Ainda temos um mundo a ganhar?
Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.
Por Danilo Chaves Nakamura¹
Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos. CAMUS, A. A Peste
Em Era dos Extremos, o historiador Eric Hobsbawm narra o período histórico que vai da eclosão da Primeira Guerra Mundial ao colapso da União Soviética. Nas palavras dele: “Não foi o fim da humanidade, embora houvesse momentos, no curso dos 31 anos de conflito mundial, (…) em que o fim de considerável proporção da raça humana não pareceu distante”². Ao longo da segunda metade do Breve Século XX, a Guerra Fria entre EUA e URSS criou a percepção de que algo poderia dar errado política e tecnicamente, gerando um confronto nuclear permanente entre as potências. “Gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento, e devastar a humanidade”³. De acordo com o alemão Gunther Anders, desde Hiroshima e Nagasaki, a humanidade passou por uma metamorfose metafísica em que a espera da nova catástrofe nuclear teria cancelado a possibilidade de projetar um horizonte de expectativa, viveríamos assim um tempo do fim em que a “ausência de futuro já começou”4.
A ameaça nuclear não desapareceu com o encerramento da Guerra Fria. A onipotência humana de poder destruir o mundo e a impotência de ser dizimado a qualquer momento ainda são problemas reais. Em poucas palavras, desde 6 de agosto de 1945, não há mais como ignorar que as relações entre os indivíduos acontecem num contexto em que as armas atômicas estão presentes e, portanto, podem ser acionadas. Não por acaso, cientistas vinculados ao Boletim de Cientistas Atômicos da Universidade de Chicago criaram o Relógio do Apocalipse, um símbolo que desde 1947 alerta a humanidade sobre a vulnerabilidade do mundo diante dos cenários catastróficos5. De acordo com a movimentação dos países em busca de armamentos, do acirramento das rivalidades geopolíticas ou de acidentes como Chernobyl e Fukushima, o relógio é adiantado e ficamos mais próximo do fim. No entanto, essa “ausência de futuro que já chegou” torna-se ainda mais complexa quando pensamos nos alarmes disparados pela mudança climática e pela emergência de novas patologias capazes de se transformarem em pandemias globais.
Embora menos espetaculares que uma explosão nuclear, esses problemas redimensionam o tempo do fim, pois a crise ambiental e a emergência de novas doenças interligam as atividades humanas com as vidas de outros seres vivos (não-humanos) e, obviamente, com os processos biofísicos do planeta. Nesse sentido, se juntarmos a ideia de que chegaremos num momento crítico do colapso ambiental, ou seja, num ponto de passagem para um outro ponto de equilíbrio da natureza (que inviabilizaria a sobrevivência de sociedades inteiras devido a crises alimentares, escassez hídrica, ondas de calor extremo e inundações de territórios costeiros)6, com a emergência de epidemias progressivamente mais frequentes em razão das interações cada vez mais constantes dos seres humanos com a vida selvagem, podemos imaginar um outro fim. Um fim que não significa necessariamente um eclipse total da humanidade enquanto espécie. O tempo do fim nesse cenário seria a vida humana perante o fim da abundância e da diversidade da natureza. Uma sobrevivência diante da perda do “domínio” da natureza pelo homem (na relação homem e não-homem, isso significa inverter o raciocínio para perceber que somos o maior alvo do mundo para os vírus, ou seja, 7,8 bilhões de indivíduos espalhados, mas interconectados por todo o planeta, um grande ecossistema para ser colonizado pelos vírus)7. Mas voltando, para o ponto de vista antropocêntrico, isso significaria viver um “fim sem fim”, um tempo de espera da próxima catástrofe ou, para pensarmos junto com o antropólogo Christos Lynteris, um tempo em que os seres humanos sobreviveriam ocos de sua humanidade8.
A particularidade do fim do mundo em meio a situação nuclear é que ele perde todo seu caráter simbólico e ritualístico. O fim da humanidade se torna um gesto técnico preparado com lucidez. A mobilização da totalidade dos recursos tecnológicos e da capacidade humana coincide com o instante do fim dessa razão. Mas, por depender de um gesto humano, o risco sempre foi acompanhado por lutas antinucleares e pela esperança de que os governos pudessem desativar as usinas de energia e os arsenais de guerra. Já o colapso ambiental em curso parece estar inteiramente fora do nosso alcance anular, cabendo a nossa ação apenas mitigar sem se dar ao luxo de isolar fenômenos intimamente conectados na chamada economia da natureza: mudança climática, acidificação dos oceanos, depleção do ozônio estratosférico, uso de água doce, perda da biodiversidade etc. O futuro e os contornos de como seria a vida humana nesse cenário são completamente incertos, sendo imaginável apenas como produtos da ficção científica ou da pensamento escatológico-messiânico9. Por fim, diferente do colapso ambiental que atinge todas as vidas do planeta, a condição pós-pandemia nos coloca diante de um tempo do fim que atinge exclusivamente nós seres humanos. Recuar e esperar a próxima pandemia apostando em aparatos sanitários, tecnológicos e biopolíticos são as ações disponíveis diante do evento que reconfigura nosso lugar no mundo e nossa relação com as outras espécies¹°.
Viver o tempo do fim enquanto não vem o fim do mundo? O filósofo Paulo Arantes e o escritor indígena Ailton Krenak participaram de um interessante debate na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp 2020) sobre essa questão¹¹. Ailton Krenak, apresentando seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, afirmou que a chegada dos europeus na América foi o fim do mundo para os povos indígenas. Desde o século XVI, muitos “mundos” estão sendo eliminados pela escravidão, doenças, guerras, etnocídio, em suma, pelo processo de tentar incluir todas as formas de vida na lógica do povo da mercadoria. O tempo do fim, nesse sentido, é uma estrutura temporal que já perdura alguns séculos para os povos indígenas, mas que se tornou universal dado o movimento espoliador do capital:
O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da ex- tinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Como disse o pajé yanomami Davi Kopenawa, o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política — o poder político, a escolha política — compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida.
Parênteses histórico, para ligar o colonialismo do XVI com o neocolonialismo do XIX. Como bem destacou Rosa Luxemburgo, cada nova expansão capitalista foi acompanhada por uma luta do capital contra ligações sociais e econômicas de nativos. Esses são forçosamente espoliados dos seus meios de produção e força de trabalho¹³. Assim, o violento processo do século XVI tornou-se uma arma permanente para colonizar os continentes africano e asiático no período subsequente. Na passagem XIX para o XX, por exemplo, enquanto a Europa vivia la belle époque, o contexto de seca, fome e doenças atingia a Ásia colonizada pelas nações imperialistas. A peste bovina destruía as bases econômicas das sociedades tradicionais africanas. E, deste modo, no fin de siècle não-europeu, culturas desesperadas ajustaram seus calendários para o fim dos tempos no sentido apocalíptico do termo:
Muitos muçulmanos, por exemplo, acreditavam que a conclusão do décimo terceiro século do Corão (1785-1882) logo seria seguida pelo fim do mundo. Na Índia, esperava-se de forma generalizada que o mês de Kartik no ano de Sambat de 1956 (novembro de 1899) inauguraria uma era de desgraça e catástrofe para o país e o mundo. De modo semelhante, no norte da China, camponeses insurgentes abraçavam a previsão da seita do Loto Branco da chegada de uma calamidade mundial associada ao surgimento de um kalpa budista, que significava a eliminação da sociedade existente e a ascensão ao poder da Mãe Eterna. A maioria dos chineses também acreditava que ano 1900, por causa da fatídica conjunção de um oitavo mês intercalado com o ano gengzi do calendário lunar (o primeiro desde 1680), traria desordem social cataclísmica (o que, claro, aconteceu). Por todo o sertão, além disso, padres sebastianistas dissidentes e beatos leigos identificavam a nova república brasileira com o reinado do Anticristo e o advento do Juízo Final.14
Dito isso, vale perguntar: quando a espécie humana, um simples agente biológico, se transformou em uma força geológica capaz de iniciar uma nova época, ou seja, inaugurar o Antropoceno que se seguiu ao Holoceno? Nas grandes navegações? Na revolução industrial? No neocolonialismo? Ou na corrida para o espaço? Difícil responder, mas como formulou Bruno Latour: “A revolução já aconteceu… os eventos com que temos que lidar não estão no futuro, mas em grande parte no passado (…) o que quer que façamos, a ameaça permanecerá conosco por séculos, ou milênios”15.
Por conseguinte, os eventos históricos citados acima são apenas alguns dos marcos históricos que o pensamento ocidental interpretou a partir da ideia de progresso, ou seja, um processo de aceleração do tempo histórico que prometia superar todas as limitações do homem perante a natureza. Quando conflitos cada vez mais amplos passaram a demonstrar que essa filosofia da história era apenas uma ideologia, uma descrição otimista do movimento cego e automático da valorização do valor, desapareceu qualquer referência crível em relação à ideia de progresso do capitalismo. A teoria crítica percebeu que esse processo, em termos de projeção de futuro, nada mais era do que uma crença, um mito capaz de justificar as maiores barbaridades em nome de uma promessa sempre adiada de que o tempo agia em nosso favor. E, deste modo, reconhecer que a “locomotiva” do progresso capitalista deveria ser freada (e não acelerada) transformou-se na formulação ocidental para adiar o fim do mundo16. A tradição socialista (e suas vertentes), ainda que numa relação ambígua com o conceito de progresso (interpreto aqui o esforço de composição de Paulo Arantes no debate com Ailton Krenak) foi a ideia do homem branco – da classe trabalhadora – para “não deixar o céu cair”17.
Sair das generalizações é importante porque quando entram em cena as forças sociais que buscam adiar o fim do mundo, evidencia-se as experiencias de sujeitos que buscam preservar formas de vida, ou ainda, que resistem entrar na lógica do “povo da mercadoria”. Também revelam as lutas dos trabalhadores que buscam superar as formas de exploração que criaram a ruptura metabólica entre o homem e a natureza18. Dados mostram, a título de exemplo, que 10% da população mundial espalhada pelo mundo emite quase metade dos gases poluentes na atmosfera. E os 50% da população que menos emite correspondem a 10% das emissões. Um milionário americano consome cerca de 318 toneladas de CO2, contra uma média mundial de 6,2 toneladas19. Nesse sentido, a apropriação da riqueza – gerada pela economia baseada nos combustíveis fósseis – por uma minoritária elite financeira, assim como os problemas sofridos por uma massa crescente de miseráveis, que vivem “nos guetos e lixões geopolíticos do sistema mundo”20, revelam que essa nova época geológica que recebe “nosso nome”, não é a época da humanidade, mas sim da hegemonia do capital21.
Aqueles que mandam no mundo – as principais economias industriais, as instituições financeiras e organizações do comércio global – sabem que entramos nesse processo irreversível de degradação da relação homem/natureza22. As elites “esclarecidas” promovem conferências, criam protocolos, estabelecem metas e transformam em créditos especulativos o direito, agora reduzido, de explorar a natureza. A apropriação lucrativa, até então, foi privada, mas as consequências devem ser divididas entre todos os indivíduos do globo. Uma outra parte dessa elite – “menos esclarecida” – também entendem perfeitamente que vivemos uma situação de emergência e que será preciso pagar caro diante da “revolta da natureza”. No entanto, formulam de forma diferente: “vai ser preciso pagar caro, mas são os outros que vão pagar, e não nós”23. É dessa situação que deriva os fechamentos de fronteiras, a proliferação dos campos de refugiados, as políticas de desregulamentação ambiental, a destruição dos direitos sociais e a expropriação de povos originários. Os supostos obscurantistas, negacionistas, apenas concluíram que diante da escassez não precisam fingir a partilha dos recursos com o resto do mundo24.
A três minutos do fim do mundo, de acordo com o relógio do apocalipse, parece que não temos nada muito diferente do que foi gestado desde o disparo do cronômetro do continuum infernal da acumulação de capital. Mais do que um sistema socioeconômico estável, o capitalismo revela-se como uma forma de vida marcada por crises sucessivas e, em contrapartida, pela criação de mecanismos para gerir essas crises. Compramos tempo – inflação, política social, endividamento do estado, endividamento privado e financeirização – para que não entrarmos num estado de total anomia social25. Marx comparava as crises com as epidemias, dado a forma como ela contagiava toda a sociedade. Para ele as crises aparecem como “epidemias, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desabam sobre a sociedade e subitamente somos reconduzidos a um estado de barbárie”26. No entanto, até então, o capitalismo encontrou mecanismos de comprar tempo e administrar essa queda rumo a barbárie. Hoje, a confluência de crises (ambiental, sanitária, econômica e de gestão das crises) nos demonstra que superar o capitalismo é literalmente ter um mundo a ganhar27. A pergunta que fica é: Ainda há tempo?
A pandemia que vem
Desde o fim da Guerra Fria, podemos mapear uma crescente preocupação com o surgimento de novas patologias. O conceito de “doenças emergentes” foi criado em 1989, em Washington, numa reunião organizada pela Fogarty Foundation, National Institute of Allergy and Infectious Diseases e Rockefeller Foundation. Depois do aparecimento da AIDS nos anos 80, especialistas buscaram discutir três questões centrais: As pandemias podem ser evitadas? Que outros microrganismos podem produzir situações alarmantes? Que meios devem ser utilizados para prevenir novas pandemias?28 Em 1991, diante dos surtos de dengue, doença de lyme, febre de lassa e do retorno da cólera, os Estados Unidos buscaram criar critérios mais precisos para identificar síndromes ou agentes infecciosos cuja incidência aumentava progressivamente. Em 1992, Richard Preston escreveu um artigo intitulado Crisis in the Hot Zone. Nesse artigo ele descreveu o desenvolvimento do aparato científico e militar dos EUA para estudar a emergência de novas doenças e advertiu que o surgimento de um patógeno poderia aniquilar a humanidade29.
Embora a emergência de patologias nos leve para um debate sobre segurança sanitária, a questão militar não foi excluída do diagnóstico que o governo norte-americano fazia do novo contexto histórico. De acordo com o historiador Patrick Zylberman, em Tempêtes Microbiennes, desde o desaparecimento do inimigo comunista, os Estados Unidos se preparam para ameaças que podem ser manipuladas por países que não tem acesso a tecnologias militares de ponta, ou seja, paras ataques bioterroristas capazes de espalhar em sua população, por exemplo, varíola ou antraz30. No artigo de Richard Preston mencionado acima já tínhamos a descrição das funções médico-militares do United States Army Medical Research Institute of Infectious Diseases (USAMRIID). Nas palavras do autor: “o Instituto realiza pesquisas sobre como proteger os soldados contra armas biológicas e doenças infecciosas naturais. É especializado em vacinas, terapia medicamentosa e biocontenção. Ou seja, o Instituto conhece métodos para deter um vírus monstruoso antes que ele inicie uma cadeia explosiva de transmissão letal na raça humana”31. Em 1995, o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio fez com que o presidente americano Bill Clinton redobrasse suas atenções diante de um possível ataque bioterrorista na América.
Nesse sentido, diferente do paradigma sanitário do século XIX, em que o objetivo principal era prevenir que uma doença se torna-se epidêmica na população do território nacional, o objetivo passou a ser a preparação para limitar os efeitos do ataque biológico (natural ou provocado). Baseando-se em obras de ficção – acreditava o governo norte-americano – seria possível simular epidemias de pestes ou ataques de armas biológicas; ensaiar como o poder público transmitiria as informações para a população; projetar como o vírus se propagaria e como o sistema de saúde agiria para atender as vítimas.
A ficção se tornou um problema real em outubro de 2001, depois que cartas com antraz contaminaram gabinetes de alguns senadores americanos. De acordo com Susan Willis, uma paranoia tomou conta dos cidadãos, mas esses não perceberam de que, para o governo, o medo de ataques bioterroristas não tinha relação com o 11 de setembro, mas sim com a Guerra do Golfo, de 1991. Na época, fotos aéreas revelaram que centenas de animais mortos nos campos iraquianos eram possivelmente vítimas de testes de armas biológicas feitas pelas forças armadas de Saddam Hussein. Em resposta a operação “tempestade do deserto” em que a força aérea americana atacou as bases iraquianas, temia-se uma “tempestade microbiana”. Assim, diante do pânico popular e da demora dos órgãos governamentais em emitir recomendações preventivas:
O medo se espalhou e se ramificou, penetrando os recessos mais mundanos dos Estados Unidos. As agências de correio das faculdades começaram a mandar para a quarentena os pacotes de biscoitos caseiros que recebiam; milhares de correspondências foram lacradas e armazenadas para testes futuros; diversos voos comerciais foram redirecionados e forçados a pousar quando qualquer tipo de pó branco (na maioria das vezes adoçantes) era encontrado nas bandejas. Substâncias triviais da vida cotidiana – pó para pudim de baunilha, açúcar, farinha, talco – conseguiram fechar escolas e fábricas, reter corres- pondências e emperrar o ritmo usual dos negócios.³²
Mas enquanto os Estados Unidos associavam os ataques terroristas com as epidemias, na Europa, afirma Patrick Zylberman, os governos buscavam não misturar os problemas, eles estavam mais preocupados com a segurança alimentar, principalmente depois que a síndrome da vaca louca atingiu rebanhos na França, Espanha, Inglaterra e Alemanha. Ao longo da epidemia, mais de 4 milhões de animais foram sacrificados. Essa ação se tornou necessária depois que ficou com- provado que a síndrome também poderia contaminar seres humanos que ingerissem a carne de animais contaminados33. Assim, as instituições vinculadas ao serviço sanitário buscavam alertar os consumidores e remover produtos contaminados da circulação. Em 2005, depois do atentado terrorista no metrô de Madri, os procedimentos da segurança sanitária modificaram a situação, a Comissão Europeia precisou formular medidas antiterroristas e, assim sendo, incluíram as armas biológicas como uma questão emergencial34.
Em 2003, o aparecimento do coronavírus SARS-CoV causador de uma síndrome respiratória aguda grave (SRAG) fez com que as organizações de saúde de todo o mundo voltassem mais suas atenções para as epidemias naturais do que para possíveis problemas sanitários causados por ações criminosas35. Na época, Michael Leavitt secretário de saúde dos EUA afirmou que ao se preparar para a pandemia de gripe, o país estaria preparado para responder as outras emergências.
No entanto, foi Michael Osterholm, diretor do Center for Infectious Disease Research and Policy (CIDRAP), quem fez o prognóstico mais completo dos problemas que uma pandemia poderia causar no mundo. Para ele, o vírus H5N1, causador da gripe aviária poderia causar problemas parecidos com os estragos causados pela gripe espanhola de 1918. Ele lembrou que a última epidemia mais séria na China aconteceu em 1968, quando o país tinha uma população humana de 790 milhões e cerca de 12,3 milhões de aves capoeiras. Em 2005, o país era habitado por 1,3 bilhões de pessoas e tinha confinado mais de 13 bilhões de aves. Ou seja, o risco de contaminação por transferência zoonótica (transmissão de patógenos de animais para humanos) era potencialmente maior36.
Osterholm procurou destacar como a preparação até então era insuficiente. No ano em que escreveu o artigo, as gripes sazonais já matavam cerca de 1,5 milhões de pessoas por ano e, para reduzir esse número, existia um esforço das organizações internacionais e nacionais para entregar doses de vacina para a população mais vulnerável, ou seja, cerca de 5% da população. A Organização Mundial da Saúde (OMS), alertava o epidemiologista, precisava criar procedimentos claros de como comunicar a população, organizar a cooperação entre os países e centralizar a distribuição de antivirais e vacinas. E, o mais complicado, a OMS precisava estabelecer parâmetros éticos, indicando as prioridades de atendimento diante de situações de superlotação dos hospitais. As nações mais ricas deveriam criar um plano conjunto para desenvolver vacinas, pois a imunização é uma questão global diante de uma economia globalizada. Os países de todos os continentes deveriam preparar estruturas de hospitais provisórios para serem montados em ginásios, centros de convenções e escolas. Deveriam criar planos para estruturar os serviços funerários, abastecer os hospitais com equipamentos de proteção individual e criar programas para que voluntários leigos pudessem trabalhar nos hospitais. Esse conjunto de ações deveria ser planejado para um prazo de 12 a 36 meses37.
Em termos socioeconômicos, adiantava Osterholm, a pandemia inevitavelmente desencadeará uma reação que mudará o mundo da noite para o dia. A economia global sofrerá uma paragem abrupta, quebrando cadeias produtivas, estancando os fluxos de trocas de mercadorias e fechando fabricas e lojas comerciais. Os governos nacionais irão fechar as fronteiras aéreas e terrestres, impedindo a circulação de homens de negócio, trabalhadores e turistas. Os estrangeiros serão vistos como forasteiros indesejados, pois carregarão consigo o estigma de portador do vírus. Os serviços de saúde, se nada for feito, se mostrará insuficientes e a falta de remédio e de respiradores para aliviar as síndromes respiratórias se mostrarão tão insuficientes como em 1918. Diante desse cenário descrito de forma antecipada, acreditava o autor, “embora não possamos conter a ocorrência da próxima pandemia, podemos ser capazes de mudar o seu curso se começarmos a agir agora”38.
Tendo em vista prognósticos como esse, podemos dizer que os contornos dos piores cenários possíveis diante de uma pandemia foram anunciados há muito tempo. Do ponto de vista da precaução e da prevenção, sabemos que os investimentos públicos e privados para tentar criar uma vacina universal foram feitos, embora ela ainda não exista39. O desenvolvimento da criopolítica40 como forma de rastrear vírus nos habitats selvagens, catalogar os mais diversos microrganismos existentes na natureza e observar os padrões de circulação dos patógenos é uma realidade dentro das instituições científicas. E, por fim, os abates em massa de animais, para eliminar doenças que possam ser transmitidas para seres humanos através do consumo de carne, acontecem recorrentemente.
Em termos de preparação, um caminho possível seria criar investimentos maciços na saúde pública, ou seja, equipar os hospitais com respiradores e aparelhos necessários, ampliar o número de leitos por habitantes e estocar equipamentos de proteção individual.
Nesse caminho o fortalecimento dos sistemas públicos é essencial para buscar uma universalização dos serviços. Ampliar os programas de saúde da família também seria essencial para mapear as comorbidades preexistentes na população e para garantir o atendimento domiciliar antes de lotar os prontos socorros. Por fim, seria necessário fortalecer políticas de seguridade social para que os indivíduos pudessem escapar do dilema “morte possível pela doença ou morte certa pela fome”41 uma vez que o controle da velocidade da contaminação, força a paralisação das atividades econômicas e, nesse sentido, coloca a renda dos trabalhadores em risco. Outro caminho, seria o de fortalecer os mecanismos de controle com o desenvolvimento de tecnologias de vigilância. Fortalecer os aparatos policiais para conter a população. Aprovar decretos leis de emergência ou ativar mecanismos constitucionais para responder a desastres e situações de calamidades42. Em suma, atuar social e economicamente apenas em caráter de urgência.
“Isso é pior que Pearl Harbor. Isso é pior que o World Trade Center”43 O discurso do presidente americano Donald Trump buscando criar a ideia de que o surgimento do vírus Sars-CoV 2 foi um ataque surpresa, apaga toda a história recente de preparação para os piores cenários. Ele ajuda os poderes estabelecidos a colocar o segundo caminho de preparação como a única forma possível para conter a pandemia e seus efeitos na sociedade. Nesse sentido, podemos dizer que essa solução também já estava traçada, pelo menos desde que a gestão dos estados de bem-estar social passou a ser substituída pela gestão dos estados competição. Uma racionalidade que há tempos vem transformando os direitos sociais em mercados cativos de cidadãos para o setor privado.
Embora, desde 2005, tenha havido uma maior atenção dos governos para a emergência de um vírus natural e não criminoso, globalmente, relata a OMS, a lógica dos últimos anos foi a de diminuição da “proteção financeira” para as despesas de saúde da população44. Sem contar os inúmeros ataques ao mundo do trabalho e aos serviços de proteção social45. Em contrapartida, de acordo com o International Institute for Strategic Studies (IISS), os gastos com aparatos militares crescem anualmente no mundo. Enfim, buscando atacar o novo “inimigo invisível”, a normalidade que o atual estado de emergência global promete entregar é, ao que tudo indica, um cenário de guerra global contra uma população potencialmente contagiosa46.
Um monstro arromba nossa porta
Christos Lynteris descreve, através de uma pesquisa que conecta ciência, política e cultura de massas, como a explicação sobre a emergência dos novos vírus tende a transformar os “processos históricos” em “eventos isolados”. Um procedimento recorrente, por exemplo, nas produções cinematográficas. Analisando narrativas ficcionais como Epidemia, 12 macacos, Eu sou a lenda, Contágio ou Guerra Mundial Z, ele destaca como os protagonistas para salvarem a humanidade de riscos existenciais, buscam investigar as causas das epidemias. Nesses filmes, afirma o antropólogo, podemos observar como a complexidade sindêmica das doenças é reduzida a uma cadeia linear e esquemática de causalidade. Cabe aos heróis, geralmente um epidemiologista, reestabelecer a humanidade que, no cenário pandêmico, posiciona-se à beira da extinção. Até que uma solução seja encontrada, é preciso que a humanidade aceite a autolimitação como uma necessidade biopolítica, ou melhor, como única forma de sobrevivência.
Essa transformação de um processo em um evento aparece na realidade quando somos bombardeados por matérias jornalísticas que buscam isolar a possível origem da transmissão do vírus para seres humanos de um contexto social mais amplo. De acordo com um artigo veiculado na imprensa americana: “os mercados húmidos foram reportados como tendo sido o local de nascimento da SARS [em 2003] e, agora, a ciência afirma que são a possível origem da COVID-19, doença que começou supostamente com o consumo de pangolins ou morcegos mantidos juntamente com outros animais selvagens em condições insalubres nos mercados húmidos de Wuhan”47. Explicação que também é reforçada nos meios acadêmicos. Para o filósofo Alan Badiou o novo coronavírus surgiu nos mercados chineses “conhecidos pela sua perigosa sujeira e por sua tendência irreprimível para venda ao ar livre de todos os tipos de animais vivos, empilhados uns sobre os outros. Daí o fato de, num determinado momento, o vírus se encontrar presente, sob a forma animal herdada dos morcegos, num meio popular muito denso, em condições rudimentares de higiene”48. A China, conclui o filósofo, seria o local de confluência de uma razão arcaica (mercados tradicionais e mal conservados) e uma razão moderna (mobilidade rápida e incessante de mercadorias que interconecta o mundo inteiro) abriu a possibilidade para que uma epidemia se transformasse numa pandemia rapidamente. Para o jornalista e o filósofo, tudo se passa como se, caso os povos orientais tivessem se modernizado e levado o processo civilizador ocidental até as últimas consequências, ou seja, mudado seus hábitos e substituído os mercados medievais por grandes redes de supermercados, a crises sanitária causada pelo novo coronavírus fosse um risco impensável.
No entanto, para entender a crise sanitária precisamos, como afirma a sinóloga Rosana Pinheiro Machado, superar as visões dualistas que geram estereótipos e preconceitos. De um lado “o país exótico de pessoas estranhas que comem barata” de outro “o hipermoderno que constrói um prédio em poucos dias”49. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que nem todos os mercados de húmidos chineses vendem animais vivos, portanto não devemos confundir o comércio de animais selvagens com os mercados de húmidos. Esses mercados são assim chamados, porque na China, assim como em outros países, distingue-se os produtos entre “secos” (para produtos não perecíveis) e “molhados” (para produtos perecíveis). Os mercados húmidos também são chamados assim porque seus pisos estão constantemente molhados devido ao derretimento dos gelos que conservam peixes e frutos do mar e a água usada para limpar os galpões.
Em segundo lugar, de acordo com a etnografia comparada de Lui Sze-ki, consumidores de diversas faixas etárias e classes sociais oscilam na escolha do local de compra (mercados húmidos ou redes de supermercados) de acordo com a disponibilidade, acessibilidade, preço e experiência familiar e pessoal50. Alguns trabalhadores fazem suas escolhas por praticidade, ou seja, fazem suas compras no mercado de húmidos ou na rede de supermercados de acordo com a proximidade em relação ao trabalho, a residência ou se um deles está no caminho dos deslocamentos diários. Mais do que uma contraposição, os mercados húmidos e os supermercados estão articulados na cena do varejo. E, nesse sentido, é importante pontuar a popularidade dos mercados húmidos. O Xinfadi, mercado de Pequim, por exemplo, movimenta mais de 18,6 bilhões de dólares por ano e passam por lá mais de 15.000 por dia, afinal os preços são em média 30% mais barato que nos supermercados51. Muitos desses mercados são pontos turísticos, dado a variedade de produtos encontrados e a vivência que eles oferecem, atraindo personalidades como o chef James Oliver52 e a chanceler alemã Angela Merkel53.
Alguns mercados húmidos vendem animais selvagens, como é o caso do Huanan Seafood Wholesale Market, mercado localizado em Wuhan, na província de Hubei. Além de peixes e frutos do mar, o pesquisador Peter J. Li afirma que mais de 75 espécies da fauna asiática eram vendidas até início de janeiro de 202054. Desde de que o novo coronavírus apareceu, o governo chinês proibiu o comércio de animais selvagens, deixando os criadores e comerciantes desses produtos passando necessidades materiais e fome, pois esses trabalhadores viram suas rendas desaparecerem. Para completar, o mercado de Wuhan faz parte de algo muito maior do que a manutenção de “costumes arcaicos” do povo chinês, de acordo com a Chinese Academy of Engineering, o comércio de animais selvagens é um amplo negócio que envolve alimentação, medicamentos, animais de estimação e tapeçaria. Essa indústria movimenta cerca de 74 bilhões de dólares por ano e emprega mais de 14 milhões de pessoas55. Incentivados pelo governo, muitos camponeses passaram a criar animais em cativeiro e vender nesses mercados para complementar a renda, pois apesar do propagandeado crescimento da classe média e melhora no nível de vida nos grandes centros urbanos, mais de 600 milhões de chineses vivem com menos de 5 dólares por dia.
Soma-se a esse amplo comércio de animais selvagens a questão do agronegócio. O crescimento econômico chinês das últimas décadas aumentou a demanda por animais criados no modelo da pecuária ocidental. “Entre 1980 e 2015, o consumo de carne na China cresceu sete vezes (…). Com cerca de 18% da população mundial, a China era em 2018 responsável por 28% do consumo de carne no planeta”56. Assim, além de ter se tornada uma das maiores produtoras de proteína animal do mundo, a China também passou a pressionar os mercados exportadores a produzirem mais para concorrerem num mercado ainda em expansão. “Segundo um relatório de 2017 do Rabobank, intitulado China’s Animal Protein Outlook to 2020: Growth in Demand, Supply and Trade, a demanda adicional por carne a cada ano na China será de cerca de um milhão de toneladas”57.
Mike Davis em The Monster at Our Door, afirma que a gripe aviária era uma doença endêmica em aves selvagens, mas que as aves domésticas criadas em larga escala poderiam servir como uma ponte para que o vírus alcançasse os seres humanos. Em 2005, o risco apontado pela OMS de que a gripe aviária poderia se tornar uma pandemia58, em realidade, argumenta Davis, é uma contradição estrutural da criação de animais organizado no modelo industrial. Ou seja, as principais mudanças globais que favoreceram a evolução de novos subtipos de gripe foram: a revolução da pecuária dos anos 1980-90, a revolução industrial na China e a emergência das “super-cidades” do Terceiro Mundo59. Mais recentemente, essa hipótese foi amplamente desenvolvida pelo biólogo evolucionista, Robert Wallace. No livro Big Farms Make Big Flu, ele explica que os novos vírus causadores de gripes em seres humanos são gestados na relação entre economia e epidemiologia. O salto de um agente patogênico de uma espécie para outra é condicionado por questões como proximidade e regularidade do contato, que engendram o ambiente em que a doença se modifica. Os vírus que circulam nas florestas tornam-se virulentos, principalmente, depois que entram em contato com uma população de animais domesticados. O confinamento de milhares de animais facilita a transmissão e diminui a resposta imunológica60.
Para completar o panorama histórico que tem transformado a China no principal “hotspot” de infecções zoonóticas61, é importante destacar que o desflorestamento do território contribui para o aquecimento global e para destruição dos habitats naturais dos animais silvestres, favorecendo a migração destes para lugares cada vez mais próximos das fazendas, das granjas e dos espaços urbanos. Hoje a China tem apenas 14% do seu território coberto por florestas. Em média, mais de 5 mil km2 de florestas são desmatados por ano. A procura chinesa por madeira atinge também outras florestas do mundo. A floresta tropical do Congo e do Camarões na África Central, ou ainda, as florestas das ilhas da Indonésia estão todas fortemente comprometidas para suprir a crescente procura de madeira por parte da indústria de mobiliário que cresce rapidamente na China62.
Dito tudo isso, vale lembrar que essa dinâmica “chinesa” está conectada com as economias de todo o mundo. Enquanto a China, “fábrica do mundo”, sustenta a produção de mercadorias – inundando o mundo com produtos baratos para manter o consumo das classes médias e trabalhadoras empobrecidas – ela depende, por sua vez, de aportes sempre crescentes de matérias-primas, comodities e recursos naturais, seja para sustentar as mudanças dos hábitos alimentares de sua população, seja para incrementar os estoques de insumos e fontes de energia para suas industrias e infraestrutura. Assim sendo, no Brasil, o desmatamento que substitui as coberturas vegetais naturais por pastos ou por alguma mercadoria/comodities – na tentativa de se fixar no lugar que sobrou dentro do mercado mundial – faz com que o país também se candidate como um dos potenciais gestantes das próximas pandemias e acidentes naturais extremos. Enfim, para além dos fluxos de mercadorias, o novo coronavírus chegou para completar o complexo metabolismo do capitalismo contemporâneo63.
Luta de classes no mundo das pandemias
Em História da Guerra do Peloponeso, Tucídides descreve como a peste ateniense (febre tifoide, provavelmente) atingiu a população grega. De acordo com ele “em parte alguma se tinha lembrança de nada comparável como calamidade ou em termos de destruição de vidas”64. Os médicos eram incapazes de enfrentar a doença e morriam antes devido a exposição a ela. Outras doenças foram negligenciadas enquanto a peste durou. Uma doença “que atingiu a todos sem distinção, mesmo àqueles cercados de todos os cuidados médicos”65. Nas ruas, cadáveres se amontoavam e “pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes em sua ânsia por água”66. “Os costumes até então observados em relação aos funerais passaram a ser ignorados na confusão reinante, e cada um enterrava os seus mortos como podia”67. Como bem destacou o historiador Patrick Zylberman, Tucídides demonstra que diante da crise sanitária instalou-se em Atenas uma crise político-moral. Nas palavras do historiador grego:
De um modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia total. Ousava-se com maior naturalidade e abertamente aquilo que antes só se fazia ocultamente, vendo-se quão rapidamente mudava a sorte, tanto a dos homens ricos subitamente mortos quanto a daqueles que antes nada tinham e num momento se tornavam donos dos bens alheios. Todos resolveram gozar o mais depressa possível todos os prazeres que a existência ainda pudesse proporcionar, e assim satisfaziam os seus caprichos, vendo que suas vidas e riquezas eram efêmeras. Ninguém queria lutar pelo que antes considerava hon- roso, pois todos duvidavam de que viveriam o bastante para obtê-lo; (…) o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham ninguém. 68
A epidemia da peste negra (peste bubônica) no século XIV também foi mais do que uma crise sanitária que chegou a Europa após cruzar a rota da seda. A mortandade das pessoas desestruturou os compromissos entre senhores e servos e os movimentos religiosos milenaristas colocaram em prática suas utopias apocalípticas virando o mundo de “ponta cabeças”. De acordo com as descrições de Giovanni Boccaccio em Decameron, “Em meio a tanta aflição e a tanta miséria da nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, tanto divinas, como humanas, caíra e dissolvera-se. Os ministros e os executores das leis, assim como os outros homens, estavam todos mortos, ou enfermos, ou tinham perdido seus familiares, de modo que não podiam desempenhar função alguma. Por decorrência desse estado, era lícito, a todos, fazer o que bem lhe agradasse”69. Ou em explicações mais recentemente, Silvia Federici escreveu: “as pessoas já não se preocupavam em trabalhar ou em acatar as regulações sexuais, e tentavam ao máximo se divertir, festejando o quanto podiam, sem pensar no futuro”70.
O fato é que as crises sanitárias desses períodos eram acompanhadas de uma grande crise demográfica. E no caso da peste negra, por exemplo, a “destruição do mundo cheio”71 trouxe de forma imediata essa quebra das hierarquias e como consequência mais importante uma crise do trabalho, pois ao dizimar a população, os trabalhadores se tornaram escassos, “seu custo aumentou de forma crítica e a determinação das pessoas em romper os laços do domínio feudal foi fortalecida. (…) em nenhum desses casos os rebeldes se conformaram apenas em exigir algumas restrições do regime feudal, (…) O objetivo era colocar fim ao poder dos senhores. Durante a Revolta Camponesa de 1381, os camponeses ingleses declararam que ‘a velha lei deve ser abolida’”72.
Nas epidemias da modernidade capitalista não tivemos crises e movimentos capazes de instalar uma total anarquia. De acordo com Zylberman, com o desenvolvimento das políticas de controle, da medicina e das políticas de segurança, as sociedades integradas ao processo civilizador capitalista aprenderam gradualmente a enfrentar a tríade apocalíptica que assolava as sociedades antigas: fome, guerra e peste. E com isso, acabaram por mudar sua visão de mundo e a buscar o retorno à normalidade. Nas palavras do historiador: “nossos predecessores tremiam ao imaginar os horrores de uma calamidade biológica, mas nós preferimos acreditar no triunfo da rotina”73. Não por acaso, a questão que mais escutamos desde o início da pandemia do novo coronavírus é: “quando voltaremos a normalidade?”. E, buscando responder a esse anseio social e projetar uma perspectiva de novas rotinas, os especialistas especulam sobre como que será o “novo normal” (no trabalho, na escola, nos espaços de lazer, nos transportes e tudo mais que podemos encaixar na classificação de atividades cotidianas).
No entanto, há uma série de manifestações sociais que revelam que as crises sanitárias modernas também são crises políticas. Comportamentos preconceituosos e violentos são explicitados. Assim como durante a crise da peste negra, por exemplo, cresceu o preconceito contra os judeus, na epidemia de cólera do século XIX, na Europa, os irlandeses passaram a ser ofendidos e culpabilizados pelo contágio e, mais tarde, durante a epidemia de AIDS nos anos 80, cresceu o preconceito contra homossexuais e drogados74. Ataques a médicos e hospitais também foram recorrentes ao longo das epidemias de cólera em 1832, da gripe espanhola em 1918, de SARS em 2003 e de ebola em 201975. Do ponto de vista do mundo do trabalho, o absenteísmo gerou problemas de falta de mão de obra para retomada da economia no início do XX. Em julho de 1918, quando a primeira onda da gripe espanhola começou a ceder, um terço da mão de obra das minas de carvão da Inglaterra se negou a voltar ao trabalho. No serviço público inglês, o abandono do trabalho chegou a 50%. E, por fim, em termos de ação coletiva, revoltas explodem contra o autoritarismo do governo. Em 2003, por exemplo, após demora em alertar a população, o governo chinês buscou transformar escolas em espaços para deixar a população em quarentena. Em Tianjin, essas escolas foram saqueadas e em Xangai mais de mil aldeões se levantaram contra a detenção de contaminados76.
Não por acaso, diante da recessão após o estouro da crise financeira de 2008, a OMS alertava que, caso os países ricos não pagassem pelas vacinas e antivirais dos países pobres, a pandemia de gripe suína poderia resultar em anarquia. De acordo com o relatório, se o vírus se instalar nas nações mais pobres, milhões poderão morrer e as economias dos países frágeis poderão ser destruídas77. E, diante da resistência dos países ricos em liberar auxílios financeiros, afirmava um funcionário da OMS: “O dinheiro é uma gota de água, não uma inundação. Vai ser uma luta. Se não tivermos cuidado, o vírus poderá destruir uma economia ou uma democracia em expansão”78. Preocupações como essas explicitadas pela OMS, demonstram que embora existam preocupações médico-científicas nas ações antipandêmicas dos governos e organizações internacionais, essas ações são formas de salvaguardar a ordem pública e o estado, talvez, até mais do que para salvaguardar a saúde da população79.
Para Andreas Malm – pensando a crise aberta pelo novo coronavírus – já que os estados capitalistas foram capazes de criar políticas restritivas de circulação para bilhões de pessoas e paralisar o funcionamento de diversos setores da economia (uma cessação temporária das atividades que mais emitem gás carbono na atmosfera), a crise atual é uma oportunidade para que os movimentos sociais e partidos políticos exijam dos estados uma nova ordem mundial, o Green New Deal. Este é o momento, afirma Andreas Malm, em que podemos dizer aos governos: “Se foi possível intervir para nos proteger do vírus, pode intervir para nos proteger também da crise climática, cujas implicações são muito piores”. A aposta do pesquisador é que movimentos ambientalistas que apostam na ação direta como Fridays for Future, Extinction Rebellion, Ende Gelände possam aproveitar esse momento e atuar junto com a classe trabalhadora que precisa derrotar governos e partidos autoritários de extrema direita que emergem como grandes defensores do capital fóssil e de políticas xenófobas contra os trabalhadores imigrantes.
Embora Andreas Malm formule a ideia de comunismo ecológico de guerra tendo como ponto de partida uma visão bastante distorcida do que foi o Comunismo de Guerra (1918-1921) durante a Revolução Russa, “um exemplo de uma rápida transformação da produção e da organização da economia, impulsionada pelo Estado, face à oposição maciça das classes dominantes”80, podemos aproveitar nas formulações dele a intuição de que a atual crise coloca a urgência de vincularmos as lutas ecológicas com as lutas políticas e sociais.
Até agora, vimos que a população que estava refreada pelas políticas de restrição começou, aos poucos, a reagir. Inicialmente, por questões imediatas, ou seja, para sobreviver bairros periféricos em diversos lugares do mundo se levantaram contra a fome, por melhores condições sanitárias e por acesso a políticas distributivas emergenciais. Em seguida, um grande levante explicitou as questões estruturais do capitalismo racializado e desigual, ou melhor, a luta dos americanos contra o assassinato de George Floyd se espalhou pelo mundo, colocando em evidência uma série de outros assassinatos e violência contra a população negra. Mais recentemente, entregadores de aplicativos passaram a denunciar a superexploração do capitalismo de plataforma, reconhecido pelas longas jornadas de trabalho e baixíssimas remunerações para os trabalhadores.
Por fim, manifestações contra o comportamento, os discursos e as decisões políticas daqueles que ocupam os cargos de poder demonstram que a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus já é uma crise política. Além disso, há uma série de lutas que estavam em curso antes da pandemia que ainda terão desdobramentos, a do Chile em especial, pois lá a população estava a pôr em cheque as políticas de austeridade que, diga-se de passagem, deverão se tornar regra depois dos gastos emergências para administrar os problemas causados pela pandemia em todo o mundo.
Enfim, enquanto estávamos vivendo na chamada “normalidade” já convivíamos com a propagação de sintomas mórbidos da sociedade capitalista: destruição crescente de ecossistemas, surtos de violências raciais e de gênero, destruição da solidariedade de classes, sentimento de ódio contra indivíduos de outra nacionalidade etc.81. Agora, imerso numa pandemia, precisamos agir no sentido de mostrar que as raízes dessas enfermidades sociais são oriundas das múltiplas e profundas contradições do capitalismo. Assim, sem a transformação profunda da ordem social, como afirmamos lá no início, seguiremos rumo ao fim, um destino tão incerto e obscuro quanto o “novo normal” prometido como a realidade pós-pandêmica.
Notas
¹ Historiador, professor da rede pública de ensino e cooperado de uma escola cooperativa na cidade de São Paulo. E-mail: danchaves.nakamura@gmail.com
² Eric. Hobsbawm, Era dos Extremos – O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 30.
³ Ibidem. 224.
4 Gunther Anders, Le temps de la fin. Paris: L’Herne, 2007.
5 Bulletin of the Atomic Scientists. Disponível em: <https://thebulletin.org/>
6 Luiz Marques, Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora Unicamp, 2018.
7 Dan Drollette Jr., How it feels to predict a pandemic: Interview with David Quammen, author of Spillover. Disponível em <https://thebulletin.org/>
8 Christos Lynteris, Human Extinction and the Pandemic Imaginary. New York: Routledge, 2020.
9 Déborah Danowski e Eduardo Viveiro de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie/ ISA e Desterro, 2004.
10 Christos Lynteris, op. cit., p. 120.
11 Paulo Arantes e Ailton Krenak, Perspectivas anticoloniais – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Disponível em < https://youtu.be/2tjX2VodDYs>
12 Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019, p. 23.
13 Rosa Luxemburgo, Acumulação de capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
14 Mike Davis, Holocaustos coloniais – Clima fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002, pp.149-150.
15 Bruno Latour, apud. D. Danowski e E. V. de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins.
16 Ver: Walter Benjamin, Sobre o conceito de história. In: Michel Löwy, Walter Benjamin: aviso de incên- dio: uma leitura das teses sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.
17 Ver também: Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu – palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
18 John Bellamy Foster, Uma catástrofe no século XXI, a menos que a humanidade mude subitamente. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/>
19 A proposta de Piketty contra o aquecimento global. Disponível em < https://outraspalavras.net/>
20 D. Danowski e E. V. de Castro, op. cit., p. 12.
21 Andreas Malm, O mito do Antropoceno. In: Jacobin Brasil, 28 ago. 2019.
22 Noam Chomsky, Quem manda no mundo? São Paulo: Planeta, 2017.
23 Bruno Latour. A Europa como refúgio. In: A Grande Regressão. São Paulo: Estação Liberdade, 2019, p. 140.
24 Ibidem.
25 Wolfgang Streeck, Tempo comprado – a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.
26 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 45.
27 Ibidem
28 Jean-François Saluzzo et al. Les vírus émergents. Paris: IRD, 2004
29 R. Preston, Crisis in the Hot Zone – Lessons from an outbreak of Ebola. In: The New Yorker, 19 oct., 1992.
30 P. Zylberman, Tempêtes Microbiennes – Le monde transatlantique et les scénarios épidémiques (1998-2006). Stras- bourg: EHESP, 2011.
31 R. Preston, op. cit.
32 Susan Willis, Evidências do real. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 31-32.
33 Doença da vaca louca: o que se sabe sobre o caso registrado na Escócia. In: BBC, 18 out. 2018.
34Frédéric Keck, Scénarios de catastrophes sanitaires. Disponível em: <https://laviedesidees.fr/>
35 P. Zylberman, op. cit.
36 Michael Osterholm, A weapon the world needs. In: Nature, 25 may, 2005.
37 Ibidem.
38 Ibidem.
39 Netflix, Pandemia: Como prevenir um surto (documentário), jan. 2020.
40 Frédérick Keck, Nós entramos no mundo das pandemias. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/>
41 Vladimir Safatle, A revolta sem corpo. Estúdio fluxo. Disponível em <https://youtu.be/-BwaL0FFzgk>
42 Ver: Gilberto Bercovici, Covid-19, o direito econômico e o complexo industrial da saúde. In: Walfrido Warde e Rafael Valim (coord.), As consequências da covid-19 no direito brasileiro. São Paulo: Contracor- rente, 2020.
43 Trump says coronavirus worse ‘attack’ than Pearl Harbor. In: BBC News, 7 may, 2020.
44 Organização Mundial da Saúde, Primary Health Care on the Road to Universal Health Coverage – 20 Global Monitoring Report, 2019. 45 Ken Loach, Spirit of
45, (documentário), 2013.
46 Philippe Bourrinet, Capitalisme, guerres e pandémie: La crise mortalle de 2020? Paris: Éditions moto proprio, 2020.
47 Jeremy Hurewitz, China and its exotic-animal wet markets are incubators of human diseases like coro- navirus. In: USA Today, 8 apr. 2020.
48 Alain Badiou, Sobre a situação epidêmica. In: Mike Davis et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos, 2020, p. 38.
49 Rosana Pinheiro Machado, Coronavírus expõe a nossa desinformação sobre a China, o maior fenômeno econômico dos nossos tempos. Disponível em https://theintercept.com/
50 Lui Sze-ki, An ethnographic comparison of wet markets and supermarkets in Hong Kong. In: The Hong Kong Anthropologist, vol. 2, 2008.
51 Jane Cai. Wet markets in China: more than a shopping venue, they’re a way of life. In: South China Morning Post, 16 jun. 2020.
52 Susan Jung, Jamie Oliver’s Hong Kong walkabout – in pictures. In: South China Morning Post, 25 mar. 2015.
53 Mimi Lau, Angela Merkel begins visit to China with trip to Sichuan wet market. In: South China Morning Post, 6 jul. 2014.
54 Peter J. Li. First Sars, now the Wuhan coronavirus. Here’s why China should ban its wildlife trade forever. In: South China Morning Post, 29 de jan. 2020.
55 Han Huang e Adolfo Arranz, China’s wildwife trade. In: South China Morning Post, 4 mar, 2020.
56 Luiz Marques, Serão as próximas pandemias gestadas na Amazônia? Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/>
57 Ibidem.
58 WHO guidance on public health measures in countries experiencing their first outbreaks of H5N1 avian influenza. Disponível em: < https://www.who.int/>
59 Mike. Davis, The Monster at Our Door: The Global Threat of Avian Flu. New York/London: The New Press, 2005, p. 194.
60 Robert. Wallace, Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Infectious Disease, Agribusiness, and the Nature of Science. New York: Monthly Review Press, 2016, p. 54
61 Ver também: Juanjuan Zhang et al. Patterns of human social contact and contact with animals in Shan- ghai, China. In: Nature, 22 out. 2019.
62 Desforestation and desertification in China. Disponível em < http://factsanddetails.com/>
63 Camila Moreno, O Brasil made in China – para pensar as reconfigurações do capitalismo contemporâ- neo. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2015.
64 Tucídides, História da Guerra do Peloponeso. Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais e Imprensa Oficial, 2001, p. 115
65 Ibidem, p. 117
66 Ibidem, p. 118
67 Ibidem.
68 Ibidem.
69 G. Boccaccio. Decameron. Rio de Janeiro: Ediouro, 1990.
70 S. Federici, Calibã e a bruxa – mulheres corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017, p. 96.
71 Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos camponeses franceses – da peste negra à Revolução. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009.
72 S. Federici, Calibã e a bruxa, p. 97.
73 Patrick Zylberman, Beyond apocalyptical epidemics: Out of paradox. In: Bernardino Fantini, Epidémies et sociétés, passé, présent et future. Pisa: Edizioni ETS, 2017, p. 40.
74 Patrick Zylberman, Crises sanitaires, crises politiques. In: Les tribunes de la santé, 2012.
75 Centro de Ebola de Médicos Sem Fronteiras é desativado após ataque violento. Disponível em: <https://www.msf.org.br/>
76 P. Zylberman, Crises sanitaires, crises politiques.
77 Rajeev Syal, Swine flu ‘could kill millions unless rich nations give £900m’. In The Observer, 20 set. 2009.
78 Ibidem.
79 P. Zylberman, Crises sanitaires, crises politiques.
80 Andreas Malm, To Halt Climate Change, We Need an Ecological Leninism. In: Jacobin, 15 jun. 2020.
81 Ver: Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020.