A situação da classe trabalhadora no Brasil e a nova pesquisa Tricontinental
Por Cristiane Ganaka e Delana Corazza*
Os dados do IBGE seguem confirmando a permanência de uma desigualdade intrínseca em diferentes dimensões no mercado de trabalho brasileiro, tanto no que diz respeito às questões de gênero, raça e geográficas, quanto ao acesso e a obtenção de renda via trabalho assalariado. A precariedade da condição da classe trabalhadora se expressa na taxa de informalidade significativa, na casa dos 38,9%, segundo dados do trimestre encerrado em março de 2024, em uma renda média baixa (R$ 3.123,00) e em uma expressiva taxa de subutilização da força de trabalho (17,9%).
Ou seja, grande parte da massa de trabalhadores está vulnerável, fora do sistema de proteção social, com salários que muitas vezes não garantem seu sustento e expostos à insuficiente oferta de serviços públicos que atendam suas necessidades básicas. A taxa de subutilização indica que não há trabalhos formais para todos. Tal cenário empurra os trabalhadores e trabalhadoras para uma estratégia de sobrevivência, seja como MEI, conta-própria, autônomo, bico, etc.
No que diz respeito às condições de vida da população – como acesso à moradia, saúde e educação – os dados são mais preocupantes em alguns casos específicos: as mulheres sem cônjuge e com filhos de até 14 anos de idade são as que mais sofrem com a falta de documentação do imóvel que vivem ou com ônus excessivo do aluguel. Ainda que os índices sobre moradia, de imediato, não pareçam tão alarmantes, dado que a maioria da população reside em domicílio próprio sem parcelas a serem pagas (64,6% em 2022), é necessário pensar que para além dos dados de acesso à moradia, questões como a precariedade desta moradia, tanto do ponto de vista de sua estrutura física – problemas como ventilação, iluminação, proteção contra frio, umidade e calor – como de acesso às políticas públicas urbanas – asfalto, saneamento básico, transporte, etc. – são extremamente relevantes para compreender a condição de vida da população.
O Brasil é marcado por processos de segregação sócio-espacial da classe trabalhadora, onde a população mais pobre é expulsa de áreas de valorização imobiliária, tendo muitas vezes como única opção ocupar áreas irregulares, sem infraestrutura necessária para o acesso à direitos sociais e a uma vida digna, sendo responsável pela construção de suas próprias casas e, inclusive, ocupando áreas de risco ambiental.
A moradia é considerada a porta de entrada para a garantia de uma vida digna, e sua insegurança dialoga com a dificuldade de acesso a outros direitos: por exemplo, o endereço muitas vezes é impeditivo na conquista de uma vaga de emprego por conta da precariedade do transporte público ou pelas notícias bombardeadas nos meios de comunicação sobre violência e insegurança nos bairros onde mora a população mais empobrecida.
Além disso, ao ocupar novas áreas sem infraestrutura ou morando em regiões sem investimento público, a população tem que, muitas vezes, se deslocar com distâncias consideráveis para acessar serviços de saúde e educação. Nesta última questão, há um grande desafio de frear a evasão escolar, principalmente no Ensino Médio. Em 2022, cerca de 9,8 milhões de jovens de 15 a 29 anos já haviam abandonado a escola sem concluir a educação básica, o que obviamente prejudicará essa pessoa na busca por emprego melhor remunerado, o que contribui para a manutenção das condições de vida precárias desse jovem.
No que diz respeito à identificação do trabalhador enquanto classe, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo, divulgada em 2017 sobre as Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo, trabalhador e patrão não aparecem como sujeitos antagônicos. Essa visão é reforçada pelo empreendedorismo, em que a ideia de ser “patrão de si mesmo” mascara a situação de classe do trabalhador, assim como sua precarização. Em paralelo, as empresas têm buscado “flexibilizar” as relações de trabalho, alegando que isso geraria crescimento econômico e consequentemente renda.
Ao se despir de sua identidade de trabalhador, fruto das dinâmicas neoliberais e do enfraquecimento de espaços coletivos de luta vinculados anteriormente a essa identidade, as respostas para uma massa “sobrante” de trabalhadores precarizados têm sido dadas pelo campo conservador e reacionário ou pelo crime organizado. São as igrejas e o tráfico hoje que têm organizado parte da população mais pauperizada, que inclusive, em alguns espaços, têm construído projetos comuns, como podemos observar na impensável junção do tráfico de drogas com as igrejas neopentecostais no Rio de Janeiro.
Essas dinâmicas têm consequências não só do ponto de vista da vida concreta e material da população, com precárias condições de vida e trabalho, informalização, baixa remuneração e pouca proteção social, mas também como esses trabalhadores (não) se enxergam enquanto classe, deixando de compreender quem de fato é o seu inimigo.
Do ponto de vista institucional, ao analisar as votações das bancadas do campo conservador “Boi, Bala e Bíblia” nos últimos períodos, é possível perceber que necessitam umas das outras para barrar projetos progressistas, ainda que “moralmente” desarticuladas com aquilo que defendem. A bancada evangélica, em contradição com o que os evangélicos têm pregado nos territórios – de que todos são passíveis de salvação, basta a conversão, votou sempre em maioria a favor de pautas punitivistas e armamentistas, como a defesa da redução da idade penal, por exemplo.
Essa junção – fé e fuzil – não é recente, tem suas raízes ainda na ditadura civil-militar, onde grande parte dos evangélicos, cientes dos processos de tortura em curso, se calaram ou mesmo se aliaram ao governo militar contra uma ameaça comunista tantas vezes inventada por parte da direita. Os evangélicos conservadores foram “ao mundo” a partir do enfrentamento a um inimigo comum – o comunismo, compondo inclusive o governo militar.
Essas articulações não teriam a força política que tem sem adesão popular. Os discursos contra as pautas vinculadas à esquerda estão nos territórios – ancorados pelas Big Techs, sendo defendidos, inclusive, por parte da população empobrecida, principal vítima dos discursos de ódio.
Diante deste cenário, coloca-se como imperativo para o campo popular investigar a situação da classe trabalhadora no Brasil para compreender por que e como as ideias da classe dominante são incorporadas pela população mais pobre. A direita tem se apresentado em diversos espaços – institucionalizados ou não – de forma organizada e financiada, sobretudo com imbricações em dois temas que já foram aprofundados pelo Instituto Tricontinental: segurança e religião.
No campo institucional, as bancadas da Bala e da Bíblia têm criado uma articulação efetiva desde 2015, no enfrentamento à discussão sobre a Comissão Nacional da Verdade e pautas consideradas do âmbito moral e punitivista, como os direitos reprodutivos e temas que se referem ao direito penal. Em 2018, como sabemos, Bolsonaro venceu as eleições vinculando essas duas pautas. É interessante pensarmos que as pautas de cunho moral, ligadas à direita cristã, não estavam em seu repertório antes do golpe. Isso se dá a partir de uma aproximação do ex-presidente com grupos religiosos fundamentalistas cristãs, simbolizada pelo seu batismo no Rio Jordão em 2016, ato muito representativo ao universo evangélico, ainda que Bolsonaro tenha se mantido católico.
Sob todos estes desafios, a proposta da nova pesquisa do escritório Brasil do Instituto Tricontinental é apresentar uma análise das condições de vida e trabalho da diversificada classe trabalhadora brasileira, compreendendo, a partir de dados sistematizados, quem é, concretamente, o trabalhador. Frente a esse diagnóstico, pretendemos apontar como os elementos da ideologia burguesa se convertem em hegemonia e por quais mecanismos esta ideologia é apropriada e (re)significada pela população. Inicialmente aprofundaremos três eixos que se tornaram centrais no último período para o amortecimento da luta social: fundamentalismo religioso, violência e a defesa do empreendedorismo.
A pesquisa que se inicia buscará, para além do conteúdo, o diálogo e construção constantes junto aos movimentos sociais do campo popular com o objetivo de contribuir para as ações concretas nos territórios.
*Cristiane Ganaka e Delana Corazza são pesquisadoras do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.