As igrejas e os 50 anos do golpe no Chile
Por Angélica Tostes*
Artigo originalmente publicado na Carta Capital
Entre as ruas de Santiago, no Chile, os espaços de memória resistem, como murmúrios sussurrados pelo vento, lembrando-nos de que na tempestade da ditadura, o lema ecoa eternamente: “ni olvido, ni perdón” (“nem esquecer, nem perdoar”). A memória desse período sombrio é encontrada nos bairros, em fundações de artistas exilados, nos centros e museus, como o Museu dos Direitos Humanos, Londres 38, Museu Salvador Allende. Entretanto, a cicatriz deixada pela ditadura e os processos neoliberais que essa desencadeou continua vivo e presente no cotidiano das pessoas.
No dia 11 de setembro de 1973 foi instaurada, por meio de violências policiais e das forças armadas do Chile, a ditadura cívico-militar. Neste 2023 estão sendo rememorados os #50añosdelgolpe. Os tiros e bombas contra o Palácio de La Modena marcam esse terrível período do golpe do general Augusto Pinochet contra o presidente socialista Salvador Allende. Em meio a todas as atrocidades que uma ditadura promove, como a Operação Colombo com os 119 jovens militantes detidos e desaparecidos, lugares de tortura, morte, queima de livros, e tantas e outras coisas, 32 igrejas evangélicas se juntaram para apoiar o processo que estava sendo conduzido pela ditadura.
Em dezembro de 1974 foi lida, no edifício Diego Portales (um edifício simbólico do governo militar, a “Declaração da Igreja Evangélica Chilena”, escrita e divulgada pelos pastores destas igrejas.Um dos trechos, além de reconhecer a figura de Pinochet como líder político, aponta que o que se passava no Chile era “a resposta de Deus às orações de todos os crentes que reconheceram que o marxismo era a expressão de um poder satânico das trevas”. Após apenas dois dias dessa declaração, surgiu o Conselho de Pastores, seguido pela Confraternidade Cristã de Igrejas, que eventualmente convocaria a criação da Associação de Igrejas Evangélicas do Chile (AIECH) em 1974, e esses grupos se colocavam como únicos representantes e voz evangélicas do país.
As resistências ecumênicas e religiosas no país beberam da Teologia da Libertação Latino-Americana, e se opuseram bravamente contra à opressão de Pinochet, se articulando com o Conselho Mundial de Igrejas e buscando criar organizações que oferecessem ajuda aos perseguidos políticos e suas famílias, como é o caso da Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas (FASIC), Vicaría de la Solidaridad, a Ayuda Cristiana Evangélica (ACE), Servicio Evangélico para el Desarrollo (SEPADE), entre outros órgãos que buscaram promover justiça e ser esperança em um contexto de desamparo.
Faço a memória do padre francês André Jarlan, que foi assassinado pela polícia chilena durante um protesto popular contra a ditadura na Población La Victoria. O padre Dubois, seu companheiro de luta e fé, encontrou o corpo de Jarlan, já sem vida, sobre sua Bíblia, aberta no livro dos Salmos, onde se podia ler: “Das profundezas a ti clamo, ó SENHOR. Senhor, escuta a minha voz; sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas. Se tu, Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem subsistirá? Mas contigo está o perdão, para que sejas temido”.
Entretanto, o fundamentalismo religioso foi se alastrando e se tornando uma característica presente em todos os países de Nuestra América. Podemos compreender, portanto, que a desarticulação da Teologia da Libertação foi um projeto impulsionado peloimperialismo, que identificou nela uma ameaça no campo subjetivo, como demonstra o Dossiê n°59 Fundamentalismo e imperialismo na América Latina: ações e resistências, do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Esse processo ocorreu simultaneamente ao avanço das políticas neoliberais na América Latina, um momento histórico marcado pela hegemonia de valores individualistas, consumistas e privatizantes. Vale lembrar que o Chile se tornou um grande laboratório da política neoliberal após Pinochet chamar alguns economistas, conhecidos como Chicago Boys, para favorecer as grandes multinacionais estadunidenses em relação ao cobre chileno.
Essa herança ditatorial, neoliberal e fundamentalista pode ser vista na atualidade, com os resultados da eleição do dia 7 de maio, no Chile, que visa a alteração da Carta Magna chilena, substituindo o texto vigente no país que vem desde a ditadura de Pinochet, que se encerra em 1990 e da qual seus próprios apoiadores que escrevem o texto constitucional. A primeira tentativa de mudança na Constituição sofreu um rechaço em setembro do ano passado, apesar de trazer uma grande abertura para as pautas de direitos humanos. Esta é a segunda tentativa, nesse processo eleitoral de maio, e teve o objetivo de escolher 50 membros de um conselho que vai redigir o novo texto.
Lamentavelmente, o resultado da votação não foi favorável para os campos populares, uma vez que a extrema direita conquistou 22 cadeiras das 51 no conselho constitucional, em comparação com as 17 da esquerda governista (apoiada pelo presidente Gabriel Boric) e 11 da direita tradicional. Como resultado, a direita obteve uma maioria absoluta de 33 cadeiras, o que lhe confere poder para aprovar mudanças, enquanto a esquerda não alcançou as 21 cadeiras necessárias para ter poder de veto. Essa distribuição de assentos coloca a direita em uma posição privilegiada para moldar o processo constitucional, representando um desafio para as forças progressistas na busca por transformações significativas.
O desafio que está posto não é novo. O diálogo com a base através da educação popular e práticas libertadoras é de extrema importância. Não esquecer, nem perdoar! A memória da ditadura, seja no Chile ou no Brasil, deve ser lembrada, essa história não deve ser apagada, mudada, menosprezada como grupos de extrema-direita tem feito. Os espaços de memória devem estar além do físico, mas antes, vivos em nossos corpos.
As vitórias de Boric no Chile e de Lula no Brasil não representam uma desarticulação do fascismo que permeia a América Latina. Dessa forma, o campo popular e o ecumenismo devem caminhar juntos na transformação da sociedade, das igrejas, das políticas públicas. Articulando-se de maneiras estratégias entre si e vislumbrando que essa luta antifundamentalista e antifascista não é apenas local, mas antes, de toda Nuestra América. Avancemos!
*Angélica Tostes é teóloga, mestra em Ciências da Religião, professora e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.