Cenário aberto em 2023 na América Latina e Caribe: integração regional, violência social e a luta pela democracia popular
Informe OBSAL #20 / De 19 de dezembro de 2022 até 1º de maio de 2023
Observatório da América Latina e Caribe
Resumo
Nos primeiros quatro meses de 2023, a conjuntura política e social na América Latina e no Caribe evidenciou o lugar da nossa região em um mundo em transição global e em crise profunda. Analisar a conjuntura atual é um grande desafio. No OBSAL, fazemos apenas uma aproximação dos principais movimentos, às vezes com uma pequena análise que ocorreram no continente em diferentes dimensões que abrangem o interesse dos povos de Nuestra América.
No início de 2023, a crise civilizacional e multidimensional, pela qual o mundo vem passando nos últimos anos e que vem sendo objeto de análise de nossos últimos relatórios, se manifestou mais uma vez sob diferentes formas. Vale lembrar que, em essência, essa crise é produto da dinâmica do sistema capitalista, que ameaça não apenas a existência de nossa espécie, mas do planeta como um todo. Neste relatório, focamos, primeiramente, na crise ambiental, que coloca mais de 3 bilhões de pessoas pelo mundo em situação de vulnerabilidade diante das mudanças climáticas e deixa muitas regiões do planeta sofrendo com temperaturas extremas. Em segundo lugar, destacamos a crise econômica que se aprofundou dramaticamente na pandemia. Em nível global, de acordo com o relatório da OXFAM, quase dois terços da nova riqueza gerada desde 2020 estão concentrados no 1% mais rico da população mundial, sendo Nuestra América como uma das mais desiguais do mundo. Em alguns países, como a Argentina, a crise nos condena ao endividamento com organizações multilaterais de crédito, por exemplo. Em terceiro lugar, a permanência da guerra na Ucrânia continua a se apresentar, por um lado, como um cenário de possibilidades produtivas para o nosso continente e, por outro, como uma evidência da inviabilidade de um sistema internacional que prioriza a expansão bélica sob os auspícios da Organização do Tratado do Atlântico Nórdico (OTAN).
Dados os péssimos resultados ambientais e econômicos nos últimos anos, o capitalismo reforçou suas piores faces para tentar se legitimar socialmente. O crescimento de lideranças da extrema direita e personalidades neofascistas volta a preocupar o continente, como se fosse uma possível resposta a tais consequências desastrosas. Similarmente ao fenômeno Bolsonaro no Brasil, mas guardadas as devidas particularidades, Milei desponta como forte candidato nas eleições presidenciais argentinas deste ano.
Diante desse cenário global, encontramos nos primeiros meses de 2023 um continente mobilizado, com retrocessos em alguns lugares, mas, acima de tudo, focado no que parece ser o ressurgimento de projetos de integração em nível continental e um renascimento de cenários de diálogos e acordos comuns entre os países da região em questões políticas, econômicas e comerciais, que podem fortalecer a região da América Latina e do Caribe em âmbito mundial. Em meio à crise de hegemonia que o imperialismo atravessa, é evidente a necessidade de os Estados Unidos garantirem seus interesses em nosso continente. A chefe do Comando Sul visitou vários países da região, expressando sem pudor o desejo dos EUA em fortalecer sua presença na América Latina, no que considera ser sua zona de influência. Não é demais ressaltar, que o ano de 2023 marca os 200 anos da proclamação da Doutrina Monroe e sua América para os (norte) americanos.
O triunfo de Lula no Brasil, a continuação do processo da 4T com o governo de López Obrador no México, mais os esforços regionais de Honduras, Colômbia, Argentina, Chile, entre outros países que conseguiram governos progressistas nos últimos anos, abriram as possibilidades para que projetos de integração como a UNASUL, a CELAC e a ALBA, que foram firmemente atacados pela direita em nível regional, tenham reuniões ou desenvolvimentos durante os primeiros meses do ano, e tenham um novo impulso que, sem dúvida, seria impossível sem essas mudanças em termos governamentais em países centrais da região. Isso, como mencionado, é uma consequência da análise do lugar relevante de nosso continente no contexto global e, acima de tudo, em um cenário de multipolaridade em que se destaca o fortalecimento das relações da China com os países de nossa região, especialmente com o Brasil, que mais uma vez lidera um grupo de integração em nível continental.
Neste primeiro informe de 2023, fizemos um extenso tour pela região, localizando o que consideramos central na correlação de forças em nível continental, que poderia, em maior ou menor grau, modificar esse cenário de possível reintegração da América Latina e do Caribe em um projeto de soberania relativa em relação aos Estados Unidos. Começamos, então, com a ênfase em um Cono Sur que se iniciou com o ataque ao Palácio do Planalto no Brasil em janeiro por hordas de bolsonaristas e se encerrou em abril com o triunfo do Partido Colorado no Paraguai, freando as vitórias de governos alternativos nas últimas eleições em nível continental – especialmente após o triunfo de Lula e Petro em 2022. A Argentina passa por um aprofundamento de sua crise econômica interna, que já se manifestava no ano passado, somado às incertezas no cenário político das eleições presidenciais que ocorrerão em outubro deste ano, em que a possibilidade de uma derrota das forças peronistas para a direita e a extrema-direita é real. O Chile, que apesar das intensas contradições do governo Boric, aposta na nacionalização do lítio como medida para desenvolver um projeto popular.
Por sua vez, a Mesoamérica é o espaço de duas das maiores preocupações em nível regional. Uma delas, produto da crise econômica mencionada acima, é a tragédia sofrida diariamente por milhões de migrantes em busca de melhores condições de vida. Essa crise migratória, que já se constituiu em uma crise humanitária, deixou 433 migrantes assassinados na fronteira entre os EUA e o México em 2022. As condições desumanas da população migrante são observadas na superlotação em centros de detenção, na militarização das fronteiras e na violação permanente dos direitos humanos das pessoas que buscam cruzar a linha. A outra preocupação, está ligada à expansão do fenômeno Bukele, de El Salvador, em âmbito regional. As medidas impostas pelo Salvadorenho parecem estar legitimando, nos primeiros meses do ano, a chamada “guerra contra as gangues” como um modelo bem-sucedido a ser implementado em diferentes países, reforçando os discursos militaristas e securitizadores que buscam disfarçar as consequências dramáticas da desigualdade social com fortes medidas repressivas. Em termos eleitorais, nessa sub-região, as eleições na Guatemala do próximo mês de junho acontecerão em um cenário de fragilidade institucional, corrupção e fragmentação política, o que dificulta muito a aposta em um cenário de transformações progressistas no país, que está atolado em uma grave crise de desigualdade e falta de direitos básicos para sua população. Na mesma linha, a grave crise humanitária pela qual o Haiti está passando é resultado da violência de gangues criminosas, que, em conluio com as forças de segurança e com um governo de fato que, em vez de convocar eleições, busca trazer o intervencionismo estrangeiro, assassinou quase 500 pessoas somente nos primeiros quatro meses do ano.
Cenários de violência resultantes da desigualdade e do surgimento e multiplicação de gangues ligadas ao narcotráfico também estão ocorrendo na região Andina, especialmente no Equador, onde o aumento da insegurança, juntamente com a crise carcerária, levou o conflito social a níveis preocupantes, colocando o presidente Guillermo Lasso em uma crise sem precedentes, que inclui um pedido de impeachment por crimes de corrupção. Da mesma forma, cenas de repressão e violência por parte das próprias forças de segurança são comuns em um Peru que continua a sofrer com as políticas da ditadura parlamentar de Dina Boluarte, que governa para os interesses da direita local, e dos interesses da embaixada dos Estados Unidos, dando as costas a um povo que está mobilizado há cinco meses, exigindo sua renúncia imediata e a convocação de uma Assembleia Constituinte.
No entanto, apesar do cenário crítico e das dificuldades inerentes ao avanço dos processos progressistas e revolucionários, 2023 apresentou cenários esperançosos para o fortalecimento do projeto de integração continental, entre eles estão: a renovação da Assembleia Nacional em Cuba, com a reeleição de Miguel Díaz-Canel como presidente do país; o avanço do processo de mudança na Bolívia que, em meio a preocupações internas, continua a se fortalecer economicamente; as medidas de Gustavo Petro na Colômbia que, apesar de tomar decisões aparentemente impopulares, está disposto a continuar o projeto de Paz Total com todos os grupos armados do país, além de desenvolver iniciativas de política externa, como a convocação da Conferência Internacional sobre o processo político na Venezuela; e o fortalecimento e a persistência da Revolução Bolivariana, manifestados na continuidade das exigência, por parte do governo venezuelano, pelo fim das medidas coercitivas unilaterais.
Como mencionamos no início, são apenas quatro meses, mas parece que se passaram anos, considerando os movimentos de atores, cenários, possibilidades e preocupações que atravessam nossa região. A seguir, apresentamos uma avaliação aprofundada dos diferentes elementos que mencionamos e que pretendem servir como ferramenta para a análise da conjuntura atual e, sobretudo, para as estratégias de luta dos movimentos e organizações do campo popular em toda a Nuestra América.
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