Crise da ordem mundial e a disputa por sua reconfiguração
O 4° caderno da série sobre a China procura explicar como se desenvolveu a transição histórico-espacial e como a nova ordem mundial multipolar está se configurando.
Resumo
O 4° caderno da série China na (des)ordem mundial analisa a atual crise de hegemonia do Ocidente, debatendo a ordem mundial e seu processo de reconfiguração. Essa é a terceira tendência estrutural da atual transição histórico-espacial. A ascensão da China e o declínio da hegemonia estadunidense são fundamentais para a compreensão das dinâmicas de poder e, em particular, da crise da ordem mundial dentro da hegemonia britânico-estadunidense.
Para isso, nos detivemos em examinar os conceitos de hegemonia e ordem mundial para, em seguida, analisá-los em relação a uma periodização histórica que começa com a Segunda Guerra Mundial e continua até as disputas do presente. Buscamos entender como foi se desenvolvendo a transição histórico-espacial e como vai se configurando uma nova ordem mundial multipolar em relação a crise da hegemonia anglo-saxônica-estadunidense e a fissura da ordem mundial globalista unipolar. Por fim, apresentamos uma leitura da região latino-americana e caribenha, a fim de nos referirmos às expressões dessa crise em nossos territórios.
Introdução
Neste quarto caderno nos dedicaremos a outra das tendências da transição histórico-espacial contemporânea que estamos desenvolvendo, a terceira conforme indicado no primeiro caderno: trata-se da crise da ordem mundial e a crescente disputa sobre a sua reconfiguração, antes da ascensão da China. Atualmente, vivemos em tempos de “desordem mundial” e “caos sistêmico”, como apontou Arrighi para identificar os períodos de 30 anos de guerras que acompanham as transições de poder. Num mundo intensamente convulsionado pela pandemia de Covid-19 e pela aceleração das tendências indicadas, a escalada da guerra na Ucrânia e as tensões crescentes que se observam em nível global são uma expressão deste novo momento, como analisamos no terceiro caderno deste projeto. Da mesma forma, a ascensão da China em particular, e da Ásia-Pacífico e da Eurásia em geral, constitui um fator estrutural desses processos, conforme desenvolvemos no segundo caderno do projeto.
Neste trabalho apresentamos, em primeiro lugar, como concebemos a ordem mundial em relação à hegemonia, ou como um ciclo de hegemonia inclui diferentes configurações da ordem mundial. Em seguida, faremos um breve percurso histórico pelas reconfigurações da ordem mundial na segunda metade do século XX, em função da ascensão dos Estados Unidos (EUA) como potência hegemônica do sistema-mundo capitalista moderno. Em seguida, abordamos a crise da hegemonia e da ordem mundial no presente século, face ao declínio dos EUA, à ascensão da China e à crescente multipolaridade relativa. Investigamos neste ponto o atual processo de constituição da nova ordem mundial em relação ao duplo jogo chinês: um pé na velha institucionalidade multilateral de raízes britânico-estadunidense, e outro na nova estrutura institucional que a potência oriental vem criando nos últimos anos – uma expressão central do novo multilateralismo multipolar – e que tende a construir uma outra ordem. Por fim, nos perguntamos como esse processo impacta a região latino-americana, identificando determinadas oportunidades e ameaças.
Hegemonia e ordem mundial
Com a eclosão da guerra na Ucrânia em 2014, o lançamento da Iniciativa da Faixa e Rota (IFR), o avanço do BRICS (bloco inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e a expansão da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) liderada pela China e pela Rússia, começou a se escutar as crescentes preocupações no Ocidente geopolítico das “ameaças” à ordem mundial imperante. Em setembro deste ano, em plena cúpula da OCX, quando foi acordada a incorporação de ninguém menos que a Índia e o Paquistão na referida organização multilateral eurasiática, a famosa revista inglesa The Economist publicou um número sobre o que chama de desenvolvimento da “Pax Sinica.” Para uma das mais importantes editoras das forças globalistas anglo-estadunidense, a OCX é uma espécie de OTAN liderada pela China, e afirma que Pequim “representa um desafio à ordem mundial liderada pelos EUA, mas muito mais sutil”. Para evitar dúvidas, o artigo termina com a seguinte frase: “A China não é apenas um desafio à ordem mundial existente. Aos poucos, desordenadamente e, aparentemente sem um final claro à vista, está construindo um novo”.
Mas o que é uma ordem mundial e o que significa – na perspectiva das forças dominantes da ordem mundial – o fato da China não apenas desafiar a existente, mas construir uma nova? Para abordar este tema, precisamos primeiro esclarecer algumas questões conceituais, recuperando ideias de A. Gramsci, R. Cox, G. Arrighi, B. Silver, P. Taylor, S. Amin e T. Dos Santos.
O conceito de hegemonia não se refere apenas ao poder relativo de uma potência e dos seus grupos e classes dominantes, embora obviamente ambas as questões estejam intimamente relacionadas. A hegemonia implica: o estabelecimento de um conjunto de alianças com outros grupos dominantes e subalternos do sistema; a capacidade de instituir um sistema de mediações; uma ordem mundial que cristalize as hierarquias interestatais a partir da qual se exerce uma certa arbitragem e se administra o uso da força como elemento disciplinador em última instância; a construção de uma legitimidade (força mais consenso) ancorada em aspectos materiais e simbólicos (ideias dominantes); e a coordenação de um processo de acumulação ampliada da economia mundial, ou seja, uma expansão do sistema e o desenvolvimento das suas forças produtivas. Estes são aspectos-chave de toda hegemonia, que podem variar ao longo de um ciclo de hegemonia (como o ciclo britânico de 1815 a 1914 ou o ciclo britânico-estadunidense que começa em 1945 e agora está em crise), dando lugar a diferentes configurações específicas.
A hegemonia tem uma dimensão material, baseada no poderio e nas capacidades econômicas, tecnológicas e militares. É essencial neste ponto a capacidade de organizar e coordenar uma ordem em termos econômicos, a qual compreende sua reprodução ampliada, as finanças, o comércio, a tecnologia e as instituições. Ao mesmo tempo, a hegemonia compreende também um conjunto de ideias dominantes e determinadas mediações (teóricas e práticas). Ou seja, a hegemonia é um acoplamento entre poder material, ideologias e instituições.
A institucionalização de uma certa distribuição de poder e dos códigos geopolíticos dominantes num determinado momento é o que define uma ordem mundial particular. Esta ordem implica a cristalização de certas hierarquias interestatais e da relação de poder entre as forças sociais e materiais, bem como o exercício da arbitragem e a administração do uso da força como elemento disciplinador em última instância. Além disso, uma ordem mundial traduz em termos práticos a construção de uma legitimidade ancorada em aspectos materiais e simbólicos.
Desta forma, observar o desenho e a configuração das instituições de governança que caracterizam uma ordem mundial num determinado contexto sócio-histórico é uma forma de investigar as relações de poder e o modo como uma hegemonia é politicamente cristalizada. Do nosso ponto de vista, não se trata do estabelecimento de uma ordem entre diferentes Estados, mas sim de um modelo de produção dominante que se relaciona com outros modelos subordinados e, portanto, está em relação com um sistema mundial e com um ciclo de hegemonia dentro do sistema.
A seguir, a partir dessas conceituações, analisaremos o processo de hegemonia estadunidense e sua subsequente crise.
Hegemonia estadunidense e ordens mundiais do pós-guerra
Com o fim da transição hegemônica de 1914-1945 – período de “caos sistêmico” e das grandes guerras mundiais interimperialistas – inicia-se uma nova hegemonia. Além disso, configura-se uma Nova Ordem Mundial que expressa uma determinada distribuição de poder no mundo e o estabelecimento de certos códigos geopolíticos que evoluem do particular para o geral. Isso se cristaliza em um conjunto de instituições e ideias dominantes. A Nova Ordem Mundial do pós-guerra, sob a hegemonia estadunidense, foi definida em Yalta, Potsdam e Bretton Woods, e expressou a preeminência dos grupos do poder financeiros do centro, com as suas corporações multinacionais e as suas elites políticas e militares. O núcleo central de poder se concentrou nos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido e pelos grupos dominantes da Europa Ocidental (eixo franco-alemão) e do Japão, que foram incorporados como potências econômicas das periferias eurasiáticas, mas sem autonomia política estratégica, portanto, protetorados militares dos EUA. Isto somou-se às oligarquias das periferias e semiperiferias ligadas ao Norte Global ou ao Primeiro Mundo. O polo de poder secundário foi estabelecido sob a primazia da URSS, do Pacto de Varsóvia (o Segundo Mundo) e da China.
Diante desses dois polos centrais de poder, emergiram as “Terceiras Posições” e os projetos autonomistas do Terceiro Mundo, que se expressaram na Conferência de Bandung (Indonésia, 1955) e, mais tarde, no Movimento dos Não-Alinhados. A partir daí, foram promovidos o altermundismo, a coexistência pacífica, o respeito pela soberania e integridade dos povos oprimidos e a democratização da riqueza e do poder em nível global.
A “Guerra Fria” e a “bipolaridade” foram categorias que dominaram e ainda dominam a análise geopolítica e estratégica do período 1947-1991, embora pela perspectiva do Sul Global devamos ter um olhar crítico a respeito, especialmente porque foram inviabilizados os processos revolucionários populares das periferias e semiperiferias do sistema que ocorreram durante a transição 1914-1945 e com o início do novo ciclo de hegemonia. Estes elementos são fundamentais para compreender a transição que se abre no século XXI e a própria ascensão da China, conforme trabalhamos no Caderno 2.
A primeira ordem mundial dentro do ciclo de hegemonia que começa em 1945 é a dos “anos dourados” do capitalismo fordista estadunidense (a primeira etapa da Guerra Fria), que compreende o período que vai de 1945 a 1968-1971. Depois de terem entrado no final da Segunda Guerra, em 1941, os EUA impuseram a sua moeda – o dólar – e certas condições na conferência de Bretton Woods de 1944. Ali foram estabelecidos os famosos acordos homônimos, que delinearam a arquitetura econômica e multilateral que estabilizaria a nascente ordem, por meio de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT por sua sigla em inglês), além da Organização das Nações Unidas (ONU). Na ordem mundial resultante, vemos as dimensões que mencionamos na primeira seção como parte constitutiva do exercício de hegemonia estadunidense (hoje em crise): uma arquitetura institucional com regras, forças sociais predominantes, um sistema econômico e financeiro, políticas de segurança e um conjunto de ideias que procuram dar legitimidade a este processo.
Com a crise de acumulação e hegemonia dos anos de 1970, ocorreram determinadas transformações que deram origem a uma nova ordem dentro do ciclo de hegemonia anglo-estadunidense. A ascensão da Europa Ocidental e do Japão, o Maio francês (ou a crise no centro com a revolta das classes populares), o início da retirada dos EUA do Vietnã e as revoluções nacionais e sociais do Terceiro Mundo são expressões da crise da ordem do pós-guerra. Um elemento chave foi a queda do padrão dólar-ouro, ou seja, o respaldo do dólar nesse metal e a sua convertibilidade. Inicia-se o Bretton Woods II, o dólar “liberado” do ouro e como moeda fiduciária (ou dinheiro fiduciário), baseado no poderio bélico estadunidense e da OTAN, e o petrodólar (o monopólio do dólar na comercialização mundial do petróleo), para a qual se torna fundamental a aliança de Washington com a potência petrolífera saudita e as monarquias do Golfo. Isto foi fundamental para alavancar as redes financeiras globais de origem anglo-saxônica. Houve também, ao mesmo tempo, a emergência do paradigma de acumulação flexível, da transnacionalização econômica e a emergência da Ásia-Pacífico como polo dinâmico de acumulação, como abordamos nos primeiros cadernos.
Na dimensão política, foi fundada a Comissão Trilateral, reunindo líderes empresariais da América do Norte (EUA e Canadá), Europa Ocidental e Japão como um espaço supranacional que buscava restaurar a governabilidade político-econômica da ordem mundial com base no que Samir Amin denominou como a tríade imperialista. Isto refletiu uma mudança nas relações de forças no Norte Global ou “Primeiro Mundo” em favor do Japão e do eixo europeu França-Alemanha-Itália, fortalecidos pela reconstrução pós-guerra e pelo grande crescimento econômico. Por outro lado, o distanciamento estratégico da China em relação à URSS e a aproximação com os EUA também foram um elemento fundamental da ordem mundial que se desenvolveu entre 1968-1971 e 1989-1991. Isto significa a incorporação progressiva da China continental à ordem dominada pelos Estados Unidos em instituições-chave (como o Conselho de Segurança da ONU), o isolamento da URSS e o desbloqueio das condições geopolíticas que tinha Pequim para o seu desenvolvimento. É o período da Segunda Guerra Fria, da crise da hegemonia estadunidense, do disciplinamento do “quintal” latino-americano por meio de golpes e genocídios e da reconfiguração capitalista rumo ao “pós-fordismo”, à globalização e ao desenvolvimento de redes financeiras globais. Surge o neoliberalismo.
Com a desintegração da URSS e de grande parte do mundo comunista por volta de 1989-1991, a belle époque neoliberal, o unipolarismo e a chamada globalização foram implantados em todo o seu “esplendor” sob o programa do Consenso de Washington e o comando do capital financeiro global e de suas transnacionais. Nesta Nova Ordem Mundial, o mundo tornou-se unipolar e o globalismo emergiu como uma descrição ideológica da nova fase do capitalismo mundial, mas também como projeto político estratégico. A transnacionalização financeira, produtiva e, em grande parte, cultural deveria ser acompanhada por uma estrutura de poder transnacional que administraria a nova ordem do sistema mundial e costuraria as contradições do capitalismo global. Uma nova acumulação de poder político-militar era necessária para sustentar e impulsionar uma nova fase de acumulação de capital. O projeto dos Estados Unidos como um Estado (e gendarme) verdadeiramente global era impossível – a potência norte-americana começou a ficar “pequena” para a nova escala de poder necessária – mas ao mesmo tempo, sobre sua base e desenvolvimento, e juntamente com o Norte Global, configurou-se o andaime de uma institucionalidade globalista. Em função disso, algumas organizações multilaterais importantes do pós-guerra foram fortalecidas sob o controle dos EUA e do Norte Global: o FMI e o Banco Mundial. Além disso, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC) e começaram a ser promovidas um conjunto de normas globais relativas ao comércio, investimento, propriedade intelectual, dentre outras, constituídas em acordos e instituições. Foram criados, inclusive, tribunais internacionais, como o Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID), privando os Estados nacionais de ferramentas soberanas. Toda esta institucionalidade globalista – onde o G-20, lançado em 1999 (e relançado por volta de 2008) para substituir o G-7, surgia como um novo espaço de governabilidade global – significou um processo de enfraquecimento da soberania nacional, uma desnacionalização progressiva dos Estados. Tratava-se de um novo multilateralismo, mas de um mundo unipolar; um multilateralismo que denominamos de globalista.
Este processo de institucionalização transnacional, que articulou um esquema regulatório global, aprofundou os mecanismos de subordinação e de desenvolvimento desigual: normas multi ou bilaterais de proteção de interesses comerciais (pela OMC), de investimentos (por meio de Tratados Bilaterais de Investimento) e de vantagens tecnológicas e dos direitos de propriedade intelectual (pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Como observou Samir Amin, consolidaram-se os monopólios tecnológicos, comerciais e financeiros do Norte Global – além do controle dos recursos naturais, das armas de destruição em massa e dos meios de comunicação de massa –, quadro em que operava a lei do valor.
Aqui pode ser enquadrada a série de grandes acordos de comércio e investimento implementados desde então. Na década de 1990, foram lançados o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) e o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), ambos de caráter regional, sendo que este último foi finalmente rejeitado em 2005 pela maioria dos presidentes latino-americanos. Já entrando no novo século, são lançados acordos regionais, mas de alcance global, como os Tratados Transpacífico (TTP) e o Tratado Transatlântico (TTIP). Por meio destes diferentes instrumentos, os quadros e grupos de poder globalistas têm procurado constituir formas de institucionalidade jurídico-política relacionadas com o capital financeiro global, por organizações multilaterais (como a OMC ou o G-20) e aqueles mega acordos comerciais. Trata-se de um multilateralismo unipolar, uma vez que, embora as instituições de governabilidade abrangessem diferentes países, não se desafiava a preeminência do núcleo de poder mundial anglo-estadunidense e ocidental (o que é uma forma de se referir ao Norte Global ou ao G-7). Mas tanto o TTP como o TTIP fizeram parte das iniciativas globalistas numa nova etapa, após a crise da própria ordem mundial globalista unipolar em 2008-2009, com a grande crise econômica mundial com epicentro nos Estados Unidos e no Ocidente. Em 2009-2010 e após dez anos de desenvolvimento, emergiu uma nova realidade multipolar.
Crise da hegemonia e da ordem mundial no século XXI
Como apontamos com maior profundidade no primeiro caderno do projeto, até o final do século passado e início do atual, começam a ser percebidas fissuras e indicadores do atual processo de crise e transição histórico-espacial, com a crise da hegemonia anglo-saxônica-estadunidense e a fragmentação da ordem mundial, que se tornaria mais evidente com a eclosão da crise financeira global de 2008.
No final do século, com a ascensão do neoliberalismo e do globalismo, os primeiros sintomas da crise começaram a aparecer. Enquanto a rebelião do campesinato zapatista no sul do México, em 1994, tenha revelado o feroz impacto do projeto financeiro neoliberal sobre os pobres do Sul Global, em 1999 manifestou-se um conjunto de contradições entre os grupos dominantes do sistema – tanto centrais como semiperiféricos e periféricos – e começaram a ser observados em termos políticos e estratégicos os primeiros indícios da particular multipolaridade e da nova forma geopolítica da transição, como desenvolvemos em outros trabalhos. A partir daí, a reconstrução da hegemonia estadunidense dos anos de 1980 e do seu esplendor nos anos de 1990 começou a mostrar os seus próprios limites e contradições: se a chamada globalização, a transnacionalização econômica e os vínculos com a China foram pilares dessa reconstrução, estes elementos por sua vez continham o germe da crise da hegemonia estadunidense.
Até o final dos anos 1990, o BRICS constituiu mercados emergentes, espaços fundamentais para a expansão do capital transnacional do Norte Global, bem como uma nova solução espacial para a acumulação de capital, integrados progressivamente como semiperiferias nas instituições internacionais de governabilidade global criada pelo Ocidente. No entanto, o alguns anos depois também se observará uma realidade pouco feliz para o establishment defensor da ordem mundial então em vigor: o desenvolvimento, em alguns países chamados “emergentes” ou do Sul Global, de capacidades estruturais e forças político-sociais que desafiam as hierarquias estatais estabelecidas, as instituições da ordem mundial e o lugar atribuído na divisão internacional do trabalho.
Após a grande crise econômica de 2008, uma articulação no mapa do poder mundial, o BRICS emergiu em 2009 como a institucionalidade multilateral de um mundo multipolar em formação, composto não apenas por “mercados emergentes”, mas por potências emergentes da semiperiferia do sistema e do Sul Global que procuram redistribuir o poder e a riqueza mundial, ao mesmo tempo que modificam as hierarquias interestatais cristalizadas nas instituições dominantes. A China se destaca aí, um grande “rival sistêmico” declarado pelo Ocidente. Ou seja, começa a surgir outra ordem, de transição, instável, relativamente multipolar com certas características bipolares; e isso é combinado com uma profunda crise de hegemonia que avança para a etapa do “caos sistêmico”.
Por sua vez, no núcleo do poder mundial anglo-saxônico, a partir de 2001 observa-se uma fratura com o surgimento do neoconservadorismo americanista estadunidense encarnado por George W. Bush. Ele impôs um unilateralismo que desafiou, a partir do centro do sistema, as atuais instituições multilaterais. Como afirma Giovanni Arrighi, tratava-se do fracasso do projeto imperialista neoconservador na sua tentativa de supremacia mundial. Assim, a ocupação do Iraque sela o processo de deslegitimação estadunidense a partir da perda de credibilidade do seu poderio militar, juntamente com a perda da centralidade do dólar e dos EUA na economia global. Paralelamente, a ascensão da China como alternativa ao poder estadunidense no Leste Asiático são alguns dos elementos centrais que Arrighi destaca para se referir à “crise terminal da hegemonia estadunidense”.
Desde então, a contradição entre o unilateralismo americanista-anglo-saxônico e o multilateralismo globalista torna-se cada vez mais profunda dentro do projeto unipolar dos grupos e classes dominantes dos EUA, Reino Unido e seus aliados. Isto está relacionado com duas geoestratégias diferenciadas dentro dos EUA e do mundo anglo-americano em geral: a unipolaridade unilateral, expressa predominantemente pelos republicanos Trump (2017-2021) e, parcialmente, por Bush (2001 e 2008) como “reação americanista”; e a unipolaridade multilateral, mais ligada aos democratas globalistas como os Clinton (sob as presidências de Bill, por volta de 1993-2001, e depois liderados por Hillary), Obama (2009-2017) e desde 2021, com Biden.
Ao mesmo tempo, outros polos de poder começaram a resistir aos avanços hegemônicos estadunidenses, enquanto construíam pontes na busca de estabelecer uma nova ordem de caráter multipolar. Ou seja, um mundo marcado pela coexistência de diferentes polos de poder com os seus respectivos projetos políticos estratégicos. Como já assinalamos, é a partir da crise de 2008 que se torna mais claro o cenário de crescente e relativa multipolaridade, com o aparecimento do bloco BRICS como ator geopolítico, juntamente com a ascensão da República Popular da China e da região da Ásia Pacífico, o estabelecimento de alianças euro-asiáticas com tendências contra-hegemônicas, com um papel muito relevante da Rússia, e uma crescente insubordinação do Sul Global.
Surgiu então um multilateralismo multipolar, mais alinhado com as novas relações de poder em nível mundial face à ascensão de novos atores emergentes. Estas outras visões e práticas do multilateralismo incluem não apenas um questionamento do quadro institucional vigente e apelos à democratização das instituições multilaterais da “velha ordem”, mas também promoveram a criação de novas instituições multilaterais e compromissos Sul-Sul globais e regionais.
Na América Latina, por exemplo, a “primavera” dos governos nacionais-populares promoveu organismos de integração regional autônoma, como a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP, fundada em 2004), a União de Nações Sul-Americanas (Unasul, fundada em 2008) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC, fundada em 2010), somado à revitalização e a busca de reorientação política do Mercado Comum do Sul (Mercosul, fundado em 1991). A rejeição da ALCA tornou-se condição para o avanço destas iniciativas, a partir das quais se buscava ampliar a margem de manobra na região, aproveitando as condições emergentes em nível global. Foram tempos que geraram um alerta para a hegemonia estadunidense na região da América Latina e do Caribe. Como o próprio Diretor Nacional de Inteligência estadunidense, James R. Clapper, indicava em 2011 na sua Declaração sobre a avaliação da ameaça mundial da comunidade de inteligência dos EUA ante a Câmara dos Representantes:
O êxito econômico e a estabilidade política do Brasil colocaram-no no caminho da liderança regional. É provável que Brasília continue a usar esta influência para destacar a Unasul como o principal mecanismo de segurança e resolução de conflitos na região, em detrimento da OEA e da cooperação bilateral com os Estados Unidos. Ele também tentará aproveitar a organização para apresentar uma frente comum contra Washington em questões políticas e de segurança regionais (Clapper, 2011:25).
Aparecia como “ameaça” a política de projeção regional e global que procurou fortalecer os laços de Cooperação Sul-Sul em direção ao multipolarismo. Foram criados fóruns e cúpulas de cooperação entre a América do Sul e a África, por um lado, e entre a América do Sul e países árabes, por outro. Isto se somou ao histórico Grupo dos 77, que reúne países periféricos e semiperiféricos desde a década de 1960 (atualmente ampliado para incluir mais de 130 países), e que ganhou impulso com o novo século, realizando as chamadas Cúpulas do Sul. Em 2014, tendo em vista o 50º aniversário do grupo, a China foi convidada a participar, razão pela qual costuma-se denominar desde então o grupo como G77+China.
Destacamos o ano de 2014 porque constitui um momento chave na crise e na reconfiguração da ordem mundial. Naquele ano, teve início a guerra civil na Ucrânia (que abordamos no terceiro caderno), e o lançamento de uma nova arquitetura financeira e produtiva mundial na 7ª Cúpula do BRICS, em Fortaleza (Brasil). Ali foram lançados o Novo Banco de Desenvolvimento e o Fundo de Reserva de Contingência do bloco, dois instrumentos que buscavam disputar a arquitetura financeira global.
Isto ocorreu no âmbito de algumas iniciativas estratégicas que a China lançou no ano anterior, em 2013: o megaprojeto de infraestruturas centrado na Eurásia, mas com projeção global, denominado Iniciativa do Cinturão e Rota (IFR ou BRI por suas siglas em inglês, também chamada popularmente de “Nova Rota da Seda”) e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Nesse sentido, tal como descrevemos no início, também é fundamental o fortalecimento da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), criada pela China e pela Rússia em 1997 como uma instituição de segurança conjunta face à estratégia estadunidense de avançar no controle da Ásia Central, e que foi fundada em 2001. A parceria entre a China e a Rússia, que começou a ser forjada por volta de 1997-2001, desequilibrou a equação de poder que sustentava a retomada da hegemonia estadunidense-anglo-americana a partir da década de 1980, para a qual foi fundamental a ruptura entre a China e a URSS e a aliança de Pequim com Washington em 1972.
Segundo aponta Zhao Huasheng, professor do Centro de Estudos da Rússia e Ásia Central da Universidade Fudan, localizado em Xangai, a importância estratégica da OCX para a China é inegável. Ele aponta quatro razões fundamentais:
- Permitiu que a China construísse e aumentasse a confiança com os países vizinhos da antiga União Soviética, garantindo a segurança e a paz das suas extensas zonas fronteiriças ocidentais e setentrionais, permitindo assim que as forças militares se concentrassem nas costas do Pacífico leste e sudeste do país.
- Ajuda a China a combater os seus movimentos separatistas internos, principalmente em Xinjiang.
- A cooperação econômica perseguida pela OCX é benéfica para apoiar o programa de Pequim para o desenvolvimento das regiões ocidentais da China.
- A criação de uma zona de estabilidade e desenvolvimento desde a Ásia Central até o Sul da Ásia, Eurásia e Oriente Médio criará um ambiente favorável para a implementação pela China da “Iniciativa do Cinturão e da Rota”.
Em 2015, outro fato ocorreu com a criação da União Econômica Eurasiática, como um processo de integração no espaço pós-soviético, sob o comando da Rússia e com a participação do Cazaquistão e da Bielorrússia, à qual se juntaram posteriormente o Quirguistão e a Armênia. Certas instituições foram então criadas, como o Fórum Econômico Oriental e o mais recente Fórum Econômico Eurasiático.
Depois, em 2016, ocorreu uma mudança importante em nível global, com a votação do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) e a vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA, impondo uma virada nacionalista conservadora no seio do polo de poder anglo-estadunidense. Com a ascensão de Trump, consolida-se o processo de declínio relativo que os EUA já vinham atravessando como líder global, enquanto as forças nacionalistas-americanistas que assumem o governo desenvolvem uma política que atinge alguns dos pilares da velha ordem mundial já em crise, que se recusa a perecer completamente. Tal como a própria OTAN, a OMC é atacada pelo protecionismo estadunidense, juntamente com o desmantelamento dos tratados multilaterais de comércio e investimento promovidos pela administração Obama (o TPP e o TTIP), os quais constituíam – entre outras questões – uma ferramenta fundamental para conter a China, a Rússia e os países emergentes. Por volta de 2008, o trumpismo conseguia um dos seus objetivos com a renegociação do TLCAN, rebatizado de T-MEC (Tratado entre México, Estados Unidos e Canadá), como uma institucionalidade supranacional mais semelhante à doutrina America First (Estados Unidos Primeiro). Este novo acordo incluiu uma cláusula específica (32) para contrariar a crescente influência chinesa na região, também no âmbito da guerra (tecno)comercial declarada por Trump.
Outro marco importante do crescente multilateralismo multipolar e do papel central da China pode ser visto com a criação, em 2020, do maior acordo comercial do mundo, estabelecido na Ásia-Pacífico: a Associação Econômica Integral Regional (RCEP por sua sigla em inglês), que expressa cerca de 30% do PIB, do comércio e da população mundial, na região com maior crescimento econômico. Isto significa o primeiro grande acordo entre três das quatro economias mais importantes da Ásia: China, Japão e Coreia do Sul, que fazem parte dos principais nós da economia mundial em termos de comércio, finanças e tecnologia. Os dois últimos, por sua vez, constituíram pilares fundamentais da região na construção da hegemonia estadunidense. A RCEP inclui também os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) – Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Birmânia, Camboja, Lagos e Brunei – e os membros da “Anglosfera”, Austrália e Nova Zelândia.
No entanto, os EUA não ficaram muito atrás e promoveram recentemente um Quadro Econômico Indo-Pacífico (IPEF), assinado em conjunto com o Japão e onze outros países da Oceania e do Sudeste Asiático, excluindo a China. Trata-se, porém, de um esquema de cooperação regional, segundo os seus promotores, e não um acordo de livre comércio, além de também não contar com a institucionalidade, o compromisso e o volume de recursos que a China e a RCEP oferecem.
Nesse sentido, o presidente russo, Vladimir Putin, propôs a constituição de uma Grande Associação Eurasiática, sob a concepção de um projeto de civilização que impulsione a mudança da arquitetura política e econômica mundial. Em 2020, ampliando esta projeção eurasiática como ponto de partida para delinear a Nova Ordem Mundial, Pequim e Moscou aumentaram a sua parceria estratégica, apelando à “promoção paralela e coordenada da Grande Parceria Eurasiática e da BRI”. No início de 2022, ambas as potências orientais voltavam a estreitar seus laços diplomáticos e afirmavam ter uma “amizade sem limites”, em pleno recrudescimento das tensões mundiais, ao mesmo tempo que propunham o estabelecimento de princípios e normas para superar o caos atual e organizar uma nova ordem mundial.
Como parte do processo de construção e ascensão do multipolarismo, o BRICS vem se expandindo ao incorporar Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Além disso, em 2022 um acontecimento significativo pôde ser observado na cúpula da OCX que teve lugar em Samarcanda (Uzbequistão), onde o Irã foi incorporado e foram feitos progressos nos processos de cooperação de todos os países importantes do Oriente: China, Rússia, Índia, Turquia, Irã, Paquistão, Cazaquistão, Turquemenistão, Tajiquistão, Quirguistão, Azerbaidjão, Mongólia, Bielorrússia e o país anfitrião.
Este conjunto de processos apontados nos permite analisar tanto a crise de hegemonia e a fragmentação da ordem mundial como a formação de uma nova ordem que abordaremos a seguir.
A nova ordem mundial, entre a velha e a nova institucionalidade
A nova configuração multipolar do mapa de poder mundial tem sido expressa em níveis regionais, como os referentes à América Latina e o Caribe, Eurásia e Ásia-Pacífico, e em níveis globais. Neste último nível, destaca-se o papel da China, com as mencionadas instituições emergentes como BRI e AIIB em termos de infraestruturas e financiamento, aproveitando o enorme crescimento chinês das últimas décadas e os seus volumes excedentes de capital (financeiro e produtivo) num plano de interconexão territorial e geoeconômica baseado na Eurásia e com projeção planetária. Isto se articula com a liderança chinesa na diplomacia internacional, sob o seu lema de uma “comunidade de destino comum para a humanidade”, e com o seu poder material, em termos de capacidades econômicas, financeiras, tecnológicas e militares, que abordamos nos cadernos anteriores.
Ao mesmo tempo, a estratégia de política externa da China propõe um jogo duplo que mantém em vigor as instituições criadas pelos EUA no pós-guerra (como o FMI, o Banco Mundial ou a OMC), ao mesmo tempo que criou novas instituições apontadas. Um desenvolvimento importante nesse sentido foi a adesão da China à OMC em 2001 e sua reivindicação de ser considerada internacionalmente como uma economia de mercado, juntamente com seus esforços contínuos para melhorar seus níveis de participação naquela institucionalidade desenhada pelo Norte Global. Por exemplo, pode-se observar que nas últimas duas décadas, a política da China em relação ao FMI promoveu um organismo mais plural e menos dolarizado, pedindo reformas para aumentar a sua participação na quota-parte. O país asiático atingiu esse objetivo aumentando sua participação no conselho de administração de 3% para 6%, constituindo atualmente o terceiro país na lista de contribuintes, atrás dos Estados Unidos (17%) – que tem poder de veto na organização – e do Japão (6%). Graças a isso, participa em mais decisões dentro da organização e conseguiu incorporar o yuan à cesta de moedas das reservas do Fundo.
Por outro lado, na fase de desordem mundial (ou caos sistêmico) em que nos encontramos atualmente, em diálogo com o processo de aprofundamento de tendências em consequência da pandemia de Covid-19, a ordem mundial articula uma crescente multipolaridade relativa com traços da bipolaridade, já que sobressai a tensão interestatal EUA vs China, que condensa um conjunto de contradições sistêmicas do sistema mundial. As potências ocidentais buscam sustentar a velha ordem e as suas instituições por meio de organismos como o G-7, o G-20 e a OTAN. A atual administração estadunidense de Biden regressou ao Acordo de Paris contra as alterações climáticas (após a saída do seu país sob a presidência de Trump), tornando este tema um dos seus eixos de política externa, com um programa de transição energética sob o comando das suas transnacionais e fundos de investimento global. Também regressaram à Organização Mundial da Saúde (OMS), de grande relevância internacional em consequência da pandemia da Covid-19, e que havia sido boicotada por Trump. Da mesma forma, a administração Biden tem procurado relançar as negociações com o Irã, com vista a retomar o acordo nuclear como o alcançado durante a administração Obama.
Em suma, com a tentativa de retorno do multilateralismo globalista, os Estados Unidos se preparam para se mostrar novamente como um líder internacional com capacidade hegemônica, após a virada americanista-nacionalista de Trump, para se contrapor às forças multipolares comandadas pela China em sua aposta de instituir uma nova ordem mundial pluricêntrica. Mas não se trata de um mero jogo de vontades e decisões. Assistimos a mudanças estruturais que tornam impossível a restauração da velha ordem.
Implicações para a América Latina e o Caribe
Todo este processo de crise da ordem mundial e as lutas pela sua reconfiguração podem implicar oportunidades importantes para a nossa região latino-americana, mas também acarreta novos conflitos e ameaças à nossa soberania e aos nossos interesses territoriais.
Em termos de oportunidades, a rejeição esmagadora a ALCA na Cúpula de Mar del Plata em 2005, como resultado da articulação de diferentes forças sociais, foi a expressão de uma mudança de época que a região iria aproveitar com o desenvolvimento das iniciativas mencionadas: ALBA, Unasul e CELAC.
No entanto, o impulsionamento de processos de integração autônoma e o fortalecimento da região encontrou limitações e processos que geraram fragmentação e crise generalizada. Isto significou uma mudança drástica no mapa político regional e uma perda de peso relativo em nível mundial com o abrandamento do processo de integração regional em 2012-2013 e o seu desmantelamento definitivo em 2019 – envolvendo golpes de Estado e destituições.
Ressurgiram naquela ocasião outros mecanismos de integração regional aberta, semelhantes ao multilateralismo globalista centrado em Washington e à narrativa de abertura, como a Aliança do Pacífico, o Grupo de Lima e o Prosur. Paralelamente, houve uma guinada neoliberal periférica e conservadora que fortaleceu os vínculos com o unilateralismo estadunidense trumpiano e a sua agenda de “pau sem cenoura”. A região é uma expressão da dualidade na política externa regional, com tentativas dos governos locais de regressarem ao caminho do regionalismo aberto, num contexto global com mudanças na administração estadunidense e uma diferença fundamental: a presença chinesa na região. Apesar desta importante distinção com relação às diferenças de institucionalidade e das mediações que surgem, o que persiste na agenda da política externa estadunidense para a região é a sua pretensão hegemônica e o papel que desempenha na sua disputa com a China.
Nesse sentido, a China tem dado importância à CELAC, apoiando a organização com base nas cúpulas entre ambas as partes, mesmo apesar dos governos neoliberais-conservadores da região, dado o interesse da potência oriental em dialogar com a região como um bloco, o que considera proveitoso na busca de consolidar acordos e projeções conjuntas. Isto ocorre no contexto da aproximação gradual da China às economias da região, tanto em termos de ser o principal ou segundo parceiro comercial da maioria, como em termos de investimentos em diferentes áreas estratégicas como infraestruturas, energia, petróleo, dentre outros.
Atualmente, a “segunda onda” nacional-popular ou progressista que começou a surgir em 2019 na região não se consolidou totalmente e nem é tão coesa.
Por sua vez, a imposição do trumpista Claver Carone na condução do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2020, na busca de neutralizar a presença crescente da China na região, mostra como são os próprios estadunidenses que vulneram a institucionalidade multilateral construída pela potência do Norte, dado que era uma regra tácita que a condução deveria residir com um latino-americano. Atualmente, Biden tem procurado recuperar a liderança no seu suposto “quintal”, retomando as Cúpulas das Américas que Trump havia deixado de lado, embora a crise da ordem mundial também se expresse no sistema interamericano (lembremos aqui a cumplicidade da OEA e seu secretário Luis Almagro com o golpe na Bolívia, em 2019, e sua perda de legitimidade por isso).
Para concluir, destacam-se quatro estratégias de inserção internacional na região nos últimos anos: 1) aquela praticada por governos neoliberais tradicionais, baseados no regionalismo aberto e no multilateralismo globalista; 2) a reação conservadora nos grupos dominantes, subordinada ao unilateralismo centrado em Washington e à rejeição do multilateralismo; 3) o multilateralismo multipolar dos governos nacional-populares, tanto na sua vertente progressista (3a), visando a consolidação do Mercosul e a criação de novas instituições como a Unasul, como os bolivarianos (3b), mais radicais na sua perspectiva contra-hegemônica e anti-imperialista. A direção que a região tomará entre estas quatro grandes estratégias está em aberto.
A articulação com a China aparece cada vez mais nítida como uma opção para os governos da região, para além das suas orientações políticas e estratégicas. Seja apenas para aliviar as balanças de pagamentos e as necessidades de financiamento de setores de exportação de matérias-primas e infraestrutura necessária para isso, ou como aliado para a construção de uma nova ordem mundial, mais equitativa e democrática. Neste sentido, a crescente incorporação dos nossos países em iniciativas como o IFR e o AIIB pode limitar-se a reproduzir relações de dependência e assimetria em novas formas, consolidando estruturas produtivas primárias, ou pode ser abordada a partir de projetos soberanos de desenvolvimento, com visão e estratégia próprias a médio e longo prazo.