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Capitalismo ContemporâneoObservatório da Financeirização

Apocalypse Now: estamos diante da maior crise da história do capitalismo?

Observatório da Financeirização

Cenas do filme Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979), cuja presumida liberdade traz a barbárie.

Por Nicolás Menassé e Olívia Carolino*

Num clássico monólogo de Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979), o Coronel Kurtz diz: “Você precisa ter homens que sejam morais e, ao mesmo tempo, capazes de utilizar seus instintos primordiais para matar sem sentir, sem paixão, sem julgamento, sem julgamento. Porque é o julgamento que nos derrota”. A questão, de ares cinematográficos, vem sendo colocada por diversas lideranças ao opor o cuidado da população ao cuidado da economia. Isto desmascara que para o capitalismo o importante é a acumulação, e não atender às necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras.

A atual crise do padrão de acumulação do capital se articula com outras crises, entre elas a crise ecológica e a crise sanitária impulsionada pelo coronavírus. Mesmo sem a letalidade de outras pandemias mundiais como a peste bubônica, responsável por dizimar cerca de ⅓ da população europeia no século XIV, e a Influenza, que há um século matou cerca de 50 milhões de pessoas, a atual pandemia tem deflagrado a impossibilidade da manutenção da organização econômica mundial desenvolvida nas últimas décadas. Estamos vivenciando uma crise que tende a mudar de forma estrutural o capitalismo contemporâneo.

Independentemente das origens da mutação que resultou no COVID-19, é importante entender que sua propagação global não é natural. Seu desenvolvimento, assim como as políticas de contenção, a procura pela cura e seus efeitos na cultura, na sociabilidade e na economia são resultado da ação social.

Assim, a crise deflagrada pelo novo coronavírus é uma crise do modo de produção capitalista, que privatiza o excedente, socializa as perdas, desarticula os mecanismos de solidariedade e do cuidado da população e precifica sua morte segundo o cálculo econômico.

De acordo com o estudo COVID-19 Response Team, da Universidade Britânica Imperial College, mesmo com a estratégia de supressão da pandemia baseada em quarentenas até que uma vacina seja desenvolvida e produzida em larga escala, a capacidade hospitalar seria superada em 8 vezes, e o número de mortos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos chegaria, respectivamente, a 250 mil e 1,1 milhão, em um cenário otimista. Este contexto leva em conta que a política de supressão não seria relaxada até que uma vacina fosse desenvolvida e produzida em escala suficiente para a imunização da população, o que poderia tardar 18 meses ou mais.

Esta situação alarmante se agrava ainda mais quando pensamos na especificidade dos países periféricos e dependentes. Supondo que os governos destas regiões tenham a decisão política de adotar uma estratégia de supressão rígida como proposto pelo estudo, surgem diversas dúvidas. Como levá-la adiante num contexto em que milhões de pessoas moram em condições precárias ou nulas de acesso à água potável e à rede de esgoto? Como promover a quarentena nos bolsões populacionais precarizados? Como tratar e salvar vidas de populações infectadas contando com sistemas de saúde privatizados, precarizados e desfinanciados nas periferias do capitalismo, se mesmo os sistemas de saúde dos ditos países desenvolvidos não estão dando conta de tal tarefa? Como garantir o isolamento dos trabalhadores informais sem renda fixa? O que farão os trabalhadores formais se as empresas pararem de pagar seus salários ou forem a falência?

A polarização está dada: salvar empresas ou o povo. Uma vez colocada a questão da sobrevivência da população e a necessidade de se tomar medidas urgentes guiadas pela decisão política de priorizar a vida sobre qualquer outra, há de se pensar nos impactos desta crise no processo econômico.

O ponto que destacamos é, portanto, que se a crise sanitária e social não for remediada, o processo de crise econômica se acelerará e tenderemos a estar perante a maior crise da história do capitalismo.

Em crises de padrão de acumulação de capital precedentes, como no final do século XIX, o capitalismo transitou de sua fase concorrencial para a monopolista. Em 1929, ao coincidir a crise financeira com crise de super produção, o capitalismo também se reinventou transitando para o modelo de organização fordista. Esses são processos estruturais de mudança na organização da produção, mudanças no sistema financeiro e no papel dos Estados nacionais, em que a disputa da hegemonia mundial esteve colocada.

Como aponta Nouriel Roubini, ex-funcionário do Fundo Monetário Internacional (FMI) – que não pode ser acusado de conspirador marxista-, nas maiores crises econômicas mundiais (1929 e 2008) os mercados de ações caíram, os de créditos congelaram, empresas foram à falência, o desemprego aumentou e o Produto Interno Bruto (PIB) global caiu significativamente. Mas nos dois períodos anteriores foram necessários alguns anos para que estes resultados se desenvolvessem, enquanto na atual crise este cenário surgiu em questão de semanas.

Tendo em vista a velocidade da caída dos indicadores econômicos e os motivos desse movimento, é de se esperar uma queda ainda mais abrupta. A velocidade e particularidade dos acontecimentos serão mais um obstáculo para que o capitalismo se reinvente. Ou seja, o capitalismo está diante de seus próprios limites de reprodução e recuperação das taxas de acumulação.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, estima que para cada mês de quarentena o PIB dos países deste grupo diminuirá em 2%. Assim, Alemanha, França, Grã-Bretanha, Itália e Estados Unidos devem ter uma redução dos seus respetivos PIB em torno de 25% e 30%. Ciente da profundidade da crise, o secretário geral da OCDE conclamou um “Plano Marshall Global” para compensar os efeitos da crise. O Plano Marshall de 1948 a 1951 foi um programa de recuperação da Europa pós II Guerra Mundial, no montante de 14 bilhões de dólares na época. Mas na atual proposta, quem financiaria este plano? Com qual moeda? Para quais países? Quais blocos de países articulariam estas medidas?

Como os governos estão enfrentando a crise?

Para enfrentar esta situação, governos de todas as correntes ideológicas, inclusive os mais comprometidos com os preceitos neoliberais, têm adotado medidas fora do mainstream econômico para “estimular” a economia.

Uma delas refere-se à política monetária de redução das taxas de juros, na procura de aumentar a liquidez e estimular o consumo e o investimento. Para evitar um colapso os Bancos Centrais do mundo inteiro estavam reduzindo permanentemente as taxas de juros, provendo dinheiro barato, o que agrava a crise ao invés de superá-la. O capital está fluindo para títulos de rendimento negativo, o que mostra que o mercado de capitais é pessimista em relação ao crescimento econômico futuro. O Federal Reserve Bank, dos EUA, já vinha aplicando suas taxas de juros muito reduzidas, o que dá muito pouco espaço para diminuí-las ainda mais, caso haja outra crise financeira ou mesmo uma desaceleração mais profunda. A utilização desta política monetária não foi apenas insuficiente para reativar o crescimento como também implica custos significativos, incluindo o aumento dos riscos de estabilidade financeira. As baixas taxas de juros permitem que os mercados financeiros tomem empréstimos em uma situação cujos riscos estão abaixo do preço. Como resultado, tem-se os ativos supervalorizados e a tendência de ampliar a dívida global.

Os Estados Unidos, por exemplo, têm reduzido pela metade a já pequena taxa de juros. Inglaterra, Noruega, Canadá, Índia e a maior parte dos países do mundo tem cortado suas taxas de juros no mesmo sentido. Desta forma, a política monetária global também demonstra a gravidade da situação, uma vez que, durante a atual crise, tomou em semanas medidas que, durante a crise de 2008, demoraram meses para serem decididas.

Os Estados Unidos têm a particularidade de o dólar ser a moeda fiduciária mundial. Assim, no meio da crise, a procura pelo dólar estadunidense tem aumentado significativamente e modificado as diferentes taxas de câmbio. Para reverter esta falta de liquidez, o Federal Reserve, além de cortar a taxa de juros, tem aberto linhas de swap de até 60 bilhões de dólares, a taxas baixíssimas, com os Bancos Centrais da Austrália, Brasil, Coreia do Sul, México, entre outros, assim como mantido os acordos com o Banco Central Europeu e os bancos centrais de Japão, Inglaterra e Suíça. Ou seja, estão intentando inundar o mundo de dólares.

Até o início do ano, as análises chamavam atenção para a relação da crise com a austeridade global. A resposta dada pelos governos para recuperar a economia da crise financeira se baseava na primazia da política monetária em detrimento da política fiscal. Diante da pandemia, o abandono às receitas de austeridade é quase unanimidade. Assim, para enfrentar a crise econômica, os Estados nacionais também têm utilizado políticas fiscais fortemente expansivas.

França, Noruega, Suécia, Dinamarca, Grã-Bretanha, Hong Kong, Nova Zelândia, Argentina, Brasil são apenas alguns exemplos de países que têm adotado algum tipo de medida fiscal para financiar, por meio da emissão, os ingressos e rendas de trabalhadores e de empresas. O maior programa fiscal neste sentido é o programa de estímulo dos Estados Unidos. Este programa é destinado às famílias, aos desempregados, aos hospitais, aos estados com dificuldades financeiras e a empréstimos a empresas pelo valor de 2,2 trilhões de dólares – o maior programa de estímulo da história.

Décadas de hegemonia das políticas neoliberais reduziram o papel do Estado na promoção do desenvolvimento, devastaram direitos e aprofundaram as desigualdades sociais. Assim, esta política fiscal tem dupla função: por um lado, procura reativar uma economia paralisada que aponta para uma depressão; por outro, desde o ponto de vista político, serve para se antecipar à situação de miséria, fome e barbárie para qual necessariamente os trabalhadores serão empurrados e, diante da qual, formas de controle social autoritárias, repressivas e o aumento da coerção policial são ineficientes. Nesse momento, a esquerda apoia e deve pressionar os governos por políticas de renda básica universal, mas, a direita e os setores mais conservadores já perceberam a situação e estão se antecipando a uma situação de caos social e acelerado empobrecimento. Trilhões de dólares são distribuídos pelos Bancos Centrais mundo afora para financiar suas políticas. As máquinas de fazer dinheiro estão rodando a todo o vapor para o financiamento das políticas fiscais.

A metáfora cunhada por Milton Friedman, e repetida pelos economistas mais influentes do mainstream e os grandes meios de comunicação para descrever estas políticas de emissão monetária, é “dinheiro de helicóptero”. Assim, o esquadrão de helicópteros de dinheiro atravessa o céu para prestar socorro da mesma forma que o esquadrão de helicópteros do exército dos EUA atravessa o céu do Vietnã para levar a liberdade capitalista no filme Apocalypse Now.

Estas políticas fiscais e monetárias expansionistas são manifestações do fim do neoliberalismo como guia das políticas econômicas. “Tempos extraordinários requerem medidas extraordinárias”, afirmou Christine Lagarde, ex-presidenta do FMI e ex-promotora dos planos de austeridade e atual presidenta do Banco Central Europeu7. Mas, como Paul Krugman afirma, “as pessoas continuam chamando isso de lei de ‘estímulo’, mas não é exatamente isso. Em vez disso, é fundamentalmente um alívio no desastre”.

Evidentemente, é imprescindível procurar mecanismos para financiar os gastos decorrentes do enfrentamento da crise, principalmente os que garantem a sobrevivência dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas a profundidade da crise coloca em dúvida a eficácia destas medidas para a retomada do processo de acumulação. Como Barry Eichengreen afirma, “lutar contra os efeitos econômicos do coronavírus requererá mais do que cortes nas taxas de juros (…) essas respostas de manual terão apenas efeitos limitados quando o problema não é falta de liquidez, mas perturbações na cadeia de suprimentos e medo do contágio”. Aqui entra em discussão um dos problemas centrais para a economia mundial.

Reativação da economia

A luta, a consciência, a empatia e a solidariedade são decisivos nesse processo. As medidas de política econômica que os Estados adotarem serão fundamentais para o enfrentamento da pandemia e para a organização do capitalismo que se inaugurará.

Num contexto em que os contágios por COVID-19 sejam sazonais, ou seja, que sua frequência se dê por ciclos, existe a possibilidade de que o isolamento seja aliviado quando diminuírem os contágios e retomados quando aumentarem. Desta forma, os processos produtivos poderão sofrer interrupções constantes e o capital fixo seja subutilizado até que uma vacina seja desenvolvida, levando à depreciação do mesmo. Tomando-se como exemplo o estudo do JP Morgan, que aponta que metade das empresas estadunidenses tem apenas 27 dias de reservas de caixa para operar em condições normais de funcionamento econômico, é de se esperar falências massivas de empresas e o consequente aumento do desemprego e da pobreza.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no pior cenário, espera-se uma perda de 25 milhões de empregos em todo o mundo. Assim como afirma Roubini, é errado diagnosticar a crise como de “demanda agregada deficiente ou como resultado de um choque de oferta comum”, porque “é provável que outra temporada de vírus comece com novas mutações; intervenções terapêuticas com as quais muitos estão contando podem se mostrar menos eficazes do que se esperava”.

Desarticulação das cadeias globais

Queremos destacar que, com isso, o COVID-19 também está desarticulando as cadeias globais de suprimentos. Isto ocorre em todos os setores, mas as cadeias globais devem ser as que mais demorarão a se recuperar pela desfasagem das paralisações.

Tomemos como exemplo a cadeia de suprimentos do iPhone para fazer referência à publicação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social: A vida do iPhone, publicado ano passado.

Este estudo desenvolvido pelo nosso pesquisador Ahmet Tonak traça os contornos do processo de produção contemporâneo que tem como o resultado o iPhone, da Apple, ao olhar para a cadeia produtiva dessa mercadoria e simular o cálculo da taxa de exploração na produção de dispositivos eletrônicos sofisticados.

Os componentes do iPhone, que são montados principalmente na China, são produzidos na Alemanha, Estados Unidos, Coreia do Sul, China, Japão, Taiwan, França, Itália, Holanda e Singapura.

Considerando que dada a organização Just in Time as empresas fornecedoras de componentes não possuem grandes estoques, e que a produção de bens finais não essenciais, como neste caso, estão sendo paralisadas por medidas como o isolamento social, fica claro que a paralisação da produção em qualquer um destes países irá interromper a cadeia de suprimento global como um todo.

Mas a situação se agrava se considerarmos a desfasagem temporal. No exemplo da Cadeia de Suprimento do iPhone, o primeiro caso confirmado de COVID-19 foi na China no dia 8 de dezembro. Os primeiros casos confirmados fora da China foram no Japão e na Coreia do Sul no dia 20 de janeiro, e os últimos na Alemanha e na Holanda no dia 26 de fevereiro, ou seja, mais de um mês de diferença para os casos fora da China. Isto significa que, ainda que hipoteticamente haja a supressão do coronavírus em um desses países, a produção poderia ser retomada apenas para os componentes que são produzidos localmente. Num outro país da cadeia produtiva, as medidas que paralisam a produção podem estar apenas começando, levando a um bloqueio da produção do bem final por tempo maior que o ciclo do vírus. No caso do vírus ser sazonal estas paralisações podem se repetir no tempo. Esta lógica pode se extrapolar para todas as cadeias globais de produção. Por tanto, a quebra das Cadeias de Suprimento e sua reorganização pode levar meses. Quanto mais tempo leva esta quebra nas cadeias, mais será a desarticulação. Isto colocará a necessidade de procurar alternativas e reorganizar as cadeias a nível global.

Um novo mundo está surgindo

Não voltaremos à vida “normal” porque o “normal” era o problema. O agravamento e a aceleração da crise econômica deflagrada pela pandemia do COVID-19 faz com que essa tenda a ser a maior crise do capitalismo contemporâneo por sua abrangência em termos de território e de população, assim como pela gravidade caso se confirmem os principais indicadores e estimativas de sua evolução.

Os Estados nacionais estão sendo forçados a abandonar as políticas de austeridade fiscal e monetária do neoliberalismo. Isto por si marca um ponto de inflexão na economia política dos últimos 40 anos. Além do mais, o contexto da pandemia e a necessidade do isolamento limita a eficácia das políticas fiscais e monetárias na reversão da recessão para a qual a economia global se dirigia.

A sociabilidade das pessoas se altera pela vivência de meses em quarentena e gestão social pelo medo. Por um lado, desenvolvem-se novas formas de solidariedade, cuidados, autocuidados, maneiras de se relacionar, divisão de tarefas e organização social. Por outro, se desenvolve o pânico, a violência, a experiência da escassez de mercadorias/serviços, o desemprego, o aumento da miséria, o convívio com a iminência do adoecimento e da possibilidade da morte. Uma sociedade que vinha sufocada e exaurida pela exploração, agora disputa respiradores artificiais que são insuficientes para os casos graves de falta de ar.

A crise econômica tende a se transformar em uma crise da mundialização do capital a medida que o bloqueio das Cadeias de Suprimentos se alongue no tempo. Quanto mais a paralisação se prolongar, mais profunda será a desarticulação da produção global e a necessidade de procurar alternativas. Isto levará à interrupção da acumulação de capital e à reorganização produtiva em escala mundial. A lógica do capital fará com que a falência de empresas promova à centralização de capital, da mesma forma que nas crises anteriores. Mesmo no caso em que medidas mais drásticas sejam tomadas, a crise tende a aumentar ainda mais a concentração econômica e as desigualdades sociais e regionais.

Em Apocalypse Now, a presumida liberdade traz a barbárie. A solução aos problemas do capitalismo não se resolverão com mais capitalismo. Se nada será como antes, caberá a nós não deixar de imaginar e lutar por um mundo sem exploração, em que estaremos prontos para enfrentar pandemias e fazer com que a crítica ao neoliberalismo venha acompanhada de uma crítica radical ao capitalismo.

*Nicolás Menassé é Mestre pelo Programa em Economia Politica da PUC-SP e e Olívia Carolino é pesquisadora Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Doutora em Ciência Politica pela PUC SP.