Imunidade contra o cinismo
Por Olívia Carolino*
Um dos eixos de estudo do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social está relacionado ao capitalismo contemporâneo e sua crise estrutural, a partir de uma perspectiva do Sul Global de interesse da classe trabalhadora. Buscamos abordar a crise em suas múltiplas dimensões: econômica, política, social, ideológica e ambiental, até que em março de 2020 o CoronaChoque sacudiu e pautou a vida. Em meio à análises sobre o Imperialismo, cadeias globais de valor, financeirização, disputa hegemônica global, um vírus descontrolado, que não foi detido por conta da incompetência criminosa de governos, colocou limites concretos à reprodução capitalista. Em 2020 lançamos uma série de documentos nos marcos do dossiê n° 28, CoronaChoque: o vírus e o mundo, em que buscamos dar voz aos impactos das crises na vida dos povos, até chegarmos no estudo CoronaChoque e Patriarcado, mostrando o impacto sobre a vida das mulheres.
Em outros momentos de crise estrutural do capital o modo de produção capitalista reinventou seu padrão de acumulação, dando saltos de inovação tecnológica, alterando as formas de dominação e opressão dos povos e chegou até mesmo a deslocar o polo de exercício de hegemonia. A originalidade da atual crise está nos limites do capitalismo se reinventar e no fato de que os problemas de escala mundial que requerem cooperação global estão sendo tratados de forma fragmentada e descoordenada por cada país.
Outro ponto analisado pelo Instituto Tricontinental foi a diferença de postura entre países socialistas e capitalistas no enfrentamento ao vírus. A pandemia do coronavírus exacerbou e elucidou o abismo entre Estados socialistas e capitalistas; no primeiro caso, a preocupação com a vida humana acima do lucro deu a linha para a ação estatal e civil e resultou em menores taxas de infecção e mortalidade. Já os Estados capitalistas, em sua maioria, negaram a gravidade do problema e permitiram que o setor privado lucrasse às custas da saúde pública. Foi assim que terminamos 2020 com a certeza de que teríamos dificuldade de respirar se não acreditássemos em outro mundo.
Nesse sentido, convidamos a respirar ares de transformação neste novo ano que se inicia, a partir de uma perspectiva crítica de conceber a emergência de um futuro multipolar diante da erosão do controle dos EUA com o dossiê n° 36, Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar, que explora o surgimento de uma nova guerra fria imposta pelos Estados Unidos à China e as formas de guerra híbrida que têm sido utilizadas como parte desse novo cenário estratégico.
Também evocamos a perspectiva utópica do direito de sonhar com o futuro com nossa última Carta Semanal do ano passado, O futuro será apenas o que investirmos nele. Com base na carta do 75º aniversário da Organização das Nações Unidas (ONU), ressaltamos a necessidade de se evitar o “flagelo da guerra”, “reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana”, “manter a integridade do direito internacional” e “promover o progresso social e melhores padrões de vida como meio de ampliar a experiência de liberdade”. O futuro será o que fizermos hoje em defesa da vida, dos direitos e da paz; por isso estamos atentos às políticas populares de solidariedade que estão sendo experimentadas em todo o mundo, com a concepção de que o povo apenas se manterá vivo a partir de sua própria organização e protagonismo. Está nascendo algo novo nos marcos da solidariedade e da relação da classe trabalhadora com o trabalho, o que faz com que nossos pesquisadores estejam inseridos na militância popular para captar esses novos desafios e acúmulos.
Além do mais, estamos atentos às grandes ameaças ao planeta. Noam Chomsky e Vijay Prashad pontuaram que a aniquilação nuclear, a catástrofe climática e a destruição do contrato social são as três grandes ameaças que devemos enfrentar em 2021. A aniquilação nuclear e a extinção por catástrofe climática seriam ameaças gêmeas ao planeta, enquanto para as vítimas do ataque neoliberal que assolou a geração passada, os problemas de curto prazo para sustentar sua mera existência deslocam questões fundamentais sobre o destino de nossos filhos e netos. O cinismo dos governantes dos países ricos em relação aos protocolos científicos básicos divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por organizações científicas revela o caráter de classe da necropolítica e da postura facistizante que concebe um planeta para poucos. Vivemos num mundo em que o vírus é planetário e o enfrentamento a ele segue uma política de “nacionalismo vacinal”, armazenando potenciais imunizantes ante uma política que vise criar uma “vacina popular”. Para o bem da humanidade, seria prudente suspender as regras de propriedade intelectual e desenvolver um procedimento para criar vacinas universais para todos. Um internacionalismo robusto é necessário para dar atenção adequada e imediata aos perigos de extinção, seja pela guerra nuclear, catástrofe climática ou pelo colapso social.
Em 1859, Friedrich Engels afirmou que a História frequentemente se move em saltos, solavancos e em zigue-zague. Estamos em um momento em que as tarefas do nosso tempo histórico são assustadoras e não podem ser adiadas. Por isso, nessa mensagem de início de ano, queremos convidá-los a imunizar-se contra o cinismo por meio do pensamento crítico – que passa por enxergar para além do horizonte e ver que tipo de sociedade os seres humanos estão construindo, sugerindo as possibilidades de uma vida pós-pandêmica e pós-capitalista. Para nós, esse novo horizonte não é algo que está a nossa espera; ele é criado no presente por meio das lutas da classe trabalhadora e do campesinato contra a grande privação material e pelos sonhos de um mundo fora desta vida de injustiça e miséria. Convidamos você para acompanhar nosso trabalho e esperançar conosco um outro mundo possível.
* Olívia Carolino é economista e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.