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Artigos

A volta ao normal e o mundo pós pandemia

Ilustração realizada para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. “Basta de precarizar nossa vida para sua comodidade”, por Ailén Lihué Possamay (Argentina).

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.

 

Por Tatieli Escarllet Gonçalves Tomaz

 

Quando perguntados pelo futuro, isso lá em 1900 e tantos ou até mesmo nos anos 2000, pensávamos em muitas coisas, desde carros voadores e robôs no quesito tecnologia a uma política social de equidade e uma sociedade mais justa no âmbito social. Na tecnologia, até que estamos avançando em algumas coisas. E em meio às muitas previsões que realizamos, uma pandemia que colocou o mundo em isolamento social, não deveria estar presente na resposta de ninguém quando perguntados sobre o que esperavamos do futuro.

O isolamento social alterou a rotina global. Nas ruas apenas os que necessitam trabalhar para oferecer para a sociedade os serviços essenciais e aqueles que são descrentes do que está ocorrendo e que acabam contribuindo para o aumento do nosso tempo em casa. Nenhum tipo de relação social é a mesma da do início do ano de 2020, famílias que mal se encontravam no jantar agora passam 24 horas por dia juntos, comemoramos festas de aniversários por videochamadas,realizamos drive thru de chá de bebê, Web Namoro, as abandonadas chamadas telefônicas estão sendo mais utilizadas e até conversamos por janelas com os vizinhos.

O Home Office e o EAD (Ensino a distância) também são dois termos do momento. Há crianças de dois anos tendo aulas com as “tias” da creche através de videochamadas e mães/pais de família se esgotando trabalhando em casa e cuidando do lar e dos filhos. O recomendado é não sair, por isso nossas comidas e compras chegam em nossas casas por motoboys por serviço delivery ou buscamos nas portas dos estabelecimentos como um drive thru.

Nesse atual cenário de pandemia de Coronavírus, não só nossas relações sociais foram alteradas, como também a política e a economia mundial. Enquanto observamos discussões políticas de como agir contra essa epidemia e acompanhamos os números de casos e mortes aumentarem a cada dia, nós começamos a nos perguntar como vão ser as coisas pós pandemia quando tudo voltar “ao normal”?

O “ao normal” é uma ilusão criada por nós para enfrentarmos isso. As abreviaturas a.C (antes de Cristo) e d.C (depois de Cristo) vão se tornar “Antes do Corona” e “Depois do Corona”. E enquanto vivemos em um limbo entre esses dois tempos, nos resta apenas fazer o que nós e nossos familiares fazíamos antes que é apenas prever o mundo segundo nossas ideias, mas dessa vez, não um futuro de daqui vinte anos, mas sim um de daqui um mês? Ou três? Ou será que vão ser seis meses nesse limbo?

Queria poder divagar e acreditar que vamos conseguir superar toda essa crise política, econômica, social e também, que vou ousar dizer, pessoal causada por um vírus que alguns batem na tecla afirmando ter sido criado por comunistas para pôr fim ao capitalismo. Se eu fizesse isso, estaria desenhando um futuro utópico, com uma enorme distância da realidade que nos aguarda.

Economistas pelo mundo já apresentam dados que demonstram uma grande recessão global pós epidemia. Com fábricas, comércios e viagens congelados por meses, acrescentado ao grande gasto, necessário, no combate à pandemia.

Tivemos as bolsas de valores despencando pelo mundo inteiro. Países estão apresentando quedas nunca vistas na economia nacional e por isso governos estão injetando trilhões para evitar que haja uma perda ainda maior, vide Estados Unidos destinando um plano econômico de tamanho comparativo aos de tempos de guerra.

A alta taxa de desemprego provocado por uma economia sem ganhos e apenas perdas, vem fazendo com que além de estarem injetando na economia, buscam auxiliar os cidadãos sem renda ou que ficaram com está comprometida devido a situação.

No Brasil o governo buscou atender uma minoria, a dos milionários, destinando dinheiro para bancos e grandes empresários. Só com muita pressão que o auxílio emergencial conseguiu ser aprovado. E mesmo assim, quem necessita de ajuda do governo, continua abandonado e dependente, em muitas vezes, de caridade. Em um mundo pós Coronavírus, a mão de obra mais simples, vai ser ainda mais desvalorizada, se utilizando do argumento “se precisa mesmo, não vai reclamar do trabalho”, com um número muito alto de desempregados, iremos observar um crescente aumento de informais. E sem um projeto político que busque incentivar a criação de empregos, iremos demorar muitos anos para diminuir a taxa.

O Home Office, trabalhos remotos e o sistema de delivery e atendimento de empresas que nunca tinham executados serviços dessa maneira, foram soluções, que podem gerar problemas futuros. Afinal, o empresário busca lucros e benefícios para si, assim, após meses com equipes reduzidas e com salários menores, realizando as mesmas funções, isso permite brechas para que hajam mais demissões ou se mantenham, pelo menos parcialmente, esse formato de estrutura funcional. Então é possível imaginar que novas formas de empregos e atividades ou vão surgir ou se tornar permanentes.

A pandemia irá deixar uma marca gigantesca na economia, serão anos para se recuperar. Nenhuma outra crise econômica irá se comparar a essa, afinal, tivemos petróleo sendo vendido por centavos e o dólar batendo R$6,00. A economia é um paciente em estado grave que respira por auxílio de aparelhos, mas com muito trabalho e com altos e baixos ela vai sobreviver.

Os bons líderes mundiais enrolaram as mangas dos paletós e se colocaram abertos as melhores estratégias para evitar o contágio e o sufocamento do sistema de saúde de seus hospitais, colocando de lado a economia e priorizando vidas. O que fez com que assistimos países inteiros isolados ao serem colocados em isolamento total, mais um dos atuais termos famosos em inglês, lockdown.

Mas na contramão disso, outros julgaram o vírus apenas como histeria coletiva e uma gripezinha. Itália e Londres atrasaram as medidas de combate e como consequência obtiveram números absurdos de casos e mortes, fazendo com que a Europa viesse a se tornar o epicentro da pandemia.

No Brasil com um governo preocupado mais com economia e com os interesses dos ricos, houve necessidade de medidas provisórias para poder dar autonomia aos poderes estaduais e municipais perante aos decretos federais que iam contra as recomendações da OMS.

Enquanto escrevo essa projeção futurística de um mundo pós pandemia, a Rede Globo deve estar ligando para o presidente Jair Bolsonaro para saber qual música ele gostaria que tocasse no Fantástico, já que o Brasil caminha para o terceiro ministro da saúde em um mês. Em homenagem ao seu amigo Queiroz e por ele ser uma criança na presidência, creio que a música escolhida será Dança da Laranja da rainha dos baixinhos, Xuxa.

Em um país com Bolsonaro presidente, pode-se esperar muita coisa. E o Coronavírus possibilitou uma guerra política ainda maior. Antes qualquer oposição ao governo, você era considerado de esquerda e petista, hoje não só isso rotula sua possível posição política, mas ao se mostrar contrário as medidas, ineficazes, do governo federal, seus argumentos são invalidados por pessoas que começam a te chamar de comunista esquerdopata.

O aumento de Fake News atacando governadores e prefeitos defensores do distanciamento social só vem aumentando, sendo reforçada por pronunciamentos presidenciais defendendo uso de remédios no combate ao vírus, que não tem eficácia comprovada. O eleitorado cego ainda dissemina na internet palavras de ódio, textos repetitivos de supostas curas ou métodos e até uma suposição que isso é tudo uma invenção para derrubar o governo. Não necessita muito pesquisar para achar vídeos de passeatas e ou de falas apoiadas por grandes empresários e comerciantes incentivando a abertura do comércio.

As câmaras e assembleias legislativas, agora de maneira virtual se tornaram ainda mais palanques, mas de maneira bem dividida. Onde de um lado estão os que estão fazendo o certo, já que foram eleitos pra isso, que é defender os direitos do povo, lutando por ampliação de leitos, distribuição de cestas básicas e buscando meios para os que foram atingidos economicamente pela pandemia sejam atendidos. Enquanto do outro lado ou buscam defender empresários e apoiam as medidas do governo federal ou realizam a mesma coisa que Jair Bolsonaro em vinte e sete anos como deputado, nada.

E é exatamente isso que vai ser usado em muitas eleições pela frente. Políticos vão se utilizar do que fizeram e que lado apoiaram durante a pandemia, os planos e metas não vão ser o ponto principal para ganhar votos, mas sim, como eles utilizaram o palanque durante a guerra contra o Coronavírus.

A queda do governo Bolsonaro não se dará pelas suas ações nesses tempos, mas sim por causa de outro ministério e atos do passado. A pandemia só proporcionou perda de forças e aliados que o ajudaram a chegar ao poder. Com essas ações, também foi possível observar uma grande queda de apoio popular, ainda mais com o descaso pela doença e suas vítimas e seu incentivo às aglomerações, como vistas em frente ao Planalto em que o presidente foi cumprimentar apoiadores, descumprindo todas as orientações da OMS.

O futuro da política é confuso e provavelmente com muitas incertezas. Frentes políticas com uniões de partidos para apoio de candidatos já estão sendo criadas e isso pode ajudar a combater o crescimento da extrema direita no Brasil nos últimos anos. Políticas públicas voltadas para atender a população mais afetada devem ser criadas e a defesa do SUS e da pesquisa brasileira também vão ser utilizados nos palanques eleitorais.

Políticos com históricos de corrupção e ligados a esquemas políticos vão ter a imagem limpa, para os leigos com os seus feitos durante a pandemia. João Dória, governador de São Paulo toma atitudes de quem deve concorrer à presidência em 2022, assim como Mandetta, ex ministro da Saúde demitido por fazer o certo, que deve visar um cargo público melhor. Outros governadores, prefeitos e secretários de saúde também se comportam visando se sair bem em próximas eleições, afinal, em tempos de crise, alguém sempre vai conseguir tirar proveitos, mas garanto que nunca vai ser o pobre.

Em um país com uma enorme desigualdade na qualidade do ensino, durante uma pandemia que obrigou escolas e universidades a suspenderem as aulas por tempo indeterminado, poderíamos esperar medidas que ampliariam ainda mais essa desigualdade.

Alguns estados e municípios assim que fecharam suas escolas ofereceram aos alunos em situação de vulnerabilidade cestas básicas ou foi dado um valor fixo por aluno. Um meio encontrado para auxiliar famílias, ainda mais que muitas crianças passam o dia apenas com a refeição realizada na escola.

Mas o que as Secretarias de Educação vêm buscando é sanar essa ausência escolar através do EAD. O que impossibilita o erro nesta implementação, não é só um obstáculo, mas sim vários. Estão sendo utilizadas plataformas nunca vistas, onde o professor não teve nem um preparo ou formação, o obrigando a aprender em tempo recorde e sem auxílio como usar as plataformas online para as aulas por videochamadas, ou a gravar, editar e postar nos meios que estão sendo utilizados.

O professor, formado para atuar em sala de aula presencialmente, é só a ponta de um problema ainda maior, já que os alunos, em sua maioria não estão conseguindo ter acesso ao EAD. Muitos não têm acesso a internet e nem meios para assistir às aulas ou imprimir o material enviado pelas escolas. Fora que, principalmente os alunos da primeira etapa do Ensino Fundamental são os que mais necessitam de auxílio, pois encontram-se em fase de alfabetização, porém com responsáveis que ou estão ainda em rotina de trabalho, ou cuidando dos outros filhos e das tarefas domésticas ou até mesmo, também são analfabetos e não conseguem ajudar com as aulas, isso contribui para que inúmeras crianças fiquem impossibilitadas de acompanhar nessa metodologia.

Muitas escolas da rede particular de ensino também estão tendo problemas em conseguir atender seus alunos, já que alguns pais precisam ceder celulares ou notebooks que estão sendo utilizados no serviço Home Office para seus filhos assistirem às aulas e tendo que auxiliá-los nas tarefas. Os professores das redes particulares também estão aprendendo com dificuldades a utilizar os recursos, mas com eles não há possibilidade de discussões, ou o trabalho é realizado ou outro profissional será contratado para realizar a função e você vai perder seu emprego.

Agora se até na rede particular está tendo problemas para executar aulas, o caos na rede pública deve ser ainda maior do que apresentado na mídia. Mas mesmo assim, o MEC (Ministério da Educação) tentou manter as provas do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) com opção da prova virtual que teve a sua data marcada nas mesmas da FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular) e UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).

O MEC durante a pandemia ainda propôs pagamento de bonificações as universidades que não parassem suas aulas, mesmo sendo está uma orientação da OMS. Muitas universidades públicas pararam, ou pior, nem chegaram a iniciar seu ano letivo, poucas foram as que mesmo com protesto de alunos iniciaram suas aulas a distância.

Mas como que com milhares de brasileiros sem aulas iria ser mantido uma prova que decide o futuro profissional desses? Não se sabe a realidade dos alunos que podem estar em situação de vulnerabilidade e buscam apenas sobreviver em meio desse caos, tendo os estudos colocados de lado. Mas o MEC através de uma propaganda totalmente desnecessária conclui que havia condições de aplicação das provas, mesmo a desigualdade do ensino já sendo grande e com as condições atuais o abismo está se tornando ainda maior, pois para eles, “quem quer, consegue estudar, só basta se esforçar”.

Assim como na questão do trabalho, o EAD também pode se tornar um problema no futuro. Levando em consideração que o país não investe em educação e tendo estados, como São Paulo onde a anos, tem um governo que é inimigo das escolas, o que está sendo oferecido hoje, pode permitir brechas que vão levantar enormes debates.

Sendo o estado de São Paulo o mais afetado pela pandemia e tendo um dos piores salários e desempenhos escolares do país, a rede estadual implantou o EAD à milhares de crianças através de aulas por aplicativos ou por um canal de televisão aberta com qualidade questionável e distribuiu kits com livros, apostilas e testes. O perigo é o governo de João Dória querer prorrogar esse ensino por mais tempo se utilizando da desculpa que não há recursos financeiros para retornar as aulas presenciais de forma integral, o que pode gerar ainda mais desvalorização do profissional de educação e o oferecimento de uma péssima qualidade de ensino.

A educação vai enfrentar um futuro sombrio, após quase um ano inteiro sem aulas, professores vão se esgotar trabalhando direto até o Natal, já que os feriados estão sendo adiantados e há possibilidade de aulas ministradas aos sábados. Sem contar as limitações de contato que vão ser impostas para evitar uma nova onda de contágio. O processo de retorno escolar será estressante para todos os envolvidos. As aprovações em massa vão ocorrer e muitos alunos vão iniciar o próximo ano letivo muito defasados. Isso em ordem geral, não só privado ou público.

Se o MEC estivesse preocupado com os interesses do aluno e não com os do governo, estaria traçando um plano de apoio com cartilhas pedagógicas e psicopedagógico para quando fosse feito o retorno às atividades escolares. Mas um governo federal preocupado com a educação, está em falta faz anos e só a partir da eleição de um bom governo que tenha como uma das defesas a educação pública, poderá traçar planos e corrigir o abismo que se abriu durante a pandemia, onde o acesso ao ensino de qualidade ficou ainda mais restrito a burguesia.

Quando falo da relação social que teremos no momento pós isolamento, me refiro ao nosso comportamento com o meio. Acompanhando as redes sociais, vi acontecerem os famosos cancelamentos virtuais, ato de fazer um famoso perder seguidores e notoriedade de figuras públicas e exposed, exposição de fotos e os vídeos comprometedores de anônimos ou famosos, que se apresentavam comportamentos que colocavam a si e outros em risco de contaminação.

Assim como as eleições colocaram em xeque amizades e relações familiares, o comportamento e o discurso, afinal pessoas consideradas sensatas, adotaram falas não só do governo como de descrentes da existência do vírus, também vão contribuir nos nossos laços futuros.

Nós iremos ter que nos contentar com eventos pequenos e literalmente, apenas para os mais próximos, por muito tempo. Grandes eventos e aglomerações só devem ser liberados no meio do primeiro semestre do próximo ano. Os happy hour, as festas e “rolês” vão ficar em segundo plano, para um d.C que não sabemos quando vai acontecer. Até encontros românticos e saídas gastronômicas com amigos vão demorar a serem normais. O indivíduo terá que reaprender a conviver em pequenos grupos, tendo suas saídas reduzidas a trabalho e compras essenciais, pelo menos por um tempo.

Mas mesmo com todo o caos instaurados no país, o indivíduo tem um maior, que são os problemas consigo mesmo. A individualidade e a sua participação na sociedade. A pandemia não causou problemas só na política, na economia e afins, mas também no “eu”.

O ser humano é um ser social e o isolamento causou cicatrizes que podem se tornar até permanentes em alguns. Porque muitos se viram sozinhos em suas casas ou com uma convivência forçada com as outras pessoas da casa que fez com que alguns enxergassem que seu lugar não era mais ali e até causou separações em casamentos.

O indivíduo que vivia uma vida tão exaustiva, se permitiu enxergar sua própria vida pessoal. Fez valorizar relacionamentos amorosos e familiares ou ver “defeitos” nunca observados. Mas fez mais do que isso, foi possível ver a si próprio. Ansiedades e depressões ignoradas ganharam espaço para se mostrar, as pessoas puderam ver suas angústias e medos se aflorarem e suas necessidades por ajuda médica se fizeram ouvida em muitos casos.

Um dos grandes obstáculos da pandemia foi a necessidade de estar em casa, pois fugimos dos nossos problemas com idas às ruas apenas para bater perna ou fazer compras como válvula de escape, até de uma briga familiar é possível sair, apenas indo pra longe de casa por algumas horas. Mas pra onde você vai quando não se é possível sair? Quem tem esse luxo, pro seu quarto, quem não tem, procura um lugar na casa para poder se esconder.

No momento que chegarmos no d.C, não haverá uma pessoa que não tenha passado por um momento difícil em sua vida pessoal. E quando olharmos para esse tempo em casa, vamos ter uma tristeza permanente marcada em nossas lembranças. Alguns vícios foram adquiridos e outros até abandonados, novos hábitos e costumes também.

O contato com outro indivíduo será ainda mais valorizado do que nunca. E as relações construídas ou fortalecidas durante a pandemia vão ter um aspecto especial na vida das pessoas, ainda mais que descobrimos que não podemos ser só no mundo e nossa relação com o meio não será mais a mesma. Na verdade, após refletir muito durante essa divagação, a única certeza que podemos ter daqui pra frente é que nada será como antes.