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Artigos

A batalha é contra o vírus, e a guerra? Contra o capitalismo!

Ilustração realizada para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. “Camponeses na terra santa”, por Saju Kunhan (Índia).

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.

 

Por Bianca Rodrigues Lima* e Ranniêr Santos Torres do Couto**

Se o passado nos serve de guia, seria estupidez esperar, a esta altura, qualquer indicação clara de como seria um capitalismo renovado – se é que isto é possível -, mas deveria haver uma profusão de diagnósticos conflitantes sobre o que está errado e uma proliferação de propostas para colocar as coisas nos eixos.
David Harvey

 

Introdução

O ano de 2020, no Brasil, teve um início atípico marcado pelo agravamento de uma crise planetária (já existente) por outra crise oriunda de um vírus, e este infeliz acontecimento desencadeou, ou mais precisamente, potencializou os diversos problemas crônicos no território brasileiro e no mundo. Acessos defeituosos a uma saúde gratuita e de qualidade, a água potável, a moradia, a alimentação saudável, desigualdade racial, social e de gênero, desemprego e relações trabalhistas conturbadas, e de forma mais ampla, a ausência do Estado, no decorrer dos diferentes períodos, em fornecer o mínimo de bem estar social para toda a população que reside em seu interior.

Em meio a isso, não se pode perder de vista que uma crise tem suas causas e consequências, mas em grande parte, se falam mais das consequências e medidas a serem tomadas, do que da própria causa. Ao negar uma crítica contundente aos reais motivos que desencadeiam uma crise (em exemplo a pandemia do Covid-19), abrem-se brechas para interpretações equivocadas, como por exemplo, não enxergar a condição competitiva e destruidora do capitalismo – que é mais cômoda, haja vista que somos capitalistas, em maior ou menor grau – e pensar alternativas de ajuda momentaneamente, como se de fato, o problema existisse apenas na crise que ganha maior proporção, e quando esta passa, todas as outras voltam para debaixo do tapete.

Neste sentido, este singelo artigo, escrito por uma fonoaudióloga e um graduando em geografia, busca trazer algumas provocações e reflexões, com auxílio de livros, artigos e notícias, acerca deste triste cenário que está posto mundialmente. Esta crise – ou crises – quando encarada como produto do capitalismo e sua lógica histórica, exige maior sensibilidade na compreensão do sistema de contradições deste modelo econômico incorporado no Brasil e na maioria do mundo, que visa o domínio social e ambiental constante, sempre desencadeando crises sucessivas e permanentes.

Como um dos fios condutores destes escritos a seguir, buscamos abordar, refletir e repensar sobre a nossa alimentação, que assim como a saúde, moradia, e tantos outros direitos básicos, não são acessíveis para todos e agrava-se neste momento de pandemia. Também nos propomos a apontar elementos que estão por trás de doenças, pandemias e crises em um sistema insustentável, que deu e continua dando errado, criador de desigualdades. É seguindo esta linha de interpretação que o artigo denomina-se: A batalha é contra o vírus, e a guerra? Contra o capitalismo!

 

1. O que a pandemia nos trouxe de reflexão sobre nossa relação com a natureza?

Os coronavírus surgiram pela primeira vez em 1937, sendo sua nomenclatura definida em 1965 após seu perfil microscópico ser comparado ao de uma coroa. Em dezembro de 2019, surgiu na China, mais especificamente em Wuhan, um novo coronavírus, chamado agora de Covid-19 (SARS-Cov-2), que desencadeia problemas respiratórios leves a graves, dependendo de uma série de fatores como idade, comorbidades, entre outros. Esse novo vírus levantou muitas hipóteses sobre guerra biológica e vírus modificado em laboratório. O que se descobriu foi que ele surgiu em um mercado de animais vivos na China, mais precisamente através da aproximação de determinados animais selvagens, que dificilmente aconteceria na natureza.1 Temos como outros exemplos a Síndrome Aguda Respiratória Grave (SARS-Cov) que também surgiu na China em 2003, no qual se comprovou a infecção através do consumo de gatos de algália infectados por morcegos, e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-Cov) na Arábia Saudita em 2012 através de camelos.2 As três doenças citadas tiveram grande proporção de contaminação e número de mortes, como também origem zoonótica, mas essa informação é pouco citada ou refletida pelas pessoas. Por qual razão? Por que não refletimos nossa relação com a natureza, exploração de animais e alimentação? Porque é uma verdade inconveniente3 (JOY, 2014).

A maioria das pessoas reproduziram comentários xenófobos em relação aos chineses quando tiveram conhecimento da origem da Covid-19 e o consumo de animais selvagens, julgando a alimentação “exótica” deles. Mas de onde surge a gripe aviária e suína? De frangos e porcos, animais que são consumidos cotidianamente, principalmente no Brasil. Quantos novos vírus e pandemias irão surgir para nos conscientizarmos de que podemos evitar tudo isso? Que a solução está em nossas mãos, ou melhor, nos nossos pratos? Nossa relação com a natureza desandou na mesma medida que o sistema capitalista, focado no lucro acima da vida, foi dominando nosso modo de pensar, agir e consumir.

“Deste ponto de vista, não existe um desastre verdadeiramente natural. Os vírus sofrem mutação o tempo todo para ter certeza. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna ameaçadora e fatal dependem das ações humanas”4

O domínio de um sistema inseguro, interessado incontestavelmente no lucro pode ser constatado nas repercussões sociais e ambientais, evidenciadas a todo o momento por diversos pesquisadores. Na contramão disso, há também pesquisas financiadas5 para atestar a legitimidade e continuação do sistema inseguro. Seja na China, no Brasil ou em outros países do mundo, haverá o sistema que vê na natureza um terreno propício para extrair grandes lucros na esfera privada, mas, na esfera coletiva, o que resta são os prejuízos, constatados neste exato momento com a crise pandêmica do coronavírus.

Quando revisitamos o passado, é possível constatar alguns avanços sociais, como auxílio a famílias carentes e sistemas de cotas, mas mesmo assim, nunca saímos do grande questionamento de “por que as coisas são assim?” Isso se dá por conta da dificuldade de enxergarmos a essência das relações constantemente maquiadas no sistema capitalista de produção. A verdade é que a sociedade vive em constante tensão, e essas “tensões entre as exigências conflitantes da produção organizada e da necessidade de reprodução da vida cotidiana sempre existiram” (HARVEY, 2016, p. 16), e seja por coerção ou por consentimento damos nossa pequena contribuição.

Essa tensão, que o capitalismo tenta controlar para se manter – cedendo alguns avanços – ocultando seus problemas crônicos, sobretudo as desigualdades sociais, passa a ser uma crise quando as tensões não são mais controláveis (HARVEY, 2016), e neste cenário é possível visualizar àquilo que passa despercebido para aqueles que vivem suas vidas atrás, apenas, de suas aspirações pessoais. Analisar o passado pode ser um guia para perceber que, crises constantemente acontecem, não por forças naturais, onde uma crise pode desencadear diversas outras e desta forma exige medidas de combate transformadoras. Quando nos damos conta da complexidade e funcionalidade deste sistema, percebemos que atitudes individuais são mais efetivas quando somadas à organização, reflexão e ações coletivas.

 

2. Passado e Presente: somos o que somos e não o que deveríamos ser

Nosso hábito alimentar, herdado de um passado colonial que, suprimiu a diversidade alimentar – policultura – a fim de destruir quaisquer outras culturas e modos de se alimentar, é encarado nos dias atuais de forma preocupante, “minando a nossa riqueza humana numa persistente ação destruidora geração após geração” (CASTRO, 1984, p. 56). Tudo que se produzia no Brasil colônia tinha destino traçado, abastecer a elite europeia, que a todo momento via nos bens naturais ótimas oportunidades de acumulação de riqueza. Desta forma, vastas terras se convertiam em nascentes latifúndios, trocando a diversidade pelo monocultivo. Ainda segundo Castro, na mesma obra e ano:

“[…] se nossos recursos alimentares são até certo ponto deficitários e nossos hábitos alimentares defeituosos, é que nossa estrutura econômico-social tem agido sempre num sentido desfavorável ao aproveitamento racional de nossas possibilidades geográficas” (CASTRO, 1984, p. 58).

O autor citado acima busca, em sua obra “Geografia da fome” (1986), identificar elementos que atestam a fome como resultante de um processo econômico-social que viu na terra apenas uma potencialidade para a exploração de matérias primas6 ao invés de considerar sua riqueza para fornecer alimentos dos mais variados, limitou a produzir aquilo que a Europa exigia, “subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar” (CASTRO, 1984, p. 115).

Só não foi pior, como descreve Josué de Castro, por conta da resistência dos indígenas com luta e sangue, “fazendo da floresta o seu reduto e defendendo-a com arcos e flechas, o índio moderou a expansão da monocultura e suas funestas consequências” (CASTRO, 1984, p. 131). Essa resistência também se materializou nas manifestações do povo preto arrancado a força de países Africanos, era um dos princípios ativos da resistência resgatar suas raízes culturais. “Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra tão bem ajustados às necessidades do homem, vamos encontrar um regime de policultura sistemática” (CASTRO, 1984, p. 133).

Atualmente, o agronegócio – latifúndio modernizado – e os camponeses – resgate do modo de vida ancestral – sequenciam a disputa histórica. O primeiro destina a grande parte de sua produção para exportação (larga escala), enquanto que o segundo ao consumo interno (pequena escala). O agronegócio herda um dos modus operandi do latifúndio colonial, a concentração de terra. Sua influência e domínio na política nacional reduz ao mínimo a participação da agricultura camponesa, travando uma reforma agrária efetiva e a promoção de uma alimentação segura, saudável e acessível (FERNANDES, 2004; GALEANO, 2012).

“Apesar da superação do mercantilismo no mundo, percebemos que aqui em nosso país ela [a terra] ainda se constituiu como interesse das classes latifundiárias […] fazendo com que o poder existisse apenas nas mãos de poucos, gerando uma maior concentração de terra e, consequentemente, uma profunda desigualdade social” (RIBEIRO, 2020, p. 23).

Nossa relação com a natureza mudou de tal forma que não refletimos sobre o que estamos comendo, ao invés de diversificar a alimentação com legumes, verduras, grãos e hortaliças, o grande destaque fica em torno da carne, onde no prato ocupa o menor espaço, quando temos diversas outras fontes de proteínas que não são prejudiciais e cancerígenas.7

Muitas pessoas se chocam ao descobrir que na China acontece todo ano um festival de carne de cachorro, mas não é coerente julgar os chineses que comem carne de outros animais que parecem estranhos para nós, por termos nos acostumado a achar que bacon não é um animal, mas sim um delicioso ingrediente do McDonalds.

Somos o que somos por receber este passado e reproduzi-lo como uma verdade incontestável a ponto de que, ao pensar diferente, você sente-se excluído, desmotivado e por vezes desiste do que realmente deveria ser, seja por temáticas abordadas aqui, ou por outras que buscam romper uma estrutura padronizada de dominação e dependência. Naturalizamos a destruição da floresta para ocupação humana ou uma construção de resort na beira da praia. Tudo leva a uma indignação que acaba enfraquecida por percebermos que nada muda. Omissão e passividade constituem as fortes armas daqueles que tem muito a ganhar com a naturalização.

É importante uma crítica bastante ampla neste momento em que diversas necessidades supérfluas foram interrompidas por conta do isolamento social, enquanto o agronegócio segue lucrando, abarrotando supermercados com comida de péssima qualidade para os que podem pagar, tantos outros passarão fome, evidenciando a extrema importância de destinar verba para uma agricultura social e ambientalmente justa, visualizando “a contradição entre a lógica imediatista do capital e a possibilidade de uma agricultura ‘racional’ fundada sobre uma temporalidade muito mais longa e numa perspectiva durável e intergerencial que respeita o meio ambiente” (LOWY, 2014, p. 31).

A solidariedade pode ser tornar uma ação permanente quando existir uma sociedade de iguais, que as condições materiais permitam isso, e diferentemente do que parece, nesse tempo de crise, se tem mais caridade do que solidariedade em si. Quando ações não visam mudar permanentemente uma condição/realidade social, e, portanto apolítica, tem-se a caridade como estratégia perfeita da ocasião8. Ou seja, não haverá qualquer tipo de justiça enquanto houver exploração capitalista, seja no campo, na cidade, no meio social ou ambiental.

 

3. Reeducação político-alimentar: um caminho possível?

O que diriam os indianos, que consideram a vaca um animal sagrado, ao verem, por exemplo, no Brasil, churrascos e grandes eventos que submetem bovinos a maus tratos, como vaquejadas e rodeios? A mercantilização de animais se coloca a serviço do entretenimento e futilidade, tendo em vista não ser uma condição natural necessária para sobrevivência dos seres humanos. Condenar hábitos chineses, para o brasileiro, é o princípio de julgar o outro antes de si mesmo. Enquanto uns gozam de hábitos anormais, a pandemia revela (o que sempre existiu) que muitos outros se alimentam precariamente, assim, o consumismo em várias formas é um dos grandes inimigos: social e ambiental.

O veganismo pode nos ajudar neste sentido, pois:

“é uma forma de viver que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade. Dos veganos junk food aos veganos crudívoros – e todos mais entre eles – há uma versão do veganismo para todos os gostos. No entanto, uma coisa que todos nós temos em comum é uma dieta baseada em vegetais, livre de todos os alimentos de origem animal, como: carne, laticínios, ovos e mel […]”9

Mas não só isto, como também se opor a testes em animais, eventos e locais que utilizam esses seres como objetos de entretenimento em massa, etc. Por que estamos falando de veganismo em um texto cujo tema é a pandemia atual? Porque precisamos refletir a origem desta e de outras pandemias, que já passaram e as que estão por vir, pois estamos vivendo um colapso ambiental desastroso, destruindo a maior biodiversidade da Terra para criação de gado, monocultivos de soja e milho, para alimentar outras vacas, porcos, galinhas, frangos, com a “justificativa” de alimentar a todos, além de extração ilegal de madeira.

Sabe-se que a agropecuária é a maior responsável pela emissão de gases do efeito estufa, como também desmatamento, uso excessivo de água e extinção de ecossistemas, se tornando uma doença incurável. “A produção de 1 quilo de bife demanda 25 quilos de grãos para alimentação animal e 15.400 litros de água.”10

“Se os terrenos agrícolas [atualmente] usados na criação de animais fossem usados na produção de vegetais, gerariam uma quantidade substancialmente maior de alimentos para consumo humano do que [atualmente] geram, permitindo alimentar um número muito superior de humanos do que [atualmente] permitem fazer – e de modo ético e ecologicamente mais [correto].”11

Podemos perceber que a apropriação do mercado de consumo capitalista transvestido de “pegada ecológica” e “desenvolvimento sustentável” coloca na cabeça de várias pessoas que o futuro é “verde” e, portanto, direciona o consumo a produtos “menos degradáveis” e no meio vegano não é diferente. Mas de que adianta mudar hábitos alimentares ou economizar água durante o banho12 e ignorar o modo de produção? Resgatemos a frase do ambientalista Chico Mendes que diz “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem” para dizer que veganismo sem luta de classes é dieta, e não é este tipo que queremos apresentar.

O capitalismo está estruturado em opressões de gênero, classe, cor e também de especismo (ROSENDO et al, 2019). De acordo com Singer (2010), o especismo é “o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os de outra.”13

“A consciência de movimentos negros, feministas, LGBTQI+, políticos e sindicais, de que todas as dominações específicas que lhes cabem também foram construídas a base do especismo foram importantes para o veganismo tomar nota que sua luta não era apenas pela libertação animal, mas também humana e global, incluindo todas as espécies e especificidades em todas elas, como as dominações de classe, gênero, raça, sexualidade, etc.” (MOTA e SANTOS, 2020, p. 7).

Além da questão ética, levando em consideração a exploração abusiva dos animais, comer se torna um ato político e o veganismo não é apenas uma dieta. É uma filosofia de vida que busca excluir, na medida do possível, produtos provenientes de animais, seja alimentício ou cosmético, mas ganha projeção se reconectando com outras lutas, sempre ao lado dos oprimidos que lutam por libertação, portanto, não tem como sentir-se confortável libertando alguns e não todos. Essa utopia da liberdade move o veganismo popular, sabendo que, uma alimentação segura e saudável é um direito de todos, assim como outros direitos que são cerceados neste modelo de sociedade capitalista.

Estão destruindo o habitat natural de animais selvagens e contribuindo nas mutações de vírus o tempo todo, que são letais para nós mesmos. No Brasil, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em Abril deste ano, o desmatamento na Amazônia aumentou 171%, maior índice dos últimos 10 anos!14 Como então condenar o que acontece na China e não se atentar aqui, no nosso próprio país? É preciso buscar a coerência, porque grande parte do desmatamento brasileiro visa ampliação das fronteiras agrícolas, com o pretexto de “produzir alimentos”. Na China, neste caso, não se tem o pretexto de produzir, mas de capturar animais selvagens para servir de alimento “exótico”.

A desordem ecológica global (PORTO-GONÇALVES, 2006) plaina sobre a atuação intempestiva do ser humano nos dois países, muito em função da atuação de ambos Estados em fornecer bases legais como, por exemplo, políticas de fomento e leis que garantem a exploração. A crise ambiental revela o caráter de crise da sociedade (PORTO-GONÇALVES, 2006) exposta por nossa relação cada vez mais distante da ordem natural. A verdade é que somos influenciados, assim como nosso paladar, e nesta simples relação que pode parecer pequena, estamos promovendo a capitalização da natureza e a morte entrópica do planeta (LEFF, 2006).

Precisamos abrir os olhos e fazer a conexão de que o capitalismo é o causador de toda a desigualdade que assola o mundo constantemente, onde a menor parte da população come “carne de primeira”, porque é detentora de poder econômico e dos meios de produção, e a maior parte tem uma alimentação pobre, vivendo do básico e sem poder de escolha. Precisamos pensar que o veganismo popular é uma das alternativas necessárias, buscando se reconectar com os interesses dos povos originários, com a luta dos trabalhadores urbanos e dos camponeses por reforma agrária, aprendendo a valorizar e contribuir com o equilíbrio do meio ecológico.

 

4. Necropolítica e o jogo de cartas marcadas

Quando dedicamos algumas passagens escritas acima, para indicar novas formas de consumir alimentos, é um convite ao leitor, que chegou até aqui, para uma reflexão. E para ajudar neste exercício reflexivo, alguns aspectos econômicos, sociais, geográficos e históricos se fizeram presentes, juntos e articulados. Somos produto de tempos anteriores, e muitas de nossas manifestações cotidianas, hoje, são herdadas de nossos antepassados, onde cada qual assimila características de sua época e perpassa para a geração seguinte. Como dito já neste artigo, alguns processos, inevitavelmente, influenciam de tal forma a ponto de descaracterizar nossos hábitos alimentares.

Temos uma grande missão pela frente, que não cabe apenas aos autores deste artigo ou a você leitor, separadamente. É uma tarefa coletiva, porque como já citado, o desafio é enorme. São superestruturas erguidas por uma elite, que historicamente visava riqueza e lucro, e conseguindo seus objetivos, quem não era elite foi lançado para outro rumo. Neste outro rumo – da pobreza e miséria – a esmagadora maioria ficou a deriva, a própria sorte, nas mãos da minoria15, vivendo das sobras, e na melhor das hipóteses, com o mínimo para sobreviver. São diversas as consequências desastrosas, em várias instâncias, e na alimentação não foi diferente. Se falarmos de comida separadamente da atuação política, ela se torna apenas uma dieta, que pode ser fornecida por uma grande empresa, associada com o desmatamento, por exemplo. E ainda quem pode pagar por uma boa refeição caríssima vegana, estará certo de estar contribuindo para a mudança, e se for contrariado sobre o valor pago, rapidamente argumenta que é questão de escolha, que cada um escolhe gastar com suas prioridades. Outra atuação equivocada pode ser vista em notícias que constatam que uma boa alimentação aumenta a imunidade, e com isso, maior resistência diante do Covid-19. Estes exemplos dialogam com aquelas classes que de fato podem escolher, desconsiderando a realidade desigual da sociedade brasileira.

O atual governo antidemocrático do Brasil, que também desconsidera esta realidade social, logo no início do primeiro mandato, objetivava a extinção do Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA), é uma grande derrota popular, quando extinguiu “um espaço institucional para o controle social e participação da sociedade, composto por dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de representantes governamentais, com presidência da sociedade civil.”16 Desta forma, a mensagem que propaga “buscar se alimentar bem”, não é considerada sequer pelo presidente do país, que encerra um conselho responsável em garantir uma alimentação saudável e segura.

A falta de um órgão público tão importante por decisão do Estado é algo danoso, desencadeando uma necropolítica, é “arriscar a totalidade de uma vida” (MBEMBE, 2018, p. 13), deixando os sujeitos à própria sorte e abrindo mão da responsabilidade estatal em nome de um projeto de apoio a elite. A necropolítica neste sentido pode ser entendida como um jogo de cartas marcadas. Desdobramentos de ações do Estado que culminam em uma política que decide quem vive e quem morre. Com isso, o controle da vida se encontra em poder do Estado (MBEMBE, 2018), e a ausência do CONSEA contribui para uma má alimentação dos mais pobres e necessitados.

Quando nos deparamos com certos discursos em meio ao surto do novo coronavírus, dizendo que “o povo irá morrer de fome” por falta de comida, devido ao comércio se encontrar fechado, com a economia parada em muitas cidades para prevenir o contágio, e não sobrecarregar os sistemas de saúde, estes mesmos demagogos, nada falaram sobre a extinção do CONSEA, e mais, apoiaram reformas que aprofundaram as desigualdades. É nítida a hipocrisia e o oportunismo de ocasião. A classe alta perdeu sua humanidade faz tempo. A fragilidade de um país em combater uma pandemia está relacionada com sua própria postura diante de seu povo.

Para o meio ambiente, destruição. Para os seres humanos, má alimentação. Este é o link necessário a ser debatido, é onde política e prática se conectam somadas a empatia com o outro. A fome poderia não ser um grande problema social, mas sim, apenas um alerta do nosso organismo, que está necessitando da reposição nutritiva adequada, como disse Josué de Castro (1984). A resistência em acabar com a fome com comida de verdade, ano após ano, é política e vai além de nossas escolhas individuais, não vem de cima, vem de baixo, na busca de um projeto democrático e horizontalizado.

Segundo Mbembe (2018, p. 9) “A política, portanto, é definida duplamente: um projeto de autonomia e a realização de acordo em uma coletividade”, se nossa coletividade não vive da mesma forma e não possui autonomia de usufruir dos mesmos espaços, algo muito errado precisa ser corrigido. Da mesma forma, na pirâmide social, os de baixo não comem bem, enquanto os de cima possuem uma variedade de escolhas que o dinheiro pode pagar. É oportuno, mais do que nunca, pensar numa solução popular para esta crise de agora e de antes, e por isso nos propomos a debater sobre a nossa relação com a natureza, com os alimentos e com nossos semelhantes.

As incríveis ações solidárias do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em todo o Brasil17, é a prova concreta da necessidade de fortalecer e investir em outro modelo de agricultura, de pequena escala, que se preocupa em abastecer o mercado interno com alimentos seguros e saudáveis, em perfeita harmonia com o meio natural. Esta solidariedade, que já acontecia, não aparece tanto nas mídias convencionais, pois é preciso conter no nosso imaginário a supremacia do agronegócio como fonte de riqueza e alimento, para que pensemos de forma unilateral, sem saber ao certo a grande resistência que é produzir comida de verdade fora do eixo capitalista.

É tempo de mudar, despertar um novo olhar pelo nosso planeta que pede ajuda. Esse novo olhar deve nos conduzir na direção de um horizonte em que a abundância não seja relacionada à quantidade por consumo, mas sim uma abundância referente à distribuição igualitária e qualitativa para todos e todas, contando com a preservação das diversas formas de vida. Não temos alternativas que nos faça sair dessa e de outras pandemias, ameaçando a vida social e ambiental, que não seja a necessária reflexão sobre nossa relação com a natureza dentro do sistema capitalista, para que então possamos agir, cuidar e zelar do nosso lar e das futuras gerações.

 

Considerações finais – superar paradigmas

Esperamos, com nossas palavras e pensamentos descritos até aqui, despertar o leitor para uma reflexão sobre o próprio papel dele no mundo. Como podemos ajudar a fazer nossa parte, individual e coletiva, para melhorarmos o lugar e as condições na qual vivemos. Buscando entender e superar esse sistema desigual que é o capitalismo e construindo alternativas que tornem este mundo favorável e harmônico a todas as formas de vida. Vivemos em conflito desarmônico e exploração demasiada com a natureza, e precisamos dela para nossa sobrevivência, devemos entender essa relação e trabalhar em conjunto, buscando uma relação de equilíbrio.

É importante unificarmos todas as lutas e compreender as reivindicações de cada uma delas de forma interseccional. Uma luta não anula a outra e todas se dão contra um inimigo em comum. “Temos de olhar além das aparências superficiais, se quisermos agir de maneira coerente no mundo: agir em resposta a sinais superficiais e enganadores só produz resultados desastrosos” (HARVEY, 2016, p. 18). A humanidade é provocada a repensar seu viver civilizatório e suas necessidades reais. Deve-se aceitar que o ser humano é social, se realiza em comunidade, integrados na natureza, em função e com outros seres humanos, cooperando entre si, considerando que a humanidade não está externa a natureza.

¹ Disponível em: http://www.saude.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=350. Acesso em 17 de maio de 2020.

² Ibid.

3 A dissociação da carne e do animal é o que faz as pessoas consumirem sem pensar que estão comendo partes dele e o processo de produção. É um modo de se abster da responsabilidade da morte de um animal sensciente. Pensar e falar sobre isto é inconveniente porque saímos da zona de conforto.

4 Harvey, David. Política anticapitalista em tempos de coronavírus. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/24/david-harvey-politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/. Acesso em 17 de maio de 2020.

5 Em grande medida, instituições recebem financiamento privado para encontrar um denominador comum. Este denominador comum diz respeito a um resultado que manipule os dados em defesa da atividade lucrativa.

6 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 2012, p. 34. Cada região se identificou com o que produziu, e o que produziu foi aquilo que dela se esperava na Europa: cada produto carregado no porão dos galeões que sulcavam o oceano converteu-se numa vocação e num destino.

7 O consumo de produtos embutidos e outras carnes processadas são cancerígenos, segundo anúncio realizado pela Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (IRAC), da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda de acordo com a entidade, a ingestão de carnes vermelhas possivelmente também possa causar a doença. Disponível em: http://www.oswaldocruz.com/site/noticias-de-saude/520-consumo-de-carne-processada- aumenta-o-risco-de-cancer-em-18-alerta-a-oms. Acesso em 16 de maio de 2020.

8 O observatório da mineração, em parceria com o Intercept, mostrou que a empresa Vale mantém funcionários em risco enquanto anuncia doação de 5 milhões de testes para o coronavírus. Disponível em: https://theintercept.com/2020/03/26/coroavirus-vale-mantem-minas-operacao/. Acesso em 22 de maio de 2020. Sem contar o assassinato socioambiental cometido pela mesma empresa em Mariana/MG e Brumadinho/MG, que não serão revertidos com quaisquer doações.

9 The Vegan Society, 1944. Disponível em: https://www.sejavegano.com.br/. Acesso em 10 de junho de 2020.

10 SANTOS, Eduardo; SANTOS, Leonardo. Veganismo e a luta do campo. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2020/04/reconexaoperiferias_abril20.pdf. Acesso em 20 de maio de 2020.

11 SILVA, Rita. Veganismo e a fome no mundo. Disponível em: https://www.anda.jor.br/2014/12/veganismo-e- a-fome-no-mundo/. Acesso em 17 de maio de 2020.

12 Rede Brasil Atual. Como o agronegócio está exportando a água do Brasil. 19 de Março de 2018. Segundo dados da Unesco, por ano, o Brasil envia para o exterior aproximadamente 112 trilhões de litros de água doce, o que equivale a cerca de 45 milhões de piscinas olímpicas. Esse número nos coloca entre os maiores exportadores da chamada “água virtual”, um conceito que mede a quantidade de água utilizada e absorvida na produção de commodities agrícolas voltadas para a exportação.

13 (SINGER, 2010, p. 11, apud MOTA e SANTOS, 2020, p. 5).

14 Boletim do desmatamento da Amazônia Legal (abril 2020) SAD (p. 1). Belém: Imazon.

15 Os cem maiores bilionários do mundo (tanto na China, da Rússia, da Índia, do México e da Indonésia como dos centros tradicionais de riqueza da América do Norte e Europa) juntaram US$ 240 bilhões a mais em seus cofres só em 2012 (o suficiente calcula a Oxfam, para acabar com a pobreza mundial da noite para o dia). HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. / tradução Rogério Bettoni. – São Paulo: Boitempo, 2016. p. 11.

16 QUIRINO, Flávia. Congresso mantém veto à extinção do Consea e, sociedade civil mobiliza Conferência Popular sobre soberania e segurança alimentar. Fian Brasil, (Outubro 2019).

17 Movimentos Sociais e populares se unem para superar a crise epidêmica do coronavírus no Brasil. Ações de solidariedade se espalham pelo país arrecadando mais de 800 toneladas de alimentos e ajudando na produção de produtos de saúde. Disponível em: https://mpabrasil.org.br/noticias/solidariedade-social-durante-covid/. Acesso em 19 de maio de 2020.

 

Referências utilizadas

CASTRO, Josué de. Geografia da fome – o dilema brasileiro pão ou aço. – Rio de Janeiro: Antares, 1984.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária: conflitualidade e desenvolvimento territorial. In: Luta pela Terra, Reforma Agrária e Gestão de Conflitos no Brasil. Antônio Márcio Buainain (Editor). Editora da Unicamp, 2005.
GALEANO, Eduardo Hughes. As veias abertas da América Latina. / tradução de Sergio Faraco. – Porto Alegre: L& PM, 2012.
HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. / tradução Rogério Bettoni. – São Paulo: Boitempo, 2016.
JOY, Melanie. Por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas. / tradução Mário Molina. – São Paulo: Editora Cultrix, 2015.
LEEF, Enrique. Racionalidade ambiental: apropriação social da natureza. / tradução de Luís Carlos Cabral. – Rio de Janeiro: Civilização, 2006.
LOWY, Michael. O que é ecossocialismo? – 2. ed. – São Paulo: Cortez, 2014. (Coleção questões da nossa época; v. 54).
MOTA, Ana Gabriela; SANTOS, Kauan Willian dos. Libertação animal, libertação humana: Veganismo, política e conexões no Brasil. 1a ed, Juiz de Fora, MG: Editora Garcia, 2020.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O meio ambiente como mercadoria V: as contradições entre a teoria e a prática. In: A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
ROSENDO, Daniela et al. Ecofeminismo: fundamentos teóricos e práxis interseccionais. – Rio de Janeiro: Ape’ku, 2019.

*Bianca Rodrigues Lima é fonoaudióloga formada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)
** Ranniêr Santos Torres do Couto é graduando em Geografia Licenciatura na Universidade Federal de Sergipe (UFS)