Brasil | Como enfrentar uma das maiores concentrações de terras do mundo
Por Luiz Felipe Albuquerque e Matheus Gringo
No mês em que se celebra a luta pela reforma agrária em todo mundo, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou no início de abril seu 27° dossiê: Reforma Agrária Popular e a luta pela terra no Brasil.
É notório o fato do Brasil ser um dos países com maior concentração de terras do mundo e onde estão os maiores latifúndios. Concentração e improdutividade possuem raízes históricas que remontam ao início da invasão portuguesa no início do século XVI e é responsável por estabelecer as raízes da desigualdade social que perduram até os dias atuais.
O último Censo Agropecuário do país, realizado em 2017, demonstra que os anos passam e essa estrutura não apenas permanece, mas se agrava, com os índices de concentração cada vez maiores. Cerca de apenas 1% dos proprietários de terra controlam quase 50% da área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com áreas menores a 10 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol) representam metade das propriedades rurais, mas controlam apenas 2% da área total.
Esse retrato da realidade ilustra o tamanho da expropriação realizada pelo capitalismo ao longo de séculos, com consequências políticas, econômicas, sociais e ambientais na formação histórica do país. Afinal, as relações com a terra são fundamentais para o desenvolvimento de um país. Quando se fala de terra se fala de pessoas, de controle dos bens naturais, de desenvolvimento econômico, social e cultural. A terra é a expressão de uma sociedade, e esses números refletem o grau da desigualdade e da injustiça desenvolvida por mais de cinco séculos de história do Brasil.
No entanto, o histórico de espoliação da terra no Brasil produziu diversos processos de resistência popular ao longo dos anos. Todas as formas de luta organizada e radical, a começar pelos indígenas e pela população negra escravizada, viraram sinônimos de massacre e genocídio, para posteriormente serem apagadas dos livros de história. Cada uma dessas lutas foi desenvolvida de acordo com os elementos objetivos e subjetivos de cada período histórico pelos mais diversos atores sociais do campo.
Nesse sentido, as transformações das relações capitalistas no campo brasileiro nas últimas décadas, com a consolidação do modelo do agronegócio, fez com que a natureza da luta pela terra também se adequasse aos novos tempos.
Se até a década de 1990 o enfrentamento se dava entre camponeses pobres sem-terra contra um latifúndio arcaico, improdutivo e violento, a partir do final da década de 90 e início dos anos 2000 esse caráter se altera com a hegemonia do agronegócio, que apesar da aparência de moderno também reproduz formas violentas de expropriação dos territórios.
E é justamente este o debate realizado pelo novo dossiê do mês de abril do Tricontinental. No final da década de 1970, com o ressurgimento dos movimentos populares do campo, sobretudo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a luta pela terra baseava-se, praticamente, na reestruturação fundiária e a consequente democratização do acesso à terra, no que conceitualmente é chamado de reforma agrária clássica.
Porém, ao longo da década de 1990, o espaço agrário brasileiro passou por grandes transformações estruturais. O antigo latifundiário, dono de grandes extensões de terra, aprofundou sua aliança com outras frações da classe burguesa: às empresas transnacionais do setor agrícola, ao capital financeiro representado na figura dos bancos e aos meios de comunicação de massa. Esse novo modelo de produção agrícola ficou conhecido como agronegócio.
As consequências deste modelo destrutivo ao meio ambiente passam a ser paulatinamente sentida na maior parte da população que vive nos grandes centros urbanos. Contaminação e escassez de água, envenenamento de alimentos por agrotóxicos, mudanças climáticas e os inchaços nas grandes cidades são apenas alguns exemplos da intrínseca relação entre as questões agrária e urbana na atualidade.
Desta forma, a partir dos desafios que a realidade concreta impunha para os movimentos populares, o conceito de reforma agrária clássica passou a ser substituído pelo conceito da reforma agrária popular, que agora traz em sua dimensão não apenas a necessidade de terra para quem nela trabalha, mas a necessidade de produzir alimentos saudáveis a toda população, propondo uma nova matriz de produção e organização social no campo, adquirindo o caráter popular da reforma agrária.
O acesso à terra deixa de ser interesse apenas das populações que vivem no campo e se transforma numa necessidade do conjunto da sociedade. Nesse sentido, a centralidade da luta pela terra passa a ser em torno da disputa pelo modelo agrícola. De um lado, há o agronegócio com suas enormes extensões de terra baseadas na monocultura e que exigem a utilização de enormes quantidades de agrotóxicos para a sua produção. Do outro, a agroecologia com a diversidade da produção de alimentos saudáveis em harmonia com a natureza, e que inclui a totalidade de um sistema de produção, como as relações humanas, de trabalho, saúde, cultura, lazer, educação.
Portanto, semear a reforma agrária popular no atual tempo histórico representa modificar a forma hegemônica de se produzir alimentos. Já são muitas as iniciativas neste sentido, por meio das agroflorestas, cultivo de sementes crioulas, processamento e agroindústria, feiras de comercialização direta, pesquisa científica, formação técnica e uso de novas tecnologias. Afinal, a reforma agrária popular não se baseia apenas em uma reivindicação justa, mas em um projeto de poder, soberano e popular.