5 motivos para recusar o Projeto de Lei Contraterrorista
Por Ana Penido*, Pedro P. Bocca** e Rodrigo Lentz**
No dia 15 de junho, sete relatores especiais[1] da Organização das Nações Unidas (ONU) enviaram uma carta para o governo brasileiro expressando preocupação quanto às prováveis violações aos direitos humanos que a aprovação do PL1595/2019, de autoria do Major Vitor Hugo (PSL-GO), poderia acarretar. Os especialistas expressam temor quanto a: 1) possibilidades de detenções arbitrárias; 2) limitação de direitos fundamentais sob a justificação de terrorismo; 3) prejuízos a um meio ambiente limpo, saudável, seguro e sustentável; 4) violações à liberdade de opinião e expressão; 5) restrições à liberdade de associação e reunião pacífica; 6) perseguição dos defensores de direitos humanos; 7) violações ao direito à privacidade. O escritório regional para a América do Sul do Alto Comissariado de Direitos Humanos já havia se manifestado, em 25 de maio, em nota com conteúdo semelhante.
A resposta da Comissão Permanente Brasileira na ONU em Genebra, emitida apenas três dias depois, levanta basicamente dois argumentos. O primeiro é que a tramitação lenta (o projeto foi apresentado em 2019) é um indicativo de ampla discussão. Quanto a isso, apontamos que a lentidão na tramitação de projetos não é sinal de ampla discussão. A única audiência pública a respeito, ocorrida na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, não contou com a presença de parlamentares, e mesmo o propositor do PL não permaneceu no espaço, como está disponível nos vídeos da casa. O segundo argumento mobilizado pelo governo brasileiro é de que a sociedade está diante de uma nova fase do terrorismo, que ganha uma natureza comunicacional. Quanto a isso, objetamos que não identificamos uma mudança qualitativa nas ações terroristas no mundo desde 2016 [2], quando foi criada a atual legislação. Ações terroristas já eram notadamente comunicacionais, visando espalhar o terror, e não necessariamente para matar centenas de pessoas. As vítimas almejadas são aquelas que permanecem vivas e com medo, e não aquelas que vieram a óbito.
As manifestações ocorrem provocadas pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara (deputado Carlos Veras, PT-PE), que, ainda em abril, identificou a ameaça de tramitação acelerada diante da priorização da pauta pela bancada governista. No último dia 30 de junho, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), instalou uma Comissão Especial para tratar do tema, que busca dar celeridade à aprovação. A Comissão teve seus trabalhos iniciados a partir da eleição do deputado Evair Melo (PP-ES) à presidência, que designou como relator o deputado Sanderson (PSL-RS), ambos alinhados ao governo Bolsonaro. O relator propôs uma agenda com três audiências públicas durante o mês de agosto, e prevê a votação do parecer preliminar para meados de setembro.
Como apresentado, os especialistas da ONU levantam diferentes dimensões quanto às violações aos direitos humanos que um PL dessa natureza pode originar. Nesse texto, desejamos travar a discussão sobre o projeto na alçada do debate sobre política de defesa e segurança internacional. Um primeiro esforço nesse sentido já foi feito no texto “Quem é o terrorista?”, de autoria de Ana Penido e Héctor Saint-Pierre [3]. Neste artigo, destacaremos cinco motivos para que os parlamentares recusem veementemente a aprovação do PL 1595/2019 [4].
1. Uso equivocado do conceito de terrorismo
O PL 1595/2019 define em seu artigo primeiro o ato terrorista como aquele ”que seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave; e que aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”.
Os tratados internacionais descrevem certos atos de violência armada ou de ameaça terrorista, sem arriscar uma definição unívoca do termo. Também não existe um acordo multilateral sobre terrorismo, mas a ONU recomenda a sua Convenção sobre o financiamento de atos terroristas (1999), as Resoluções 1373 (2001) e 1566 (2004) do Conselho de Segurança e a Declaração sobre Medidas para Eliminar o Terrorismo Internacional, aprovadas pela Assembleia Geral6. A ONU ainda trabalha com relatórios mais específicos que propagandeiam boas práticas adotadas por países diante do tema, nos quais o Brasil nunca foi citado [5].
Estas concepções, basicamente, sugerem três questões CUMULATIVAS [6] para caracterizar ações terroristas. 1) atos, inclusive contra civis, cometidos com a intenção de causar morte ou lesões corporais graves, ou a tomada de reféns; 2) atos cometidos independentemente da natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou de outra natureza semelhante, com a finalidade de provocar um estado de terror no público em geral ou em um grupo ou pessoas particulares, intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a fazer ou se abster de praticar qualquer ato; 3) atos que constituam delitos dentro do escopo e conforme definido nas convenções e protocolos internacionais relativos ao terrorismo.
Em linhas gerais, o ato de terrorismo tem como objetivo estratégico provocar pânico, pavor incontrolável. O agente do terror pode ser um indivíduo, um grupo, outro Estado ou o próprio governo, com o objetivo de reprimir certos comportamentos sociais. A principal característica do terrorismo é difundir o medo entre a população de maneira a modular seu comportamento. E, para alcançar esse objetivo, o agente do terror escolhe a vítima tática: um indivíduo ou uma parte da população que deve morrer ou sofrer sérios danos. Note-se que a vítima estratégica visada não é quem morre, mas quem fica vivo e aterrorizado (Saint-Pierre, 2019).
Retomando a formulação do PL 1595/2019 à luz dos documentos ratificados pela ONU e das formulações acadêmicas, é importante perceber que o conceito de terrorismo precisa ter relação direta com atos de violência grave contra os cidadãos. Não existe, portanto, terrorismo contra coisas, objetos, serviços públicos essenciais ou mesmo infraestruturas críticas, sejam eles de propriedade pública ou privada. Tampouco, atividades virtuais, comumente referidas como ciberterrorismo, não se aplicam à formulação reconhecida pelo Direito Internacional. Por fim, terrorismo trata de ações, e não de intenções.
A definição de terrorismo não inclui as motivações ideológicas que levam os sujeitos ou os grupos a ação, sejam elas de cunho político, social, ideológico ou religioso; enquanto o PL constrói uma associação entre o crime de terrorismo e “alas radicais de movimentos sociais”. A associação entre tendências políticas e terrorismo não é um fenômeno novo ou exclusivo do Brasil. Pelo contrário, se tornou comum ao redor do mundo recorrer ao conceito para, nas palavras da ONU, “desacreditar movimentos políticos, éticos, regionais ou de outro tipo que os grupos no poder simplesmente não gostem”.
Também não existe um “perfil típico” de quem pode ser considerado um terrorista em potencial. A percepção de ameaças é algo relacional. Neste sentido, as pessoas não se consideram ameaçadas pelas mesmas coisas. Por isso, é impossível a proposição de realização de campanhas sistemáticas de comunicação estratégica dirigidas a públicos-alvo de interesse para ações antiterroristas, como propõe o PL, sob o risco de reforçar narrativas de estigmatizam públicos específicos, como atualmente ocorre com muçulmanos em todo o mundo. Para o Ministério Público, a possibilidade de prever antecipadamente atos terroristas está limitada a pessoas ou grupos que tenham em seus propósitos ou atividades realizar atos terroristas em sentido próprio ou facilitar sua comissão, além de levar emparelhadas as seguintes garantias: (i) necessidade de determinar os indícios razoáveis de que a entidade realizou ou conscientemente facilitou a comissão de atos de terrorismo ou deles tenha participado; (ii) procedimentos que permitam às entidades solicitar sua exclusão da lista, juntamente com o direito a recorrer a uma instância judicial e a possibilidade de instar a exclusão da lista em caso de modificação substancial das circunstâncias ou do surgimento de novos elementos relacionados com a inclusão na lista; (iii) revisão periódica da lista para determinar se seguem existindo fundamentos razoáveis para manter as entidades incluídas; e (iv) mecanismos que permitam tratar com rapidez as reclamações por identidade errônea e oferecer indenização a pessoas injustamente afetadas.
2. Chantagem
Diferentes autores que estudam as relações entre civis e militares indicam que as instituições militares costumam impor condições ao poder civil diante da possibilidade de emprego interno da força em situações que inevitavelmente geram danos de imagem à instituição, como é o caso da utilização diante de protestos sociais massivos e pacíficos. Uma das contrapartidas mais frequentemente solicitadas é a ampliação do excludente de ilicitude ou de culpabilidade, previstos no PL em seu artigo décimo terceiro. Neste cenário, as sanções para agentes do Estado que ferirem ou matarem em legítima defesa são reduzidas, o que aumenta a discricionariedade do agente na ponta da linha e, consequentemente, a letalidade das ações.
Na mesma lógica, o PL propõe a criação de uma “Medalha do Mérito Contraterrorista”. No Brasil, Joffily e Chirio (2014) [7] constataram que medalhas foram outorgadas a agentes do Estado envolvidos nas torturas durante a ditadura militar, mesmo com o final do regime dos generais, expondo um sistema de recompensas para os agentes que se envolveram nas práticas de terrorismo estatal sob a justificativa de mérito no combate.
3. Visão geopolítica anacrônica quanto às fronteiras
Uma das questões indicadas pelos segmentos favoráveis à aprovação do PL é a ampliação da entrada de estrangeiros no Brasil desde a aprovação do Estatuto do Estrangeiro. O Brasil é um país que, historicamente, recebeu e integrou (não sem violência, como nos recorda a escravização massiva de pessoas originárias do continente africano) estrangeiros das mais diversas nacionalidades. Identificar imigrantes como ameaças à segurança nacional vai, portanto, de encontro à história do país e à discussão sobre a formação social do povo brasileiro.
Apontar a permeabilidade das fronteiras nacionais à circulação de civis como um perigo é uma visão antiquada, adotada como cópia da noção de defesa nacional dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), que mantém os aeroportos abertos para receber outros anglo-saxões, mas ergue muros e campos de concentração diante da massa migrante latina às suas portas. Naquele país, como sabemos, ter fronteiras menos permeáveis à circulação de civis não levou a uma vulnerabilidade menor a ataques internacionais.
Tratar da defesa nacional é diminuir as vulnerabilidades do país (como a concentração de meios militares no Rio de Janeiro) e ampliar a capacidade de autonomia decisória do poder civil democraticamente eleito diante dos constrangimentos internacionais. Países vizinhos são parceiros para o desenvolvimento regional, e não potenciais fornecedores ou intermediadores de terroristas.
4. Desproporcionalidade para a escolha de referências de segurança, notadamente Israel
Uma das justificativas para a aprovação do PL é a parceria em defesa e segurança com EUA e Israel que se aprofundou com o governo Bolsonaro. O alto número de ataques terroristas realizados nos EUA é consequência de uma postura internacional agressiva e expansionista que o país historicamente adotou, e não fruto de uma ausência de armamentos de vigilância ou de segurança. Neste sentido, não são um parâmetro para o Brasil em termos legais, pois a Constituição de 1988 incentiva a integração e proíbe qualquer atitude expansionista do país; de resultados de sucesso no enfrentamento ao terrorismo; de postura política no tabuleiro internacional; ou de possibilidades de gastos em armamentos ou instrumentos de vigilância.
Fruto da hegemonia estadunidense nas formulações sobre defesa na América Latina [8], diversos países aprovaram leis antiterrorismo na esteira da Guerra ao Terror declarada por Washington, retomando conceitos típicos da Guerra Fria, similares ao de “inimigo interno”, camuflados pela expressão “forças adversas”.
Israel, por sua vez, é um enclave estadunidense no enorme barril de recursos estratégicos, particularmente o petróleo, em que se converteu o Oriente Médio. Assim, suas ferramentas de vigilância têm como objetivo controlar as soberanias dos demais países da região sobre seus recursos, também com intenções expansionistas. Além disso, as agências de segurança israelenses são uma referência internacional de violações aos direitos humanos (já tendo sido condenadas várias vezes na ONU), notadamente contra o povo palestino, mantido em regime de apartheid. A própria ocupação ilegal dos territórios palestinos (e sírios, como no caso das Colinas de Golã), o uso ilegítimo de violência, a criação de milhões de refugiados e as condições sub-humanas impostas à Gaza mostram que Israel não apenas não pode ser entendido como uma referência em políticas antiterroristas, mas que deve sim ser enquadrado como uma referência global do terrorismo de Estado, incorporado às políticas daquele país durante décadas.
Na comissão especial em que tramita o projeto, o deputado-relator Sanderson propôs uma audiência pública sobre práticas das nações amigas, elencando como merecedoras do convite para a mesa representantes dos EUA, Israel, Colômbia e União Europeia. A Federação Israelita do Brasil também foi lembrada para compor a mesa em uma segunda audiência pública, representando a sociedade civil. Aqui também é importante jogar luz à tentativa recente de um dos filhos do presidente brasileiro, Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), de articular a compra do software de espionagem israelense Pegasus, através de negociação paralela via Ministério da Justiça [9]. Sua compra, via governo do Brasil, se enquadra no contexto criado para a tramitação do PL 1595. Em junho de 2017, o jornal The New York Times revelou que o software era utilizado para espionar jornalistas e ativistas ao redor do mundo.
5. Oportunismo temporal
Na história nacional, a categoria “terrorismo” está diretamente relacionada à ditadura militar de 1964. Embora o termo tenha sido usado pela primeira vez pelo jornal “O Globo”, em 1965 [10], foi com a nova lei de segurança nacional de 1967 que a categoria “terrorismo” entrou na gramática da repressão política. Diretamente associada à resistência armada contra a ditadura organizada após a decretação do AI-5 em 1968 [11], o decreto-lei n° 34, de 13 de março de 1967, descrevia como terrorismo atos que impedissem ou dificultassem “o funcionamento de serviços essenciais administrados pelo Estado ou mediante concessão ou autorização”, incluindo-se atos “contra estabelecimento de crédito ou financiamento”. A depender da interpretação do agente estatal de plantão, inclusive da autoridade policial, qualquer ato contra esses patrimônios poderia ser enquadrado como terrorismo. Além disso, a categoria “terrorismo” servia como código simbólico para ações psicológicas junto à opinião pública contra a oposição aos “poderes constituídos”. Diversos foram os casos de prisão de ativistas contrários ao governo que, sob coação, passavam a fazer propaganda a favor do governo, com ampla divulgação dos “arrependimentos” em jornais e canais de televisão associados à ditadura [12].
Na América do Sul, a categoria política “terrorismo” foi largamente utilizada para legitimar a prática do terrorismo de Estado. Definido dessa maneira por um delegado britânico do escritório das Nações Unidas em Genebra [13], a noção de terrorismo de Estado representa uma prática sistemática de violência estatal que busca se legitimar pela generalização do medo na sociedade contra um inimigo comum da nação, justificando a ampliação gradual do aparato repressivo do Estado destinado à desarticulação da sociedade civil e ao controle absoluto da oposição ao governo. No caso das ditaduras de segurança nacional, o terrorismo de Estado adotou como metodologia criminal graves violações de direitos humanos, como execuções sumárias, desaparecimentos forçados, torturas, prisões arbitrárias e o ocultamento de cadáveres [14]. A respeito, basta lembrar que um dos grandes operadores do terrorismo de Estado no Brasil, o coronel do Exército Brilhante Ustra – considerado um “herói nacional” pelos atuais vice-presidente e presidente –, definiu como “terrorismo nunca mais” sua narrativa sobre a violência de Estado contra a oposição.
No plano internacional, vale também recordar que o terrorismo foi a categoria política usada pelos EUA, por meio da Organização dos Estados Americanos, para legitimar o terrorismo de Estado praticado pelas ditaduras no continente. Em 1970, conforme assentava o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mário Gibson Barbosa, em pronunciamento na Assembleia Geral da OEA, os opositores que “assaltassem bancos” e “sequestrarem diplomatas” cometiam crimes de lesa-humanidade. Na prática, trata-se de justificar uma ação conjunta no hemisfério sul de terrorismo de Estado contra os grupos armados associados ao “marxismo-leninismo” no contexto da guerra fria. E, mesmo após 1988, o marxismo seguiu associado ao “terrorismo político” nesse vocabulário [15].
O Brasil tem uma legislação recente sobre terrorismo, de 2016, alvo de polêmicas que também foram objeto de manifestação das instâncias internacionais e que redundaram no veto do Executivo federal (da então presidenta Dilma Rousseff) a itens genéricos quanto ao conceito de terrorismo, e na inclusão de um artigo para a proteção do direito de protesto.
Segundo o Ministério Público Federal, há em tramitação no Congresso Nacional 20 projetos de lei que tratam do crime de terrorismo, alterando a formulação de 2016. As iniciativas, em suma, propõem: a ampliação dos atos considerados terroristas; a possibilidade de “apologia ao terrorismo”; e a exclusão da ressalva quanto ao direito de protesto incluída pelo Executivo no momento da sua aprovação. Então por que um entre esses 20 PLs avança rapidamente?
Em sua própria justificativa, o PL 1595/2019 admite que o Brasil não é um alvo típico para ações de cunho terrorista, tratando, assim, de cenários hipotéticos. Mesmo com declarações provocativas de Bolsonaro ao Irã, na ocasião do ataque estadunidense que vitimou o general Qasem Soleimani [16], o país não é visto no cenário internacional como potencial ameaça à estabilidade de outros povos. Pelo contrário, conta com sólida tradição na mediação pacífica de conflitos.
Dessa maneira, qual a urgência para a tramitação justificaria a criação de uma Comissão Especial na Câmara em plena pandemia?
A resposta parece ser a oportunidade de criminalizar a ação política nas ruas de diferentes segmentos da sociedade que fazem oposição ao governo diante das polarizadas eleições presidenciais de 2022 e da desastrosa gestão do governo federal da pandemia da Covid-19.
Alternativas
O PL fala na criação de um sistema de enfrentamento ao terrorismo, mas, na realidade, a possibilidade de atuação interagências, integração de áreas de inteligência (inclusive policiais), entre outras ações em conjunto é possível hoje, com ou sem a aprovação deste PL. Dado o nível atual de militarização do governo, que se reflete no inchaço do Gabinete de Segurança Institucional que subordina a Agência Brasileira de Inteligência, consideramos importante ressaltar que é fundamental que essa inteligência seja civil, e não militar.
O Sistema Nacional Contraterrorista, instituído por iniciativa presidencial, seria posteriormente submetido ao controle externo do Legislativo, segundo os capítulos II e III do PL. As Unidades Estratégicas Contraterroristas e suas componentes teriam ”caráter episódico para a solução de crise pontual e específica”, e seu emprego exigiria um decreto declarando intervenção federal, estado de defesa ou de sítio. Embora uma das justificativas para o decreto seja a necessidade de interoperabilidade, o Sistema não aponta neste sentido.
Cabe pontuar que o Brasil participa do Comitê Interamericano contra o Terrorismo desde 2005, no âmbito da OEA [17]. Entendemos pertinente que, antes da criação de um novo sistema, é necessário um balanço público dos resultados do engajamento brasileiro no sistema já existente, revisando e ponderando suas atribuições.
Assim, a proposta de criação de agências antiterrorismo parece responder mais a interesses corporativos para o aumento de efetivo e estrutura (o que inevitavelmente implica em aumentos de orçamento em um momento de estrangulamento econômico) do que propriamente à integração e interoperabilidade, essas sim fundamentais para o enfrentamento não só dos hipotéticos atos terroristas, mas de crimes que já ocorrem atualmente.
O PL ainda identifica um conjunto de ações preventivas em seu artigo terceiro, que vão desde o controle de fronteiras até a infiltração de agentes públicos [18] em organizações suspeitas de levar a cabo ações terroristas. Neste ponto, o documento é bastante detalhado, chegando a propor a criação de uma “identidade vinculada de segurança”, ou, em outros termos, uma identidade falsa para agentes públicos que se tornem infiltrados; e em seu artigo décimo primeiro abre a possibilidade de vigilância e interceptação de comunicações e dados privados. Investe, portanto, na possibilidade de atos terroristas serem cometidos por civis brasileiros, que deveriam ser vigiados dentro do território nacional. Para isso, propõe a criação de um aparelho de inteligência paralelo, enfraquecendo a Polícia Federal e a própria estrutura oficial de inteligência.
Outro ponto fundamental, é identificar os critérios dos serviços nacionais de inteligência para a classificação de “organizações suspeitas”. Sem critérios objetivos e universais, esta identificação dependeria do alinhamento político e social dos indivíduos em posições de poder, e não de uma clara definição do Estado brasileiro.
Cabe pontuar que, mesmo no caso de protestos violentos, caberia isolar indivíduos que cometeram atos violentos e sujeitá-los às penalidades já previstas, como vem ocorrendo com o caso de crimes de danos. Nesses casos, não cabe um limite generalizante aos protestos, mas pode, por exemplo, ser pertinente uma investigação sobre possíveis fontes de financiamento internacionais à ações de natureza violenta em território nacional.
Entendemos que uma medida mais efetiva seria um investimento maior no controle de armamentos, algo que, sabemos, vai na contramão da atual política de flexibilização para a compra de armas e de munições adotada pelo governo federal. E não se trata apenas dos armamentos construídos originalmente com esse fim, mas de insumos que, orientados por intenções terroristas, poderiam ser empregados para esse fim. No Brasil, por exemplo, o acesso a explosivos ou agrotóxicos de forma regular ou clandestina é bastante simples. Mesmo armamentos controlados pelas forças armadas [19] são encontradas em ações de garimpeiros contra indígenas. Como apontado, o terrorismo não é algo restrito a grupos, ou a tipos de armamentos. Entretanto, o controle estreito sobre instrumentos com alto potencial ofensivo de danos em massa auxilia na prevenção a crimes que empreguem esses artefatos, como é o caso do terrorismo.
Notas
[1] Segundo reportagem de Jamil Chade, publicada no UOL (disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/06/23/nova-lei-antiterror-de-bolsonaristas-ameaca-silenciar-oposicao-alerta-onu.htm), a carta é assinada por Fionnuala Ní Aoláin (relatora sobre a proteção de direitos humanos e combate ao terrorismo), Miriam Estrada-Castillo (presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre detenção arbitrária), David R. Boyd (relator sobre direito ao meio ambiente limpo), Irene Khan (relatora sobre liberdade de expressão), Clement Nyaletsossi Voule (relator sobre direito à liberdade de associação), Mary Lawlor (relatora sobre situação de ativistas) e Joseph Cannataci (relator sobre direito à privacidade).
[2] Cabe lembrar que um grupo de relatores especiais da ONU já havia manifestado preocupação com o processo político de aprovação da Lei 13260/2016, atualmente vigente.
[3] Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/quem-e-o-terrorista/
[4] Não serão feitos comentários quanto à proporcionalidade das penalidades propostas, algo que deixamos para a análise de juristas.
[5] Informe de Abril de 2014: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2014/05/A-HRC-25-59-add.2-s.pdf
[6] https://undocs.org/en/E/CN.4/2006/98
[7] Mariana Joffily; Maud Chirio, A repressão condecorada: a atribuição da Medalha do Pacificador a agentes do aparato de segurança (1964-1985), Revista História Unisinos, v. 18, n. 3 (2014): Setembro/Dezembro.
[8] https://wagingnonviolence.org/2016/03/across-latin-american-governments-criminalize-social-movements-to-silence-dissent/
[9] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/05/19/briga-entre-militares-e-carlos-bolsonaro-racha-orgaos-de-inteligencia.htm
[10] Kushnir, 2008.
[11] Vale destacar que o primeiro levante armado contra a ditadura foi em 1965, na cidade de Três Passos/RS, liderado pelo tenente-coronel do Exército Jeferson Cardin. Ver: https://download.uol.com.br/noticias/infograficos/guerrilha/html/home.html
[12] Alessandra Gasparotto, O Terror Renegado: uma reflexão sobre os episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à Ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975) (Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008).
[13] Blauquién, 1998, p.300.
[14] Duhalde, 1999; Valdes, 1980.
[15] Brasil, 1996a, p.162.
[16] https://www.brasildefatomg.com.br/2020/01/09/o-governo-brasileiro-nos-torna-alvo-de-ataques-internacionais-avalia-especialista
[17] http://www.gsi.gov.br/noticias/2015/estrategia-de-seguranca-da-informacao-e-comunicacoes-sic
[18] Ações do tipo ocorreram, por exemplo, nos protestos de 2016, como o caso amplamente noticiado do major do Exército Willian Pina Botelho, infiltrado com o codinome Balta Nunes nos protestos anti-Temer. Na época, o Exército justificou a ação como parte do escopo das atividades de Garantia da Lei e da Ordem. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/29/politica/1530293956_036191.html
[19] https://www.brasildefato.com.br/2021/07/11/exercito-e-o-unico-vendedor-de-bombas-utilizadas-por-garimpeiros-para-atacar-indigenas
* Ana Penido é bolsista Capes de pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP). Pesquisadora do Instituto Tricontinental e do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES – UNESP).
**Pedro P. Bocca é mestre em Relações Internacionais (PUC-SP). Assessor de incidência internacional da Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais (Abong).
***Rodrigo Lentz é doutorando em Ciência Política pela UNB. Pesquisador do Instituto Tricontinental e do Grupo Demodê (UNB).