretor administrativo da Policlínica Popular de Nellore, ingressou ali em 1989. Fez seu MBBS na Kurnool Medical College – vinculada ao movimento progressista de médicos –, onde atuou no movimento estudantil. Em 2000, a Policlínica Popular de Nellore abriu a Escola de Enfermagem Dr. P. V. Ramachandra Reddy, onde 120 alunos estão matriculados no curso de três anos. Aqueles que vêm de famílias de trabalhadores industriais e agrícolas, pobres urbanos e rurais ou de famílias socialmente oprimidas podem estudar e viver na escola sem custos; o hospital ajuda a financiar a educação por meio de vários programas governamentais.
A proliferação das policlínicas
Os médicos que se formaram na Policlínica Popular de Nellore voltaram para seus distritos de origem e criaram suas próprias policlínicas. A certa altura, existiam mais de cem delas. Embora sejam iniciativas privadas, fornecem serviços de saúde a baixo custo ao povo. Essas policlínicas são encontradas em Anantapur, Zaheerabad, Hyderabad e em outros lugares. O Partido Comunista da Índia (Marxista) estabeleceu hospitais adicionais na região.
Praja Vaidyasala (Anantapur)
Os médicos P. Prasoona e M. Geyanand deixaram a Policlínica Popular de Nellore em 1990 e foram para casa em Anantapur. Lá montaram a Praja Vaidyasala (“Policlínica do Povo”). Ambos os médicos fizeram o MBBS na Kurnool Medical College, onde eram ativos no movimento estudantil. O pai de Prasoona, também militante de esquerda, trabalhou como farmacêutico na Policlínica Popular de Nellore; foi ele quem a inspirou a se formar em medicina e ingressar na Policlínica para aprofundar seu compromisso com a medicina popular. Já Dr. Geyanand se iniciou no movimento da esquerda como estudante.
O casal montou sua primeira Policlínica em um edifício de pedra que anteriormente havia sido uma fábrica de óleo. Embora as pessoas tentassem desencorajá-los a iniciar uma Policlínica própria tendo apenas seus MBBS, eles estavam totalmente preparados polí- tica e clinicamente com seu treinamento de três anos na Policlínica Popular de Nellore. Ofereciam um sistema de assistência médica que cobria o custo das consultas por um mês, no valor de 5 rúpias no momento em que a Policlínica foi aberta. Nos últimos 30 anos, o preço da consulta aumentou para 50 rúpias – uma quantia nomi- nalmente baixa. Caso o valor não possa ser pago pelo paciente, é possível pagar uma taxa reduzida de 10 rúpias. Estudantes que moram em albergues podem consultar um médico gratuitamente, caso não tenham como pagar. A Policlínica é particularmente atenciosa com os trabalhadores migrantes, que são especialmente propensos a serem discriminados por hospitais privados.
A Policlínica de Anantapur treina socorristas, inspirando-se na experiência em Nellore. Aproximadamente cem jovens já passaram pelo treinamento de três anos em primeiros socorros. Os médicos dizem que esse programa é valioso não apenas para os estagiários, mas também para o hospital, que pode ter acesso prontamente à equipe treinada. Esses socorristas treinados tornam-se profissionais médicos rurais (PMR), que fornecem atendimento básico em áreas onde não há instalações médicas disponíveis.
Agora, com o crescimento de hospitais particulares e corporativos, os PMR não são vistos como alternativas viáveis devido ao seu menor nível de formação em comparação aos médicos especializados. As pessoas preferem ir aos hospitais, mesmo que sejam mais caros. Os hospitais corporativos se aproveitam dos PMR para oferecer a eles pacientes. Como apontam Prasoona e Geyanand, as Policlínicas Populares permanecem relevantes especialmente porque o crescimento dos hospitais privados e corporativos aumentou a carga de custos de saúde para os pobres. Hospitais particulares pressionam os pacientes a realizarem uma variedade de exames médicos, geralmente desnecessários. Mas é assim que os hospitais corporativos ganham dinheiro.
As pessoas que vão às Policlínicas o fazem porque confiam na instituição e nos médicos. Sabem que essas Policlínicas não as induz a fazer gastos desnecessários; quando existem, são reduzidos ao mínimo. Nos hospitais corporativos e centros de imagem, um ultrassom custa 700 rúpias, dos quais 300 são uma “comissão” ao médico que recomenda o exame, que ainda recebe outras quantias de outros pedidos de exames. Os pacientes da Policlínica Popular de Anantapur pagam 400 rúpias, já que não há comissão. Agora que a Policlínica possui um scanner de ultrassom, cobram apenas 300 – menos da metade da taxa cobrada pelos hospitais particulares. Os membros da Associação Médica Indiana em Anantapur mantiveram a abordagem centrada nas pessoas, dos doutores Prasoona e Geyanand, como um modelo a ser elogiado e replicado.
No entanto, Prasoona e Geyanand consideram que não será fácil replicar as Policlínicas Populares no futuro. Os pacientes começaram a preferir ir a médicos especialistas nos grandes hospitais corporativos, cujas campanhas publicitárias criam imensas demandas e cuja capacidade de se tornar escoamento de recursos do governo atrai pacientes pobres. Prasoona e Geyanand sentem que as Policlínicas, isoladamente, não são o caminho do futuro; é necessário um modelo cooperativo que vincule todas as Policlínicas iniciadas pelos médicos formados na Policlínica Popular de Nellore. Essa rede desenvolveria então protocolos-padrão mínimos para a opera- ção médica e para a política das Policlínicas. Também é necessário que elas desenvolvam vínculos com especialistas que possam fornecer serviços acessíveis às pessoas, quando necessário.
Um elemento-chave do modelo policlínico popular é sua política. Os médicos que trabalham nesses tipos de instituição não estão motivados por dinheiro, mas por sua compreensão política da sociedade e da realidade de classe em relação às doenças e curas. Prasoona e Geyanand estão vinculados a movimentos de esquerda, cuja orientação lhes proporciona a determinação de manter e expandir o movimento policlínico. Dra. Prasoona concorreu e venceu as eleições para o órgão local como candidata do PCI (M); em 2011, Dr. Geyanand foi eleito como membro do conselho legislativo do distrito eleitoral de Anantapur como candidato independente apoiado pelo PCI (M) e PCI. Ambos são membros da Jana Vignana Vedika ( JVV).
A JVV, juntamente a outras organizações, desempenhou um papel ativo na mobilização de um grande número de pessoas no distrito para que se estabelecesse uma faculdade pública de medicina na cidade. A faculdade foi criada em 2000 como resultado dessas lutas. Quando o governo planejou reduzir seu financiamento e aumentar as taxas de utilização, a resposta veio em protestos. Essas mobilizações, das quais a JVV participou, fizeram o governo recuar e a estrutura de financiamento da faculdade em Anantapur permaneceu inalterada. As faculdades públicas de medicina de outros distritos que se recusavam a se unir às mobilizações, no entanto, ficaram subfinanciadas, lutando para sobreviver. A luta social e a política das Policlínicas, centrada nas pessoas, salvaram a faculdade de medicina em Anantapur, e é essa a política que inspira e dirige o trabalho da Policlínica.
Policlínica Pragati (Zaheerabad)
Dr. K. Shiva Babu fundou a Policlínica Pragati em 2004. Nos anos 1990, ele atuou no movimento estudantil de esquerda da Guntur Medical College, onde organizava o comitê de ação conjunta que lutava contra a cobrança de taxas extras em faculdades de medicina. Depois de obter o MBBS, Babu fez formação na Policlínica de Nellore de 1996 a 1999. O movimento sindical começou a crescer em Zaheerabad, cem quilômetros fora da capital do estado de Hyderabad, onde o PCI (M) achava que eram necessários médicos para ajudar os trabalhadores. Dr. Babu e Dr. K. Vijayalaxmi decidi- ram montar sua clínica em Zaheerabad. Eles atendem cerca de 80 pacientes por dia, um número que começa a se expandir à medida que a cidade cresce.
Babu disse ao Instituto Tricontinental de Pesquisa Social que o modelo das Policlínicas Populares permanece relevante apesar dos desafios. Milhões de indianos em áreas rurais e semiurbanas não têm acesso a cuidados médicos de qualidade e acessíveis. Os médicos treinados nas faculdades de medicina tradicionais não têm uma visão holística da saúde e geralmente são motivados pela especialização e pelo lucro. Eles são treinados para solicitar exames de rotina e chegam a um diagnóstico com base neles, geralmente não levando em conta outros fatores importantes como o histórico de saúde do paciente, acesso à alimentação adequada e bem-estar emocional. Médicos que são treinados na Policlínica Popular em Nellore, no entanto, enxergam uma ligação entre fatores sócio biológicos e doenças. São treinados a procurar padrões e – com base neles – são capazes de fazer um diagnóstico abrangente sem investigações caras e desnecessárias. São capazes de discernir esses padrões devido a sua experiência e trabalho clínico adquiridos na Policlínica Popular da Nellore. Os médicos residentes aprendem com os sêniores a procurar também a natureza social da doença. Essa avaliação holística é possível em grande parte devido a sua visão política de saúde e bem-estar. Esses não são conceitos individuais; ao contrário, eles estão inseridos na hierarquia social e de classe. Ajuda a que os médicos participem regularmente de campanhas públicas sobre questões de saúde na área de Zaheerabad, o que lhes permite adquirir conhecimento direto sobre as condi- ções sociais da vida e seu impacto na saúde. Essas campanhas também são conduzidas pela JVV, que vai até as pessoas para ensiná- -las sobre os perigos das doenças transmissíveis e os benefícios da higiene e nutrição.
O Hospital Popular (Pragati Nagar, Hyderabad)
Na década de 1990, os funcionários da Hyderabad Allwyn Limited, uma fábrica estatal de ônibus e urnas, estavam no sindicato afiliado ao PCI (M), a Central de Sindicatos Indianos (CITU, sigla em inglês). Os membros do sindicato decidiram abrir moradias comunitárias e criaram um coletivo chamado Associação pelo Progresso do Povo, que desenvolveu uma colônia de moradia chamada Pragati Nagar (“Colônia progresso”). Eles começaram uma escola sem fins lucrativos na colônia e esperavam montar um hospital. Allwyn fechou em 1999, mas a colônia residencial permanece intacta.
Em 2011, a associação recolheu doações e, em seguida, fez um empréstimo bancário para montar um hospital com diversas especialidades chamado Hospital Popular, uma organização de caridade cujos curadores estão associados ao movimento comunista no estado. R. Sri Ramulu, membro do PCI (M) e diretor executivo do hospital, nos disse que a instituição – que tem cem leitos e doze médicos em período integral – funciona com os fundos arrecadados com as taxas médicas. Apesar de depender de honorários, o hospital é capaz de fornecer tratamento a baixo custo. Todos os dias, em média, 250 pessoas chegam ao hospital como pacientes ambulatoriais. Mesmo para tratamento especializado, o Hospital Popular cobra metade do que um hospital corporativo; ali são cobradas 200 rúpias para ver um médico especializado. Se um paciente for a outro hospital corporativo, o valor da consulta será de 500 rúpias. Para pacientes internados, os custos são 60% menores do que os hospitais corporativos.
Praja Vaidyasalas (hospitais populares)
O Partido Comunista da Índia (Marxista) administra, por meio de uma rede de médicos progressistas, uma série de Policlínicas Populares em todo o estado de Telangana. O Partido arrecada fundos por meio de diferentes relações de confiança, a fim de manter essas Policlínicas. O Partido e a Jana Vignana Vedika trabalham para garantir tratamento médico e medicamentos de baixo custo. Essa abordagem foi desenvolvida pelo Dr. Gopalam Shivannarayana, da JVV.
Em Khammam, um distrito em Telangana, onde o PCI (M) tem um movimento forte, o Partido organiza quatro acampamentos médicos por mês. Neles, os médicos fornecem consultas e medicamentos, geralmente para pacientes em condições crônicas como diabetes e hipertensão – doenças cada vez mais comuns, mesmo nas áreas rurais. O custo para um mês inteiro é de 100 rúpias, enquanto o custo dos medicamentos no mercado varia de 1500 a 3000 rúpias. O PCI (M) organiza a oferta de medicamentos genéricos a baixo custo. Todo mês, cerca de 2 mil pessoas visitam esses acampamentos. Cada paciente é tratado por 1200 rúpias (valor anual), em vez dos 27 mil que teriam que desembolsar em um hospital particular; esses acampamentos reduzem os gastos com medicamentos e tratamentos em até 97%.
Bonthu Rammohan, líder do PCI (M) na área, diz que é muito importante cuidar das necessidades de saúde das pessoas. O Partido constatou que as pessoas nas aldeias não estavam cientes dos efeitos nocivos do diabetes, o que fez com que muitos perdessem mem- bros, visão e sofressem de insuficiência renal. O Partido começou a organizar acampamentos para distribuir panfletos sobre os perigos, prevenção e tratamento do diabetes. O trabalho nos acampamentos começou a se expandir para abordar outros problemas de saúde. O que foi feito em Khammam foi então replicado em Nalgonda, onde o PCI (M) estabeleceu um departamento ambulatorial e um acampamento médico mensal.
O Partido também decidiu enfrentar diretamente o alto preço dos medicamentos. Nandyala Narasimha Reddy, responsável pelas questões de saúde no Comitê Estadual de Telangana do PCI (M), disse que o partido estabeleceu uma farmácia em cada distrito do estado. Montou uma farmácia por atacado em Hyderabad que entrega remédios para as outras lojas do distrito, que podem manter uma parte das vendas para financiar suas lojas. No distrito de Nalgonda há quatro dessas farmácias.
Alternativas são possíveis
A Policlínica Popular de Nellore opera há 75 anos; nesse período, seus médicos e funcionários descobriram que ela continua sendo tão necessária agora quanto no momento em que começou. Ao longo dessas décadas, nem o governo indiano nem o de Andhra Pradesh – e agora Telangana – abordaram a necessidade de reconstruir todo o sistema de saúde para beneficiar a maioria da população. A infraestrutura de saúde do governo é fraca, os hospitais padecem de falta de pessoal e seus equipamentos estão desmoronando. O triste estado dos serviços de saúde do governo torna-se a justificativa da classe dominante para propor a privatização. Assim, o sucateamento da saúde, causada pelo próprio governo, torna-se o argumento deste para que se invista no setor privado. É exatamente o oposto da Policlínica Popular.
O uso de recursos públicos para ajudar hospitais privados é um mecanismo central de privatização do sistema de saúde. Alguns governos estaduais – incluindo Andhra Pradesh e Telangana – têm a obrigação de financiar tratamento médico para famílias cujas rendas estão abaixo da linha da pobreza. Os fundos para esses programas são desviados de financiamento para tratamento médico em geral para pagamentos por hospitalização, principalmente para cirurgias de vários tipos e para atendimento altamente especializado. As famílias pobres são internadas em hospitais particulares, que cobram do governo todas as suas despesas; mas esse reembolso só ocorre se o paciente for internado no hospital – não em um ambulatório. Com o objetivo de acessar esses fundos de seguros governamentais, os hospitais particulares admitem pacientes por problemas de saúde que não requerem hospitalização.
Como resultado, recursos preciosos do governo vão para esses hospitais privados em lugar de financiar o sistema público, que fornece serviços de atenção primária e secundária a um custo muito menor. Apenas 10% a 20% de todas as necessidades de saúde requerem cuidados terciários ou intervenção cirúrgica; a maior parte dos problemas médicos pode ser tratada com cuidados primários e secundários, que são subfinanciados. O problema é particularmente grave em regiões com problemas econômicos, principalmente em áreas tribais; onde, os hospitais privados estão ausentes; portanto, o dinheiro do governo para a assistência médica não chega às pes- soas, que agora são forçadas a sofrer silenciosamente suas doenças ou a pagar caras viagens e percorrer longas distâncias em busca de atendimento médico. Esse desvio de fundos enfraquece o sistema público de saúde. Uma grande parte dos cuidados de saúde não está sendo financiada e a falta de recursos para esse setor poderia resultar no aumento de epidemias e outras crises sanitárias evitáveis.
As Policlínicas, que enfatizam os cuidados primários e secundários, oferecem uma alternativa aos hospitais privados e apontam para a necessidade de fortalecer esse setor, em vez de transferir dinheiro para instituições lucrativas de atendimento terciário. O sentido de administrar as Policlínicas não é aumentar a caridade ao povo, mas demonstrar uma abordagem alternativa à prestação de cuidados de saúde centrada no lucro. A existência da Policlínica Popular já exerce pressão nos hospitais particulares da cidade de Nellore e arredores. Assim, as Policlínicas diminuem os custos médicos cobrados não apenas em suas próprias farmácias, hospitais e acampamentos, mas também, indiretamente, nos hospitais particulares, que são obrigados a diminuir suas taxas para competir com a Policlínica Popular. As pessoas conseguem ver a diferença entre as Policlínicas e as instituições de saúde corporativas. A existência e o sucesso das Policlínicas dão às pessoas a ideia de que uma alternativa ao sistema capitalista de prestação de serviços de saúde não é apenas possível; é realista e necessário.
Os médicos que trabalham nas Policlínica Populares entendem que seu trabalho é político. Através de sua prática, ajudam a moldar as ideias das pessoas sobre o movimento de esquerda e as possibili- dades de assistência social e aproximam as pessoas do movimento. Valores comunistas robustos se tornam forças materiais na prática dessas Policlínicas.