Brumadinho | Não foi acidente, foi crime
O lucro em meio à lama
No lodo se esparrama.
A vergonha não chorada
Exposta e privatizada
Pelos donos da civilização
Que teimam em continuar e ter razão.
É a lama da ordem e do progresso
Que espelha o retrocesso.
Ademar Bogo
No Brasil, a ruptura da Barragem da mina Córrego do Feijão no município de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, a a 60 km da capital do estado de Minas Gerais, revive o drama dos impactos humanos e ambientais da exploração mineral do capitalismo financeirizado.
Desde 25 de janeiro corre o mundo cenas de devastação e violência do pesado rejeito de minério em forma de lama tóxica, cobrindo tudo em seu caminho em poucos minutos desde que a barragem Mina do Feijão rompeu e despejou 12 milhões de metros cúbicos de lama na bacia do Rio Paraopeba. O município de Brumadinho, com quase 40 mil habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), tem como principais atividades econômicas a exploração de minério, a agricultura, a pecuária e o turismo, já que a região é rica em patrimônios naturais, culturais e históricos, como o Parque do Rola Moça, o Instituto Inhotim e o Quilombo do Sapé.
O receio do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é que a lama, como no crime de Mariana, chegue ao oceano, passando por um dos principais rios do país. A lama em curso segue pela bacia do Paraopeba, um dos principais afluentes do Rio São Francisco que corta o estado de Minas Gerais e mais cinco estados da região Nordeste. Caso nada seja feito, 521 municípios brasileiros poderão ser afetados.
Já são dezenas de mortes confirmadas, estima-se 300 desaparecidos e esse número ainda pode dobrar. O rompimento da barragem ocorreu na hora do almoço na troca de turnos, com o refeitório localizado abaixo da barragem. A Mina do Córrego do Feijão funcionava em três turnos de trabalho, operando 24 horas por dia, sete dias por semana.
Trabalhadores da empresa Vale e terceirizados estavam alimentando-se, recuperando suas energias para continuar vendendo sua força de trabalho à mineradora quando foram surpreendidos. As coisas se invertem, quem ingere alimento para restaurar-se é, repentinamente, engolido pelo apetite insaciável da Vale, em lama que desce, destruindo tudo.
O desastre de grandes proporções causa ainda mais indignação pela impunidade, a mesma empresa, a mineradora Vale, maior produtora mundial de minério de ferro, está envolvida no crime de Mariana, com o rompimento da Barragem do Fundão em 2015, no mesmo estado de Minas Gerais, que levou ao vazamento de mais de 43 milhões de metros cúbicos de rejeitos, causando 19 mortes e a contaminação do Rio doce até o oceano e Bacarena no estado do Pará em fevereiro de 2018.
1. Vale é empresa símbolo do que significa as privatizações no Brasil
Não se compreende o desenvolvimento capitalista num país de herança colonial como o Brasil sem compreender o papel da atividade mineradora. O chamado “Ciclo do Ouro” no final do século XVII veio a crescer na segunda década do século XVIII, quando a mineração passou a ser a atividade econômica mais importante da colônia substituindo o chamado Ciclo do Açúcar. E, por sua vez, é substituído no século XIX pela exportação do café em sintonia com as transformações do desenvolvimento do capitalismo mundial e suas respectivas demandas para realização de capital.
A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) data de 1942, está, portanto, relacionada ao desenvolvimento capitalista no Brasil no século XX, fazendo parte do projeto de desenvolvimento nacional do período. Na década de 1970 a empresa se consolidou como a maior exportadora de minério de ferro do mundo, posição que ocupa até hoje. Em 1995, no bojo do avanço do neoliberalismo no Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso incluiu a CVRD no Programa Nacional de Desestatização. Em 7 de maio de 1997, a empresa foi privatizada e comprada por um consórcio liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional(CSN), outra ex-empresa estatal, privatizada em 1993, que adquiriu 41,73% das ações ordinárias do governo federal por US$ 3,338 bilhões.
Em 2003, a Vale apresentou o maior lucro líquido de sua história: R$ 4,5 bilhões, recuperando em um ano o valor pago no leilão de privatização. No mesmo ano, também houve um salto na desnacionalização da empresa, já que 67% dos negócios com as ações da Vale foram realizados na Bolsa de Nova York, contra 33% realizados no Brasil. Em janeiro de 2003, o valor da empresa superava a barreira dos US$ 100 bilhões. Ou seja, em uma década se multiplicou por dez, demonstrando que o preço do leilão foi inferior e o mercado fez o ajuste ao valor real. O processo de privatização e desnacionalização da Vale é emblemático do projeto neoliberal no Brasil, enquanto a empresa era uma estatal não se tem notificação de tragédias como a provocada em Brumadinho, MG.
Quando a Vale foi privatizada nos anos 90 o preço do minério de ferro no mercado internacional era cotado na média 30 dólares a tonelada/seca. Na lógica do capitalismo financeirizado, o minério de ferro foi transformado em commodities minerais e a partir da década de 2000, a alta da demanda por commodities minerais conectada aos investimentos chineses em infraestrutura elevou vertiginosamente os preços. A mineração no Brasil passou por uma fase de rápida expansão, entre 2003-2013, as exportações minerais passaram de 5% para 14,5% da pauta exportadora.
Diante desse boom das commodities, várias reservas minerais se tornaram viáveis de exploração graças ao aumento dos preços e observa-se a ofensiva de expansão da atividade mineradora sobre diversos territórios que antes não se mostravam atrativos, de forma acelerada, ampliando a instalação de barragens sem os cuidados necessários previstos pelas leis vigentes.
Com a queda acentuada nos preços das commodities minerais a partir de 2011, assistimos o fim ao período de boom das commodities, com o excesso de oferta de alguns dos minerais; retração da demanda pela maioria dos minerais; perspectiva de preços baixos no médio prazo; endividamento das empresas; resultados operacionais e financeiros pressionados para o déficit, entre outros motivos. As mineradoras, para compensar a queda no excedente econômico decorrente da queda dos preços dos minérios, buscam ganhos em escala de produção repassando os prejuízos para trabalhadores, comunidade e meio ambiente, cortando os custos com segurança e monitoramento.
Para compreender os crimes da Vale no Brasil, há que levar em conta essa dimensão de aumento da exploração e ofensiva sobre os bens naturais acirrada pela crise mundial do capital na tentativa de retomar a taxa de lucro mundial por meio de atividades predatórias.
2. Brumadinho: uma tragédia anunciada
As barragens de rejeitos de minério de ferro são estruturas construídas para armazenar resíduos resultantes do beneficiamento, que é quando ocorre a separação do material rico, com valor econômico, do rejeito, que é o material sem demanda de mercado. A barragem da Mina Córrego do Feijão que se rompeu em Brumadinho usava o sistema “a montante”, que cresce por meio de camadas (geralmente na forma de degraus), chamado de alteamento (ou elevação), feitas com o próprio rejeito que resulta do beneficiamento do minério de ferro, uma das técnicas mais baratas para estocar os rejeitos do processo de mineração e menos segura. Com o aumento da produção de minério para compensar a queda do preço no mercado internacional, os degraus sobem um vetor de pressão maior do que foi projetado para sustentar.
A barragem, que foi construída em 1976, foi “desativada” por três anos, mas continha 13 milhões de metros cúbicos de lodo, resultado da atividade de mineração. A mina tem um complexo de treze barragens que produziu 26,3 milhões de toneladas de minério de ferro em 2017, ou quase 7% da produção da Vale, segundo dados da empresa.
A Agência Nacional de Mineração, responsável no Brasil pelo licenciamento e controle de parte das instalações, confirmou em comunicado que a Vale havia conseguido “um controle dessa barragem por uma entidade independente em setembro passado”. De acordo com esse diagnóstico, a barragem apresentou um “baixo risco de ruptura”, mas um “forte impacto” no meio ambiente em caso de acidente. No entanto, a “entidade independente” mencionada pela empresa é um escritório de design, muitas vezes trabalhando exclusivamente para a Vale, cuja independência é regularmente questionada pelos cientistas.
O peso econômico da gigante da mineração na região é outro fator decisivo na concessão de licenças. A Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais se reuniu em 11 de dezembro de 2018 para revisar uma nova licença de produção para este complexo de mineração. O relatório da reunião, divulgado pela imprensa brasileira, revela que a possibilidade de uma ruptura do muro de contenção foi evocada pelo chefe do Ibama, o órgão governamental que também ontrola as instalações de mineração, e pelo representante da sociedade civil, que foi o único a votar contra a emissão de uma nova licença.
Se tem evidências de que Vale sabia da instabilidade da barragem, teria planos de minerar a barragem e cometeu negligência e assumiu o risco.
Após o crime cometido em Brumadinho, a mineradora Vale anunciou a decisão de paralisar operações de exploração de minério e desativar dez barragens que usam o método de armazenamento de rejeitos similar ao da mina Córrego do Feijão.
3. A captura do Estado pela empresa
O que está acontecendo no Brasil e na América Latina é compreendido no contexto de crise mundial do capitalismo onde há a captura do Estado para atender novo ciclo de acumulação capitalista.
São 24 mil barragens no Brasil, estima-se que 40 em situação crítica. A Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) foi criada em 2010 no governo Lula. E até hoje por volta de 42% das barragens não têm qualquer tipo de regularização legal como autorização ou outorga colocando vidas em risco.
No dia 29 de janeiro foi expedido mandado de prisão a cinco engenheiros que têm responsabilidade civil responder pela vistoria da barragem, no entanto, não pode com isso ocultar a responsabilidade da empresa e do Estado.
Outra dimensão a ser destacada é que na ruptura de barragem de Brumadinho a Vale deve responder a processos de acidente de trabalho além da indenização as famílias atingidas e multas ambientais. A reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer prevê indenizações irrelevantes em caso de acidente ou óbito no trabalho.
Em novembro de 2015, a barragem de rejeito da Samarco, joint venture [empresa conjunta] da Vale S.A com a anglo-australiana BHP Billinton, rompeu na cidade de Mariana em Minas Gerais, matando 19 pessoas, destruindo um povoado inteiro, e afetando a milhares de moradores ribeirinhos do rio Doce, contaminando por centenas de quilômetros. Aquele rompimento foi criminoso porque os responsáveis contrataram mão de obra não especializada, construíram da forma mais barata sem tomar as precauções necessária e sabiam dos riscos iminentes.
Depois de 3 anos, nenhum responsável foi preso e apenas um dos 14 trabalhadores que despencaram junto com a barragem foi indenizado. Estes rompimentos são resultado do processo de trabalho e como tal devem ser abordados. Mas isso significaria corrigir o processo produtivo de centenas de barragens ao longo do Brasil podendo provocar perdas gigantescas. Por este motivo, a Vale se nega constantemente a dialogar com os trabalhadores demonstrando sua completa irresponsabilidade corporativa e sua insensibilidade com a vida das pessoas e com o meio ambiente. Os trabalhadores destas barragens, fiscais permanentes do processo de trabalho, vem denunciando esta situação, mas a resposta da empresa foi o não reconhecimento dos sindicatos como representantes, levando adiante práticas claramente antissindicais. Por este motivo a ICM, junto com a IndustriAll, entraram com uma queixa na OCDE contra a Samarco (Vale-BHP Billinton) para a promoção do diálogo social, mas foi vergonhosamente rejeitada.
Ou seja, é o Estado capturado pelos interesses do capital privado, contra os direitos do povo e os interesses da nação.
4. Flexibilização da fiscalização ambiental
As dimensões do impacto ambiental do crime cometido pela Vale ainda não são mensuráveis. De acordo com as previsões da Agência Nacional de Águas, o lodo carregado de resíduos de mineração que se espalharam pelo rio Paraopeba, a lama percorreu 46 km de sexta a domingo, segue na direção da Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo, em Pompeo a 310 km e pode atingir, a Bacia do Rio São Francisco, , à altura da hidrelétrica de Três Marias, num percurso total de 500 km de destruição, comprometendo a vida de aldeias indígenas, famílias camponesas, abastecimento de água, descaracterizando o relevo local e o curso dos rios.
A despeito de toda a destruição ambiental e social causada por esse crime, a Vale não apresentou até o momento nenhum plano de contenção da lama, mostrando nenhum interesse em estancar o minério hoje.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) chegou a afirmar durante a campanha que pretendia acabar com o “ativismo ambiental xiita”. Esse crime ocorre no momento em que Bolsonaro diz existir uma “indústria da multa ambiental” questionando a existência de órgão público como o IBAMA – Instituto Brasileiro do meio ambiente e dos Recursos Naturais.
Um exemplo concreto é a tramitação do Projeto de Lei (PL) 3.729/2004 que muda as regras de licenciamento ambiental no Brasil, trata com desequilíbrio a participação dos diferentes atores no processo decisório, valorizando o papel de empreendedores em detrimento da participação das populações afetadas.
A questão ambiental é uma questão política, que só pode ser equacionada num projeto soberano para mineração no Brasil.
5. Projeto soberano para a mineração
A forma que a atividade mineradora é organizada deve ser resultado de processos democráticos pautados pela soberania popular.
No Brasil, o MAB – Movimento de Atingidos por Barragens (1991) e o MAM – Movimento pela Soberania Popular na Mineração (2012) organizam os atingidos por barragens e propõem medidas que reforçam a soberania popular na mineração, como a regulação de escalas e taxas de extração mineral; a possibilidade de serem criadas Áreas Livres de Mineração, de acordo com a vontade das populações das regiões mineradas; criação de incentivos a Cooperativas de Mineração e Garimpo, no lugar do estímulo a multinacionais de mineração; ampliação da capacidade de fiscalização e monitoramento do aparato estatal; criação da possiblidade de desapropriação dos ativos das empresas, passando a ser diretamente administrados pelos próprios trabalhadores; incentivos à diversificação econômica das regiões mineradas; criação e utilização de canais de deliberação locais/municipais de controle popular sobre a mineração.
Esses movimentos denunciam de forma sistemática os três anos de impunidade em Mariana (MG) e estão organizando as comunidades e os trabalhadores em Brumadinho em um plano de ação conjunta da FBP – Frente Brasil Popular.
É importante a solidariedade internacional na denúncia e na pressão por apuração dos responsáveis.
Em 31 de janeiro (sétimo dia) e 1º de fevereiro, a FBP convoca a todos para o ato pelo direito de enterrar os nossos mortos.
Também é importante que no dia 14 de março, dia nacional e internacional de luta contra barragens, pela água e pela vida e o dia do assassinato de Marielle Franco ocorra um ato internacional que denuncie a violação dos direitos humanos no Brasil.
A Vale é uma empresa que atinge comunidades com a exploração de minérios em diversos países, apenas os trabalhadores organizados podem fazer justiça com relação a esse crime. Não foi um acidente, é um crime.
Quem dá mais pelas ações da vale? –
Perguntavam os privatistas.
E agora, como culpar os comunistas
Se a lama é toda dos capitalistas?
Malditos sejam todos os homicidas!
Que o martírio provocado
Lhes seja multiplicado
No tamanho dos lucros financeiros.
Quanto a nós, o povo brasileiro;
(pelos lamaçais ameaçados)
Melhor é lutar mesmo enlutados
Do que esperar pelo dia de sermos soterrados.
A Vale não vale uma vida perdida!
Ademar Bogo