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Capitalismo ContemporâneoObservatório da Financeirização

Devastação acima de tudo, agronegócio acima de todos

A Amazônia em chamas é um dos exemplos mais reais e mórbidos das consequências das políticas de austeridade representadas pela PEC do Teto dos Gastos, que estabelece limites de gastos públicos dentro da inflação do ano anterior.

Brigada combate fogo em mata de Rondônia no início de setembro / OP Verde Brasil/17

Por Lauro Carvalho e André Cardoso

O ano é 2015. Um grande cineasta brasileiro decide fazer um filme futurista sobre seu país, talvez do ano de 2019. Primeira cena: Centro de São Paulo. Pessoas andando apressadas, outras feito zumbis frente a seus smartphones, trânsito caótico, entregadores de comida dos novos aplicativos ziguezagueando entre pedestres e carros, turistas, e claro, crianças de mãos dadas aos adultos, observando atentas a loucura do mundo e uma ligeira mudança no céu, que logo ficará nítida a todos.

Como num cenário apocalíptico, o dia se faz noite. Do céu, então, começa a cair uma chuva intensa, com gotas negras por toda a cidade. Seria o fim do mundo e finalmente Nostradamus acertou a profecia? Seria o início da Terceira Guerra Mundial, em que começaram explosões e fomos todos pegos de surpresa? Não. Trata-se do “Dia do Fogo”, um plano organizado por grandes fazendeiros e grileiros da região amazônica, no Norte do país, com o objetivo de queimar a floresta para expandir sua exploração e demostrar apoio ao governo Bolsonaro. A escuridão em São Paulo e a chuva densa era tão somente o resultado das grandes queimadas que assombrariam o mundo dias depois.

Seria mais um filme sobre a distopia humana, sobre o qual críticos e amantes do cinema diriam ser irreal e indicariam para ser categorizado na lista de filmes de ficção científica (SCI-FI). Estamos em 2019 e, embora a tentativa de descrever a realidade beire a ficção, nos deparamos com uma realidade tão devastadora que um documentário não daria tamanha conta de analisar a conjuntura brasileira desde o Golpe de 2016.

A Amazônia em chamas, o “pulmão do mundo” desfalecendo é um dos exemplos mais reais e mórbidos das consequências das políticas de austeridade representadas na Emenda do Teto dos Gastos – EC 95/2016, que estabelece teto dos gastos públicos dentro da inflação do ano anterior.

Estima-se que o Brasil é responsável por abrigar 20% de toda a biodiversidade mundial. Além de ter a maior diversidade de plantas e mamíferos do planeta. Não por acaso, a Constituição Federal de 1988 prevê, no Artigo 225, que é direito dos brasileiros a garantia da proteção ambiental através do “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo”.

Pela riqueza ambiental do país, esse direito passa a ter caráter fundamental não somente para o povo brasileiro, mas para todos os povos do mundo. Ele é garantido não apenas pela conservação e preservação do ecossistema, como também pela proteção ao desenvolvimento dos povos das florestas em sua exploração sustentável e por políticas de estímulo à produção e permanência do pequeno agricultor, com programas que fortaleçam a produção local e a soberania alimentar do país.

A Emenda do Teto dos Gastos é a ruptura dos avanços conquistados pela luta do povo garantidos na Constituição. Ela já impacta no desmonte das políticas ambientais e da agricultura camponesa, principais responsáveis pela preservação ambiental.

A necessidade do capitalismo global reiniciar um novo ciclo de acumulação para sair da crise prolongada é incompatível com esses direitos estabelecidos. As grandes corporações multinacionais, em busca de recompor seus lucros, amplia a exploração dos bens comuns da natureza almeja o controle total desses sem qualquer amarra institucional. Outra medida de ampliação dos lucros é o avanço do modelo do agronegócio, mantendo o domínio sobre vastas áreas do país, com o aumento contínuo da produção de commodities, como a soja, para abastecer o mercado externo.

Para isso, as políticas de Temer e agora Bolsonaro foram, em linha crescente, trocando as riquezas ambientais brasileiras por mais devastação. Ambos sustentados pelo agronegócio e os banqueiros, as reais forças políticas e econômicas que defendem esses planos – substituindo conservação e desenvolvimento nacional por latifundiários e entrega da Amazônia para estrangeiros, com mudanças nas leis para beneficiar o agronegócio no acesso à terra, regularizando terras griladas e reduzindo todo o corpo técnico dos principais institutos e agências de fiscalização ambiental (IBAMA e o INPE, entre outros). A queimada na Amazônia é muito significativa para entender essa relação, pois deriva de uma política ambiental que se choca com a Constituição.

É explícito que os cortes tendem a fragilizar ainda mais a fiscalização e o licenciamento em um setor que já tinha dificuldades, tendendo a mais devastação, aumentando as chances de desastres ambientais (como temos visto na redução de capacidade ao combate e manejo de fogo). Já em abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou o corte de 24% dos recursos do Ibama para 2019, o que na prática está inviabilizando a fiscalização do desmatamento na Amazônia.

O golpe e suas políticas, como a Emenda do Teto dos Gastos, também tem por objetivo fortalecer o modelo agrícola do agronegócio contra o modelo agroecológico, ao diminuir os recursos dos diversos programas para a agricultura camponesa, desde assistência técnica, crédito fundiário, compras de alimentos até a reforma agrária. Se o Orçamento para essa área já era mínimo e escasso, agora se torna nulo diante do poder do agronegócio. Se os cortes nos programas para a agricultura camponesa são facilmente observáveis, quando se trata do financiamento ao agronegócio a conversa é diferente, com o orçamento do plano Safra crescendo ano após ano. Outro resultado não tão divulgado e explícito, mas merecedor de um capítulo em um filme, é o recrudescimento da violência no campo, com os índices de assassinatos de lideranças crescendo de 2015 até hoje.

Os desafios são vários, mas devem ter como chave o entendimento de que nossa batalha (sim, temos nesse enredo de cinema uma luta entre contrários) se insere em um modelo contrário aos interesses dos banqueiros e o agronegócio, junto aos que querem entregar o nosso país a interesses externos. A defesa da soberania nacional e popular é central e traz consigo diversas bandeiras como cuidar do ecossistema brasileiro, que passa em grande medida por exigir o cumprimento da Constituição Federal. O meio ambiente deve ser pensado não somente no âmbito da conservação, mas fundamentalmente na capacidade de equilibrar desenvolvimento e soberania de um povo com a questão ambiental.

Integrar o crescimento econômico e resolução dos problemas sociais com o meio ambiente faz parte de escolhas políticas estratégicas. Privilegiar a agricultura camponesa, em contrapartida ao agronegócio, é uma destas escolhas. Os impactos das políticas do agronegócio atingem a todos, desde a destruição das florestas até o alimento que chega à mesa nas cidades, envenenado com novos agrotóxicos que são liberados a cada dia pelo governo.

O povo brasileiro é marcado por resistência e resiliência, tendo capacidade concreta de figurar entre os principais protagonistas de filmes, sejam eles distópicos ou não. Não são grandes heróis e heroínas com superpoderes vindos de outro planeta. São o acúmulo de fazeres populares, cultura, tecnologia, resistência e luta. Os bons filmes são assim, com protagonistas complexos, cheios de contradições, mas firmes em seus objetivos.

O futuro parece incerto, o céu traz sinais dessa incerteza, mas somos e temos ao nosso lado os melhores protagonistas, o povo brasileiro, para fazer um final digno de grandes premiações.

Este artigo íntegra uma série produzida a partir do Curso Economia do Golpe e Alternativas, organizado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Projeto Brasil Popular. Confira no Brasil de Fato!