A retórica militar camuflada na “guerra” ao coronavírus
Observatório da Defesa e Soberania
Por Ana Penido
Desde que a pandemia do Covid-19 chegou às terras brasileiras, a palavra guerra passou a fazer parte corrente do vocabulário do país. Não é um fenômeno novo, já que em virtude do passado militarizado latino-americano, por aqui travam-se guerras contra a pobreza, contra as drogas, contra o analfabetismo, contra a dengue, e não seria diferente com o coronavírus. Também não é nova a relação entre a saúde e a guerra, uma vez que a profissão de enfermagem, por exemplo, nasce nesses ambientes. Por fim, um elemento que favorece a percepção da pandemia como guerra (assim como da segurança pública) é o número de mortos. No momento da escrita desse texto, já havia morrido nos EUA um número superior aos ataques do 11 setembro 2011, com mais de 81 mil mortes. Na Segunda Guerra Mundial, morreram 419 mil estadunidenses.
Entretanto, gostaríamos de problematizar a capacidade das metáforas militares para explicar o momento atual, iluminando aspectos que a retórica militarizada ‘camufla’.
Antes de mais nada, é preciso definir que entendemos a palavra “guerra” como um fenômeno eminentemente político, sujeitos a amplas interpretações histórico-sociais. Basicamente, “guerra é o confronto violento entre grupos politicamente organizados”. O declínio das guerras interestatais não altera esse entendimento. Da mesma maneira, não ‘vale tudo’ na guerra. O direito internacional possui um conjunto de normas sobre o que pode ser considerado ético dentro de uma guerra. Nos momentos de guerra, amplifica-se a identidade emocional nacional e surgem iniciativas de solidariedade mesmo entre classes sociais distintas. Já em epidemias, as classes sociais são afetadas de forma distinta (basta comparar o número de mortos/infectados das diferentes regiões de São Paulo), e gera-se um sentimento egoísta, seja por parte dos Estados (sabotagens comerciais para a compra de insumos médicos), seja por parte dos indivíduos (estigmatização de grupos mais vulneráveis, como idosos ou asiáticos).
Em entrevista ao Tutaméia, José Luis Fiori aponta como traço comum entre a pandemia e as guerras os impactos econômicos de curto e médio prazo, como o ‘orçamento de guerra’ discutido no Congresso. “Mas, ao contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir cidades, infraestruturas, equipamentos físicos, fábricas ou qualquer outra atividade econômica.” Entretanto, embora menos destrutivas, as pandemias exigem respostas econômicas gerais, e não localizadas.
Em uma pandemia, não há trincheiras, linha de frente ou inimigo. Tampouco o vírus pode ser considerado uma ‘força irregular’, que deseja impor sua vontade sobre a humanidade. Ele atinge pessoas de ideologias e classes distintas. Se alguns morrem mais que outros, não é prioritariamente por causa do vírus (embora isso ainda esteja em estudo), mas sim devido às condições políticas, econômicas e sociais dos afetados, assim como pelas medidas adotadas pelos governos diante da crise.
Definir que esta não é uma guerra, não significa que as Forças Armadas (FFAA) não possam ou não devam ser empregadas. Os governos têm como responsabilidade o gerenciamento da pandemia, e devem utilizar todas as ferramentas possíveis do Estado com essa finalidade, inclusive as FFAA. Aliás, isso é um elemento comum entre as guerras e as pandemias, já que ambas exigem capacidade governamental para mobilizar a sociedade e as estruturas estatais para responder conjuntamente a um desafio de tal magnitude. Exigem comando e estratégia, o que obviamente falta ao Brasil nesse momento.
Uma das questões que ficam camufladas com a retórica de guerra é sobre os trabalhadores da saúde e dos setores essenciais. Não há dúvidas de que as profissionais de saúde – uma categoria majoritariamente feminina – são hoje o grupo mais diretamente envolvido nas ações para mediar a crise, em um ato de grande determinação. Entretanto, pensar que elas estão entrincheiras, que são heróis em combate, que fizeram uma promessa de ‘salvar vidas’, pode escamotear a responsabilidade que os governos têm, por exemplo, de fornecer equipamentos de proteção individual, horas extras, contratações emergenciais, condições adequadas para as famílias que delas dependem, etc… Se em ambientes de guerra os soldados não se lançam em missões sem preparo e equipamentos adequados, por que as profissionais de saúde deveriam fazer isso? Além do mais, elas não se ‘alistaram’ e não têm, e nem terão, direitos especiais como os militares em virtude da carreira, como uma previdência distinta. Ainda no âmbito da saúde, não são hospitais de campanha, são hospitais provisórios. Nem no meio da guerra cabe o raciocínio do atual ministro da Saúde, Nelson Teich, em escolher os que podem morrer.
Outra questão que fica camuflada pelo discurso de guerra é do abastecimento. Existe uma preocupação sincera nas FFAA com o desabastecimento de alguns produtos caso a quarentena se prolongue, podendo gerar caos social com os saques. Entretanto, mais uma vez, a metáfora da guerra só serve para escamotear a questão. Enquanto os grupos econômicos dominantes enchem as geladeiras e despensas, comprando quantidades recordes de mantimentos e produtos de limpeza e higiene, nas casas da população vulnerável falta o básico. Se fosse de fato uma guerra, caberia ao governo o uso racional e centralizado dos seus recursos escassos, garantindo o acesso a todos, e prioritariamente aos mais vulneráveis aos ataques ou àquelas na linha de frente.
O lazer/trabalho/estudo também fica escondido no discurso de guerra. Ficar em casa com conexão banda larga e uma TV com 500 canais é distinto de precisar entreter cinco filhos também em casa em virtude do recesso escolar. A internet é um produto que nasce na indústria bélica americana, e é um dos insumos estratégicos básicos que fazem parte de um planejamento defensivo militar. Afinal, informações, dados, e mesmo a localização do povo brasileiro passa pelos cabos de fibra ótica e satélites. Em um ambiente de guerra, esse é um terreno fértil para confrontos, a chamada guerra cibernética, e sua infraestrutura é uma das primeiras visadas em ataques.
Por fim, imaginem como a pandemia chega em países que sim, estão em guerra ou foram recentemente envolvidos em uma. O que é a pandemia quando se mora em um assentamento palestino, em escombros na Síria, ou em países como a Venezuela sob bloqueio econômico? Na política e na guerra, que fins justificam quais meios?