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Artigos

China, América Latina e Caribe na encruzilhada da história

 

Cabe então aos povos da nossa região, e não à China, tomar a iniciativa de propor a mudança dos fundamentos desta relação. Foto: Tono_Carbajo Fotomovimiento

Por Marco Fernandes*

Qual o significado do protagonismo da China no xadrez da geopolítica global para a América Latina e o Caribe? Ela abre uma janela de oportunidade para um projeto popular e soberano na região, que supere nossa histórica posição subalterna às potências coloniais e imperialistas, sobretudo aos EUA? Ou a ascensão da China à potência econômica e política tende a reproduzir a dinâmica centro-periferia do “sistema-mundo” do Capital, alimentando mais um ciclo do nosso “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, do Rio Grande à Patagônia?

Essa é a pergunta lançada pelo dossiê 51 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, chamado Olhando em direção à China: a multipolaridade como oportunidade para os povos da América Latina”. As respostas serão dadas pelos próximos capítulos da luta de classes em nosso território. Mas o dossiê não só traz uma síntese da meteórica trajetória chinesa nas últimas décadas e o aprofundamento de sua relação com nossa região, como também indica as principais contradições e desafios que as forças populares terão de superar se quiserem aproveitar a brecha histórica representada pelo declínio da hegemonia estadunidense nos últimos anos.

Os dados econômicos não deixam dúvidas sobre a crescente importância da parceria entre a China e a América Latina e o Caribe (ALC), potencializada pela adesão de 21 dos 33 países da região à Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), lançada por Xi Jinping em 2013. Seu comércio bilateral saltou de US$ 14,9 bilhões em 2001 para US$ 451,5 bilhões em 2021, com um equilíbrio razoável da balança comercial (US$ 6,5 bilhões de superávit chinês). Segundo a CEPAL, em 2021, a China recebeu 27% das exportações da ALC e foi responsável por 22% das importações da região. Entre 2005 e 2020, houve um acúmulo de US$ 158 bilhões em investimento chinês direto, com 150 fusões e aquisições (US$ 83 bilhões) e 652 projetos de investimento (US$ 75 bilhões). Já os 86 projetos de infraestrutura financiados pelos chineses totalizaram US$ 77 bilhões entre 2005 e 2019, sendo que US$ 54,7 bilhões foram posteriores a 2015 (51 projetos), com destaque para o setor de energia, que recebeu US$ 49 bilhões em financiamentos (37 projetos). Finalmente, em 2020, como lembra o dossiê, a ALC recebeu 10,8% dos investimentos estrangeiros diretos da China, tornando-se a região fora da Ásia que mais recebeu investimentos chineses.
No entanto, a maior parte dessa relação econômica ainda está baseada na clássica dinâmica centro-periferia, na qual a ALC exporta bens de baixo valor agregado, como soja, carne, petróleo, metais etc., e importa bens manufaturados, alguns deles de alta tecnologia com a especialização da China nessa área nas últimas décadas. Não se trata de ignorar a importância desse comércio. Com 1,4 bilhão de habitantes e responsável pela produção de 28% da manufatura global, a China não pode prescindir da imensa riqueza agropecuária e de recursos naturais da ALC, nem a ALC pode prescindir do mercado chinês para seus produtos e de sua manufatura barata e de alta qualidade. Mas o caráter hiper concentrado do agronegócio e das atividades extrativistas, com pouca geração de empregos, baixos salários e prejuízos ao meio ambiente pela falta de regulação estatal, tornam a dinâmica desta relação desfavorável para a ALC a longo prazo, tendendo a reproduzir as estruturas sociais desiguais de nossas sociedades. Importante lembrar, contudo, que essa estrutura jamais foi imposta pela China, que não organiza golpes, nem invade países da região para impor seus interesses. Isso é fruto da dinâmica atual da divisão internacional do trabalho, que não nos é favorável.

Cabe então aos povos da nossa região, e não à China, tomar a iniciativa de propor a mudança dos fundamentos desta relação. Por um lado, lutando internamente para que o setor primário da economia traga mais benefícios para a sociedade (mais impostos, melhores salários, respeito à natureza), mas principalmente, pressionando os governos da região a proporem à China uma mudança qualitativa nos termos de troca da relação econômica. São inúmeras as formas de avançar nessa parceria, que passam sobretudo por maiores investimentos nos diversos setores industriais e de serviços, com ênfase na transferência de tecnologia – essa foi, aliás, a receita do sucesso da China em sua relação com os países do Norte Global desde a reforma e abertura de sua economia. Bem como pelos esforços de criação de alternativas ao dólar, de combate à crise climática e de controle de pandemias, dinamizando a economia da região e ampliando as condições para que os setores progressistas lutem por um projeto popular e soberano.

A retomada do processo de integração da ALC é condição fundamental para o fortalecimento da nossa posição, e a correlação de forças volta a ser favorável a isso, com a nova onda de governos progressistas na região e o rearranjo de forças no cenário global. Em setembro de 2021, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) realizou sua primeira cúpula em quatro anos. Em dezembro, o Fórum China-CELAC – espaço com enorme potencial – voltou a se reunir e elaborou um “plano de ação conjunta”, propondo avanços importantes para a parceria. Enquanto isso, a Cúpula das Américas que se realizará em junho, em Los Angeles, ameaça ser um fracasso. Em uma demonstração de unidade política, inúmeros países – entre eles México, Bolívia, Honduras e nações caribenhas – ameaçam boicotar o evento diante da tentativa da Casa Branca de excluir Cuba, Venezuela e Nicarágua. As vitórias de Gustavo Petro (Colômbia) e de Lula (Brasil) nas eleições presidenciais do maior enclave estadunidense e na maior economia na região, respectivamente, mudariam de vez o cenário político regional.

Diante da escalada de agressões de Washington contra Pequim, nunca antes na história a parceria entre China e ALC foi tão estratégica. Do ponto de vista econômico, financeiro, tecnológico, diplomático (e até militar), a China pode ser a alavanca que faltava aos países da região para resistir aos ataques imperialistas à sua soberania, que certamente virão. Para a China, que sofre com um cerco cada vez maior da OTAN ao redor de seu território, é a chance de dar um contragolpe no “quintal dos EUA”, ao mesmo tempo em que consolida parceiros políticos estratégicos – alguns deles simpáticos ao socialismo – para o objetivo principal de consolidar uma nova ordem mundial multipolar que, como reivindica o dossiê, “coloque os interesses da maioria em primeiro lugar”.

 

*Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (um dos pilares da Assembléia Internacional dos Povos). Ele é membro da campanha Basta de Guerra Fria e é co-fundador e co-editor do Notícias da China (Dongsheng). Mora em Xangai, China.