Skip to main content
Artigos

A crônica [pandêmica] de Natal

Segundo o IBGE, cerca de 21,6% (45,2 milhões) da população brasileira reside em domicílios com pelo menos alguma inadequação domiciliar. Imagens/TV Brasil

 

 

“…ficamos assombrados diante das consequências das nossas condições sociais, aqui apresentadas sem véus,
e permanecemos espantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando.”
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 69

 

Por Cristiane Ganaka

 

Em um passado tão presente, numa terra circunjacente, jornadas exaustivas, condições precárias de trabalho, habitações inadequadas, alimentação insuficiente e uma ameaça constante a saúde, tomam o contorno da vida cotidiana. Poderia ser apenas uma citação da célebre obra “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, de Friedrich Engels, publicada originalmente em 1845, que narra em que condições se dava o processo de industrialização e urbanização na sociedade capitalista. Porém, estamos apenas resumindo a realidade brasileira em 2020.

São Paulo, 11 de março do fatídico ano, a seguinte notícia começa a circular no meio do dia: “a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara, nesta quarta-feira, a pandemia de Covid-19”. Fecho os olhos e consigo imaginar a metrópole seguindo seu curso: pessoas paradas no engarrafamento ouvindo isso, burocratas checando as notícias no celular entre um e outro despacho ou cuidadoras ligando a TV enquanto serviam o almoço das crianças olhando a chamada de forma perplexa. A disseminação geográfica do vírus se alastra tão rapidamente pelo planeta quanto o fogo na Amazônia ou no Pantanal.

 

Cena I: A doença

Quando foi declarada a pandemia, o balanço da OMS era de 118 mil casos em 114 países e 4,3 mil mortes. No Brasil, no fim da tarde do mesmo dia, o Ministério da Saúde divulgou seu boletim sobre infectados com o novo vírus: eram 52 casos confirmados, 907 casos suspeitos e 935 descartados. Exatos 9 meses depois, começo a escrever este artigo, coincidentemente ou não, em 11 de dezembro, quando tínhamos quase 180 mil óbitos registrados e mais de 6,8 milhões de diagnósticos. Uma criança teria sido gestada e parida nesse período, como muitas foram e não conseguimos acompanhar seu desenvolvimento inicial.

Parece que faz tempo, mas que passou rápido. E em que ponto estamos no espiral do tempo que assemelha passado e presente? O Reino Unido iniciou a vacinação em massa, o mesmo território que comporta a Inglaterra, de Engels, onde os custos sociais do “progresso” capitalista propagavam todos os tipos de doenças, como o Tifo – doença endêmica tão contagiosa que chegou a gerar estranhamento em Engels por não se propagar mais naquele ambiente tão insalubre que a classe trabalhadora era submetida.

Dada a alta taxa de contaminação do vírus, a orientação foi o isolamento social, e assim, para alguns o espaço de trabalho se tornou parte do privado. As mulheres, que são responsáveis por 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo, segundo um relatório da Oxfam (2020), se viram mais sobrecarregadas. Já do total de trabalhadores da saúde e serviços sociais no mundo que estão na linha de frente no combate a Covid-19, 70% são mulheres e recebem, em média, 11% a menos que os homens, trabalhando em ocupações e jornadas semelhantes, de acordo com a ONU Mulheres. No Brasil, 75% desse setor são mulheres que recebem, em média, 35% a menos e têm maior presença nas funções de nível técnico e auxiliar. Os salários mais baixos e responsabilidade com as tarefas da casa e dos cuidados da família já apareciam nos relatos descritos por Engels.

 

Cena II: A vida

Espaços restritos, de três ou quatros cômodos e por vezes sem janelas ou com ventilação precária, onde seres humanos se amontoavam para viver. Essas habitações insalubres ficavam em bairros, geralmente, que não tinham calçamento; as ruas eram sujas e não havia esgoto. Soma-se a esse cenário de miséria uma alimentação ruim e roupas em farrapos. Com esta palavras, Engels descrevia as condições de moradia do proletariado inglês na primeira metade do século XIX.

Segundo dados de 2019 do IBGE, cerca de 21,6% (45,2 milhões) da população brasileira reside em domicílios com pelo menos alguma inadequação domiciliar: ausência de banheiro de uso exclusivo, paredes construídas com material não durável, adensamento excessivo, ônus excessivo com aluguel e/ou ausência de documento que comprove a propriedade. Se considerarmos a população com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 por dia (PPC – critério para linha da pobreza monetária para países de renda média alta, como o Brasil, segundo o Banco Mundial), esse percentual sobe para 43,2%.

Destes 45,2 milhões de brasileiros e brasileiras, 13,5 milhões são de raça/cor branca e 31,3 milhões preta ou parda. As inadequações domiciliares registraram proporções maiores para as cinco inadequações nos arranjos formados por mulheres sem cônjuge e com filho de até 14 anos, em comparação com os outros três tipos (Unipessoal, Casal sem filho, Casal com filho/s).

O acesso aos serviços de saneamento básico (abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede coletora e coleta domiciliar direta ou indireta de lixo) também se revela fortemente relacionado à pobreza. No conjunto da população, 90,6% residia, em 2019, em domicílios com coleta direta ou indireta de lixo, 84,7% em domicílios com abastecimento de água pela rede geral e 65,8% em domicílios com esgotamento pela rede coletora ou pluvial. No recorte de pessoas com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 PPC por dia, os resultados caem para 78,9% em domicílios com coleta de lixo, 73,5% com abastecimento pela rede geral e 44,8% com esgotamento por rede coletora ou pluvial. A combinação entre ausência dos serviços públicos de saneamento e a situação de pobreza monetária pode significar maior vulnerabilidade, na medida em que a adoção de soluções individuais (poços artesianos, aquisição de água mineral e fossas sépticas) costuma envolver dispêndio financeiro.

A população negra tem maior presença nas periferias, marca do racismo estrutural, tendo condições socioeconômicas e de saúde mais precárias, o que leva eles junto a mulheres e pobres a serem os mais afetados pela Covid-19, ainda segundo o IBGE. Para além da doença, o genocídio da população negra pelo Estado brasileiro não arrefeceu, assim como a violência contra as mulheres que muitas vezes se veem confinadas junto a seu agressor.

 

Cena III: A fome

“É fácil compreender que tanto a qualidade como a quantidade da alimentação dependem do salário e que, entre os operários mais mal pagos, em especial entre aqueles que têm uma família numerosa, a fome impera, mesmo em períodos nos quais há empregos”; a realidade documentada na pesquisa de Engels em meados de 1800 é capturada nos números mais recentes sobre segurança alimentar em solo nacional.

 

Fonte: IBGE, Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018.

 

Nos domicílios em condição de segurança alimentar, 72,5% tinham até três moradores; esse percentual cai para 61,2% para os domicílios em insegurança alimentar grave. 11,3 pontos percentuais marcam a distância entre estas duas condições extremas. Cabe lembrar que esses dados apresentados aqui trazem um retrato do acesso a alimentos, e não sobre o aspecto qualitativo desses alimentos, como variedade, nível de processamento, quantidade de venenos usados na produção etc.

Além da fome, um número crescente de pessoas teve que reduzir a quantidade e qualidade da comida que consomem. Dois bilhões de pessoas, ou 25,9% da população global, passou fome ou não tinha acesso a alimentos nutritivos e suficientes, em 2019. Como esperado, o custo da dieta aumenta conforme a qualidade cresce. Engels observou que quanto maior era a restrição, menor era o consumo de carne.

Já a POF2017-2018/IBGE mostrou que o aumento da insegurança alimentar refletiu diretamente na aquisição de três grupos de alimentos específicos: os cereais e leguminosas; as farinhas, féculas e massas; e os Pescados. Lembrando que os maiores percentuais de insegurança alimentar grave foram encontrados na região Norte, onde o consumo de pescados usualmente é maior que em outras regiões do país, provavelmente devido às questões geográficas, culturais e econômicas.

A fome que assola o mundo não é de hoje. Segundo os relatórios da FAO/ONU das edições de 2017 e 2018, os conflitos e variações climáticas minavam os esforços para acabar com a fome. Já em 2019, o relatório mostrou as desacelerações econômicas como inimigas. Agora, em 2020, a pandemia de Covid-19, bem como surtos sem precedentes de gafanhotos do deserto na África Oriental, reduzem as perspectivas econômicas de uma forma que ninguém poderia ter previsto.

A estimativa mais recente (2019) mostra que antes da pandemia do coronavírus, quase 690 milhões de pessoas passavam fome, o equivalente a 8,9% da população mundial. Já o número de pessoas afetadas por grave insegurança alimentar, que é outra medida que se aproxima da fome, mostra que cerca de 750 milhões – ou quase uma em cada dez pessoas – eram expostos a níveis severos de insegurança alimentar no mundo. Apesar dos avanços na China, desde 2014 o número de famintos em todo o mundo tem aumentado lentamente. No Brasil, não é diferente; ao olharmos a distribuição dos moradores em domicílios (tabela abaixo), segundo a situação alimentar, nota-se uma inversão preocupante da trajetória.

 

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004/2013 e Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018.

 

Uma avaliação preliminar da FAO sugere que a pandemia pode adicionar entre 83 e 132 milhões de pessoas no número total de desnutridos no mundo em 2020, dependendo do cenário econômico.

 

Cena IV: A labuta

O grande relógio marca precisamente 18:45, e aqui não estou falando do Big Ben, mas daquele relógio que fica no topo do icônico Conjunto Nacional na turística Avenida Paulista, em São Paulo, onde centenas de trabalhadores esperam o horário da fome próximo a restaurantes, shoppings centers e das famosas padarias paulistas. O curioso dos dias atuais é que estas pessoas não vão jantar e nem são contratados destes estabelecimentos; elas recebem por entregas.

As longas jornadas, os baixos salários, a falta de regulação, uma reserva de desempregados e as condições precárias de trabalho comprimem o tempo e aproximam os operários têxteis da Inglaterra de 1845 aos entregadores de aplicativos de 2020.

Mas aqui queria resgatar um paralelo específico entre esses tempos verossimilhantes: na Inglaterra, durante a primeira revolução industrial, a lei do aprendiz “proibia o trabalho noturno das crianças e limitava sua jornada de trabalho a doze horas; como não previa nenhum sistema de controle, foi amplamente desrespeitada pelos industriais” (ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 187). Brasil, quarta revolução industrial: a pesquisa da Aliança Bike escancara uma realidade recorrente nos serviços de entrega por aplicativo: a utilização de mão de obra de menores de 18 anos. Os aplicativos solicitam documentos com foto para cadastrar os entregadores, mas as fraudes são comuns e a fiscalização deficiente. A legislação brasileira até permite o trabalho de jovens desde que as atividades exercidas não sejam perigosas ou insalubres. Um dos pontos vetados para esta faixa etária são os serviços externos que impliquem em risco a sua segurança como a função de office-boy.

 

Cena V: A mudança

“Temos uma doença incurável: esperança. Esperança na libertação e independência. Esperança em uma vida normal, na qual não somos heróis nem vítimas.”

Em um ano que nos desafiou de uma forma nunca imaginada, busco no passado referências e algum consolo e inspiração na arte; recolho os cacos e assim pinto um quadro em minha cabeça. Vejo “pequenas” solidariedades que rasgam a história, que juntas formam uma colcha de retalhos; soltas até tinham sua beleza, mas pareciam perdidas. E assim, sujeitos coletivos, indagadores incansáveis das realidades, tramamos um mundo melhor e ousamos vivê-lo em paralelo. Brecht já dizia que “as novas eras não começam de uma vez”, afinal o presente guarda o embrião do futuro.

O ano de 2020 foi marcado por outras ondas para além da onda de contaminação do Covid, como a maré verde que tomou as ruas da Argentina e transbordou pelas redes a toda América Latina, desaguando na aprovação da lei de descriminalização do aborto pela Câmara dos Deputados daquele país; ou o movimento Vidas Negras Importam, que reacendeu com protestos nos Estados Unidos após o assassinato de Floyd e ganhou o mundo; ou os protestos chilenos que culminaram no plebiscito sobre a nova Constituição. No Brasil, tivemos o #BrequeDosApps, uma mobilização nacional contra a exploração do capital; a votação expressiva de Guilherme Boulos e Luiza Erundina na eleição municipal de São Paulo, apontando que boa parte da cidade quer mudanças; além da campanha de solidariedade do Periferia Viva que se espalhou por todo país. Assistimos também Evo Morales cruzar a fronteira e retornar ao seu país, após vitória do MAS na Bolívia; o povo venezuelano reafirmar nas urnas sua resistência ao projeto Imperialista; Cuba enviar médicos em ações de solidariedade; a maior greve do mundo na Índia; a derrota do Trump e do discurso intolerante e a China dando exemplo de como sair da maior crise dos últimos tempos.

Certamente, o imaginário constrói novos mundos, mas é a prática que tece realidades. Se não fosse isso, a existência seria insuportável. Seguimos tendo sonhos de nação e cultivando o futuro.