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Isso não é uma escola

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.

Por Carolina Cechella Philippi

Isso não é uma escola. Foi esse o nome dado à instalação pensada por Júlia Di Dio e exposta no festival Quilombo Groove¹. Seu objetivo nada mais foi do que incitar reflexões a partir do acumulado de trajetórias inconclusas na busca por um modelo educacional que melhor se adeque à realidade brasileira. Ainda nessa instalação se vê uma carteira “tipicamente” escolar ocupada por itens que disputam narrativas em torno das possibilidades e alcances da instituição escola. São eles, por exemplo, cadernos, livros e atlas precariamente manuseados. São presentes as manchas de tinta – ou talvez de sangue? – em partes da carteira e da janela que a escolta. Isso – a autora reitera – não é uma escola.

O tom de crítica ferrenho aos modelos em disputa na lógica de escolarização nacional permanece necessário e pungente. Porém, olhar essa instalação hoje – mais especificamente no dia 17 de junho de 2020 – faz pensar no novo rol de significados conflitantes que recentemente se tornou tema na educação brasileira e mundial.

Não surpreendentemente, a frase “isso não é uma escola” foi novamente revista. Dessa vez, no formato de um meme². Nele, retomou-se uma da série de pinturas composta por René Magritte entre 1928 e 1929 de título “A Traição das Imagens”. A mais famosa delas traz o seguinte título: “ceci n ́est pas une pipe” ou “isso não é um cachimbo”. A aparente contradição entre texto e imagem faz pensar as possibilidades e a potência da representação da realidade, sobretudo pela arte. A obra de Magritte, pois, serve como estímulo à reflexão acerca do papel da arte, já que ela nada mais é do que uma representação da realidade (ARTE E ARTISTAS, 2017, s/p).

“Isso não é uma escola” – Júlia Di Dio.

 

Uma vez na condição de meme, a pintura de Magritte ganhou um complemento que a tipifica como parte de uma especificidade da atualidade. Nele, ao lado da reprodução da obra “ceci n ́est pas une pipe”, se contrasta outra tela na qual se lê “ceci n ́est pas une école”. Isso, numa tradução literal, nada mais é o do que a taxativa afirmação de que “isso não é uma escola”. Não por acaso, a frase vem logo abaixo da ilustração de um notebook. Para professores e professoras, poucas coisas são mais sintomáticas dos tempos pandêmicos do que essa releitura.

Meme “ceci n ́est pas une école”.

 

Também sintomática foi a resposta dada por Magritte ao ser perguntando sobre o sentido da obra: “quem pode fumar o cachimbo de um dos meus quadros? Ninguém”. Na ocasião, a provocação do pintor chegou mesmo a mobilizar as ponderações do filósofo Michel Foucault, que se perguntou sobre as possíveis formas de acesso à realidade. Ou, em outros termos, sobre o que nos dizem as palavras a respeito das coisas (GARCÍA, 2020, s/p). É esse efeito que o jornalista Sérgio Gomez Garcia destacou em matéria publicada no jornal El Diario. Para ele:

[…] a escola do texto […] nos fala da mesma maneira que nos falou o cachimbo. Nos conta suas diferenças com o computador, com a aula virtual, com a improvisada educação a distância desses dias. Parece rogar de longe que não nos esqueçamos dela, a tenhamos presentes nas decisões que tomamos esses dias sobre como continuar com o curso, ocupando ou não suas aulas. É uma escola ausente que denuncia um esquecimento³ (GARCÍA, 2020, s/p).

A educação a distância que se improvisa nesses dias, conforme a supracitada reportagem, diz respeito a uma configuração social e sanitária muito específica: a pandemia da COVID – 19. É a ela que se credita o enclausuramento compulsório de professores e alunos e o contato forçado pela via de meios digitais. É, pois, nesse contexto que a afirmativa categórica de que “isso não é uma escola” ganha potência e força. Catapultada pelo isolamento social e pelo alto grau de contágio de um vírus cuja variação ainda é pouco conhecida, a alegação de que um computador não substitui em nada o espaço e a socialização escolar ganha tônus.

É da ausência dessa escola, ou das ausências que sua falta alimenta, que a professora francesa Réjean Bergeron se referiu em matéria publicada na mesma época no jornal Le Devoir. É também ela que afirma de maneira tácita:

[…] Eu vou fazer a vocês uma confissão: todo esse material de informática composto de plástico, vidro e metal não tem alma [grifo meu]. Sentimento algum, emoção alguma é capaz de emergir desses átomos. O computador pode bem ditar um amontoado de procedimentos racionais, mas jamais acompanhará os estudantes em seu percurso escolar, social e humano como podem fazer os professores e professoras quando eles estão em uma relação estreita, real, física e empática com eles4 (BERGERON, 2020, s/p).

Para a docente, tanto o computador não é uma escola que ele é incapaz de fornecer a seus alunos e alunas o acompanhamento empático que o processo educativo torna necessário. São também da professora francesa as palavras de questionamento acerca do real aproveitamento que estudantes de todos os níveis de ensino podem ter em meio a um crescente cenário de ansiedade, medo, angústia e fragilidade. Para Réjane Bergeron, pois, é necessário repensar não somente o potencial educativo do formato a distância compulsoriamente adotado, mas a humanidade – ou a falta dela – que existe em exigir que crianças e adolescentes apresentem o mesmo rendimento de outrora.

Chegando no Brasil, nota-se que não são só dos professores as preocupações acerca das não conformidades do modelo educativo que se propõe em tempos pandêmicos. Tanto o é que alunos e alunas da Escola Técnica Estadual Santa Cruz5 lançaram um manifesto na plataforma Change. Atualmente, ele já conta com 262 assinaturas. Os argumentos são os seguintes:

[…] Por ser um sistema recente, não possuímos acesso a informações precisas, nem mesmas vindo de professores e até coordenadores. Além de nós, alunos, os professores possuem uma demanda grande de obrigações para cumprir, como a correção de avaliações, fora o suporte aos estudantes.
A socialização é algo primordial, apesar que o Covid-19 não permite [sic] [grifo meu]. Mas um aluno, com cerca de 25 matérias, assustado com o que está acontecendo no mundo, sem estruturas mínimas (físicas e mentais), realmente conseguirá dar conta de algo que não estava acostumado e com pouco apoio? (ETESC CONTRA O SISTEMA EAD, 2020, s/p).

Fica a pergunta: um aluno ou aluna “assustado com o que está acontecendo no mundo” tem as reais e efetivas condições necessárias para o processo de ensino e aprendizagem? Ademais, os estudantes levantaram ainda a desigualdade no acesso à rede e às informações. E, quanto a isso, são enfáticos:

[…] Pois é, essa é a nossa realidade. Se não é a sua, olhe em sua volta e pense que alguém neste momento está passando muita dificuldade para poder abrir apenas um PDF. A acessibilidade é algo que não existe neste momento e reforma não irá ajudar, tendo em vista que o problema é muito maior do que a construção de um simples site (Ibidem).

O diagnóstico é não somente interessante mas preciso no sentido de que os problemas lançados pelo distanciamento forçado são maiores que a construção de um “simples site”. As dificuldades, de fato, se iniciam até mesmo antes da tentativa de abertura de um documento no formato PDF que, conforme a carta manifesto, pode por si só já ser problemática. O argumento nela mobilizado vai no sentido de que, ainda que de maneira insuficiente, o ensino presencial tal qual era concebido garantia um mínimo de igualdade de acesso. Uma vez sequestrada a possibilidade de comungar o espaço escolar, o que resta?

Também para eles, “isso não é uma escola”. A obra de René Magritte, outrora responsável por questionar as potencialidades representativas da arte e por instigar em Michel Foucalt problematizações acerca da relação entre as palavras e as coisas, é agora pano de fundo de um questionamento visceral acerca das especificidades do ambiente escolar. Tem-se, portanto, clara a noção de que um computador e um acesso a internet são insuficientes para a configuração de um ambiente educativo. Mas se isso não é uma escola, o que, afinal, é uma escola?

 

E isso é uma escola?

Já se vão vinte anos desde que Moacir Gadotti (2000, p. 3 – 10) escreveu o texto “Perspectivas atuais da Educação”. A leitura do artigo assim nomeado dá um arrazoado das potencialidades e receios de pensar os processos educativos no ano 2000. Para além da sensação de que se era feliz e não sabia, ficam as impressões sobre o que eram as elucubrações educativas do período. Já naquele momento, Gadotti apresentou a “aprendizagem a distância […] [como] a grande novidade educacional” (Idem, p. 5) para o início do novo milênio. Embora no momento ainda não fosse possível auferir o impacto dessas novas instâncias comunicativas, o autor apresentou argumentos dos:

[…] que defendem a informatização da educação, [que] sustentam [ser] preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar [grifo do autor] em vez de desenvolver a memória. […] A função da escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar [grifo do autor] criticamente (GADOTTI, 2000, p. 5).

Ainda nesse texto, o autor fez uma diferenciação pungente responsável pelo destaque da função precípua da escola: entre a difusão de informação e de conhecimentos. A informação, pois, deveria ser burilada em espaços específicos para construção dos saberes e aprendizagens. É, conforme suas palavras, isso que fornece a especificidade dos espaços educativos, formais ou não. Para ele, o que as novas tecnologias aplicadas à educação trariam seria a criação de novos espaços de conhecimento (GADOTTI, 2000, p. 7). Em suas perspectivas, listadas no alvorecer no novo século, cabe à escola na sociedade informacional:

[…] organizar um movimento global de renovação cultural, aproveitando-se de toda a riqueza de informações. […] Na sociedade da informação, a escola deve servir de bússola [grifo do autor] para navegar nesse mar de conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações ‘úteis’ para a competitividade (GADOTTI, 2000, p. 8).

Vinte anos depois, é difícil informar se a instituição escolar permanece servindo – ou se algum dia serviu – de bússola frente ao oceano informacional embalado pela ampliação do acesso à internet. Todavia, o que é seguro informar é que a reordenação do espaço urbano e a total reconfiguração da dinâmica social causada pela pandemia da COVID 19 realocou, novamente, a escola e a sala de aula. É nesse contexto pandêmico que Inês Dussel (2020, s/p), ao ser perguntada sobre a definição do próprio escolar, entende ser a escola um tipo específico de organização no tempo, um trabalho a ser construído numa relação com o saber. Embora – e para isso a autora também retomou o meme referente à obra de René Magritte – nos dias atuais ela possa ter a forma de um computador, ela não o é. É, antes disso, um espaço do comum que tem a ver com um certo tipo de trabalho específico com o conhecimento.

Há, porém, os remanejos típicos dos tempos de quarentena. Ainda nas palavras de Dussel (Ibidem), “não podemos agora suspender-nos para o tempo da escola”. Logo, sua definição como um tempo e espaço outro se encontra em crise. O que se vê é uma domestização da escola, já que ela passou a ocupar ostensivamente os espaços domésticos e de trabalho. E também devido a essas novas demandas, há muito mais trabalho no enquadramento da ação pedagógica. O que se vê, também para ela, é uma inevitável suspensão do tempo escolar e uma consequente confusão com o tempo doméstico.

Não obstante, os nós tecidos no interior da lógica e da instituição escolar se redesenharam. Um deles é que a sala de aula, em sua simplicidade no acesso, teoricamente tende a oferecer algumas condições para a igualdade. Elas, ainda que não sejam suficientes, mostraram-se indispensáveis (DUSSEL, Op. Cit.). Vale, a esse respeito, retomar a carta manifesto dos alunos e alunas da ETESC na qual se reclama da dificuldade, em alguns casos, de abrir um simples documento em formato PDF. O que, então, se dirá acerca dos contratempos enfrentados para que se acompanhassem reuniões via plataformas tais quais Zoom e Google Meets?

Há, para além disso, um segundo nó situado num jogo de visibilidade e invisibilidade distinto daquele operado em sala de aula. A escola, pois, ainda deixava ao aluno algum espaço para seus esconderijos e intempéries. A vigilância, uma vez ligados os microfones e câmeras das aulas online, é bem mais inconteste. Para além disso, a sincronia e simultaneidade do aprendizado tal qual estabelecido em sala de aula também foram abaladas, já que é impossível ter o controle exato do momento que todos os estudantes acessarão os conteúdos enviados. Perdeu-se, então, a coletividade típica dos processos de aprendizagem escolarizados (DUSSEL, Op. Cit.).

A reordenação do tempo escolar causada pelo cenário pandêmico foi também abordada por Diana Vidal (2020) em entrevista dada ao Jornal da Universidade de São Paulo (USP). Para nuançar as relações entre tempo escolar e tempo social, retomou alguns aspectos das reformas educacionais de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira na então capital federal, o Rio de Janeiro, entre 1927 e 1935. Foi nesse cenário que, já em 1928, Fernando de Azevedo propôs uma alteração quantitativa e qualitativa nos tempos da escola primária carioca. Eles se materializaram, dentre outras coisas, por meio da alteração de horários de entrada, saída e recreio, e também pela implantação de dispositivos de controle do ponto.

Tais remodelações, na época, não foram bem recebidas de pronto. Apresentaram-se argumentos recalcitrantes, listando sobretudo a necessidade de crianças de classes sociais menos favorecidas efetuarem trabalhos diversos para auxílio da família no espaço doméstico. Foram também comuns as argumentações em torno da impossibilidade da entrada no horário previsto pela manhã devido à necessidade de um desjejum e aos enormes deslocamentos que seriam impostos a alunos e professoras. Vale, nesse sentido, destacar o movimento feito por Vidal: ao problematizar os embates entre tempo escolar e social, destacou as representações em luta para que a escola proposta pela administração pública se tornasse hegemônica no início do século XX. Embora, na atualidade, as relações entre escola e sociedade tenham se remodelado, permanecem as lutas evidenciadas pelo conflito entre o governo da casa e o governo da escola, mesmo após um século de obrigatoriedade escolar (Ibidem).

Nesse sentido, as disputas de significados endossadas e agigantadas pelo isolamento social imposto em meio à pandemia da COVID 19 são entendidas pela autora como mais um rol dessas disputas que, invariavelmente, reverberarão na instituição escolar após findado o período de quarentena. Em outros termos:

O acesso diferenciado de grupos sociais às ferramentas on-line e à internet, o descompasso entre as aprendizagens no período de isolamento decorrente de várias razões, as necessidades de adequar os horários de entrada e saída das jornadas diárias em função de maior isolamento no transporte público, as atividades de reforço escolar em período escolar e extraescolar, a alteração das datas das férias escolares e do ano letivo: todas essas questões, associadas à maior familiaridade com estratégias de educação a distância, por professores, alunos e pais, e as táticas criadas no seio das famílias para favorecer situações de ensino serão base de argumentos mobilizados nas disputas em torno da escola [grifo meu] […] por parte dos diferentes grupos sociais, após o fim da pandemia (VIDAL, 2020, s/p).

Tais questões e reformulações se encarregarão de evidenciar a “relação sempre tensa e variada entre tempo social e tempo escolar, e urgindo que tenhamos cuidado em assegurar que novas configurações não impliquem mais exclusão social (VIDAL, 2020, s/p) ”. Assim sendo, os tempos pandêmicos não inauguraram as conflitantes relações entre o tempo e espaço escolar e a sociedade já que elas se reconfiguram de acordo com cenários políticos e sociais específicos. Nesse sentido, apesar da atipicidade da situação atual, esse não foi o primeiro e nem será o último momento de questionamento das estruturas fundantes da instituição escolar tal qual é conhecida atualmente.

Os vinte anos que separam os textos de Moacir Gadotti das falas de Inês Dussel e Diana Vidal marcam alguns distanciamentos em suas preocupações a respeito do próprio escolar. Enquanto, para o primeiro, pesavam as inseguranças em torno do oceano informacional que se apresentava no horizonte, as professoras destacaram as reconfigurações do tempo escolar que foram, sim, catapultadas pelo isolamento social, mas cujos ingredientes já se faziam presentes na estrutura escolar. Em outros termos, apesar da total reordenação da rotina escolar e da invasão do espaço doméstico por uma infinidade de aulas e reuniões, os nós a respeito dos quesitos avaliativos, do controle discente e da vigilância do docente já estavam desenhados. A pandemia não os criou, apenas os evidenciou.

À enfática colocação em forma de meme – “isso não é uma escola” – soma-se a questão: e isso é uma escola? Mais que estipular uma resposta evidente, o questionamento serve de provocação. Embora a domestização da escola (DUSSEL, 2020, s/p) e as alterações qualitativas e quantitativas do tempo escolar em sua relação com o tempo social (VIDAL, 2020, s/p) a tenham tirado da fôrma pela qual as últimas gerações a conheceram, a forma escolar não é eterna e nem imutável. Vale, portanto, mais que o esforço em caracterizar o que é ou não é “típico” da escolarização já conhecida, o exercício de constante questionamento a respeito das formas, formatos e sujeitos da escola ao longo da história (DUSSEL; VIDAL, Op. Cit.).

 

O que será uma escola?

A ansiedade e a insegurança a respeito do porvir parecem sintomas quase tão pandêmicos desses tempos quanto o próprio vírus em si. Elas, porém, também já espreitavam as recentes configurações sociais, políticas e econômicas, sendo somente catapultadas pela COVID-19. Todavia, é inevitável a pergunta: o que será uma escola?

Para Carolina Catini, as questões impostas na exceção do confinamento são, a priori, a respeito dos meios para o educar. Não por acaso, muitos dos debates alavancados pelo cenário pré-apocalíptico dizem respeito ao ensino remoto e às possíveis metodologias para a educação a distância. Segundo suas palavras, “a pandemia e o confinamento aceleraram um processo que já estava em curso de introdução mais intensiva de tecnologia na relação educativa” (CATINI, 2020, s/p). As consequências disso são uma acelerada degradação das condições de trabalho docente e o foco cada vez maior nos processos avaliativos. A respeito do primeiro, destaca que “a degradação do trabalho docente compete diretamente para a impossibilidade de que a relação pedagógica possa conter traços da experiência formativa” (Ibidem), ao passo que a busca incessante por resultados e índices torna os processos avaliativos constantes, mas a educação passa a em nada alterar as condições objetivas de educação ou da vida (CATINI, Op. Cit.). Isso acarretaria num esvaziamento da experiência formativa e uma confusão e respeito de seus significados. Ainda nessa configuração, “a avaliação é real, a educação fictícia [grifo meu]” (Ibidem).

Por outro lado, é necessário deixar evidenciada a direção da crítica, já que:

[…] De maneira alguma apresentar resistência ao presente processo de inserção massiva de tecnologia significa negar a necessidade de se mudar a educação. Não se trata também se uma crítica da tecnologia em si, mas da aceleração de processos que ela engendra no contexto que vivemos, aprofundadas pelas possibilidades da tecnologia ser usada pelos mecanismos de vigilância e pelo recrudescimento do controle social [grifo meu] (CATINI, 2020, s/p).

Ainda nessa direção, caberia “confrontar mais um avanço da subordinação do trabalho ao capital e […] buscar coletivamente formas de ampliar o controle do processo de trabalho, bem como dos meios de produção do ensino por parte de trabalhadores e trabalhadoras (CATINI, Op. Cit.). É então preciso:

[…] atentar para práticas eliminatórias das quais temos sido cúmplices e suas consequências; assim como para a capacidade da tecnologia subjugar o processo educativo à objetividade das máquinas, num momento em que todo nosso esforço deve se voltar para impedir que a educação seja mais um instrumento da produção incessante de barbárie [grifo meu] (CATINI, 2020, s/p).

Preocupam-na, então, o esvaziamento dos sentidos do educar e a corroboração que isso pode trazer para uma produção da barbárie. Essa produção, por sua vez, também seria endossada pela crescente precarização do trabalho dos professores e professoras em nome de uma maior produtividade e da manutenção dos mecanismos avaliativos incólumes. Esse cenário tal qual assinalado por Carolina Catini, também gerou inquietações ao professor português Antônio Nóvoa (2020, s/p). Também para ele, o próprio escolar reside especialmente na partilha de experiências. A escola, então, caracterizar-se-ia pela via de um trabalho em comum por meio de lógicas de cooperação entre alunos e professores.

São também dele as ressalvas acerca das configurações do “novo normal” que se afigura já que, embora a instituição escolar deva manter-se central e atuante para evidenciar sua necessidade e importância, ela deve tomar cuidados com a excessiva permeabilidade às novas configurações que lhe são inseridas pelo contexto de pandemia.

Em outras palavras, as reordenações do tempo e do espaço escolar causadas pelo isolamento social devem ser temporárias, não suplantando as lógicas escolares anteriormente ordenadas.

Porém, o centro do que é próprio da escolarização seria, especificamente, a presença (NÓVOA, Op. Cit.). E ela, por sua vez, pode ser não mais que emulada pelas tecnologias educativas tão comumente empregadas em meio ao isolamento social. Não há, portanto, hipótese de que plataformas tais quais Google Meets ou Zoom supram a necessidade de aproximação pedagógica e afetiva que se configuraram, nas últimas décadas, em meio a um espaço e um tempo que compõem dinâmicas próprias da escolarização.

A pergunta a ser feita talvez seja o quê, efetivamente, será uma escola quando passado o momento de isolamento social e o medo que ele legará. Em que pesem as ponderações sobre a conformação histórica do espaço escolar já levantadas por Inês Dussel e Diana Vidal, as demandas do momento presente ganham voz em memes, manifestos e depoimentos de alunos e professores. O formato remoto aplicado forçadamente evidenciou as distâncias que ele engendra. Por outro lado, o distanciamento pedagógico deu também os contornos da relativa isonomia de acesso que a sala de aula supostamente fornecia. A esse respeito, é necessário destacar que, mais que a preocupação a respeito da forma e da reconfiguração da escola acarretada pela disseminação da COVID 19, cabe entender os nós que são alimentados por suas reconfigurações e o quanto eles desumanizam o processo de ensino e aprendizagem. Isso porque um dos poucos consensos a respeito do que se tem visto é a falta que faz a presença (NÓVOA, Op. Cit.), seja ela dos professores, dos colegas ou do espaço.

Plataformas educacionais não são presença. Logo, isso não é uma escola, e continuará não sendo. No entanto, nada será como antes.

Notas:

¹ Festival realizado em Bauru no ano de 2018.
² O termo, comum para usuários da rede, faz referência a tudo cujo uso se repita largamente em páginas de internet. Pode, pois, assumir forma de hashtag, hiperlink, vídeos ou frases.
³ Texto originalmente publicado em espanhol, tendo sido traduzido pela autora desse ensaio. O texto originalmente é apresentado da seguinte forma: “ […] La escuela del texto, la ‘école’, nos habla de la misma manera que nos habló la pipa. Nos cuenta sus diferencias con el ordenador, con la clase virtual, con la improvisada educación a distancia de estos días. Parece rogarnos de lejos que no nos olvidemos de ella, que la tengamos presente en las decisiones que tomemos estos días sobre cómo continuar el curso, ocupando o no sus aulas. Es una escuela ausente que denuncia un olvido”.
4. No francês, o texto originalmente se apresenta da seguinte forma: “[…] car je vais vous faire une confidence : tout ce matériel informatique composé de plastique, de verre et de métaux est sans âme. Aucun sentiment, aucune émotion n’est en mesure de se dégager de ce tas d’atomes. L’ordinateur peut bien dicter un ensemble de procédures des plus rationnelles, mais jamais il n’accompagnera les étudiants et les étudiantes dans leur parcours scolaire, social et humain comme peuvent le faire les enseignants et les enseignantes lorsqu’ils sont en relation étroite, réelle, physique et empathique avec eux”. Tradução da
autora.
5. 6 A Escola Técnica Estadual Santa Cruz (ETESC) é uma instituição estadual de ensino público e gratuito da rede FAETEC construída a partir das ruínas do antigo matadouro do bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro (A INSTITUIÇÃO, 2020, s/p).

 

Referências:

A Instituição. ETESC. Disponível em http://www.etesc.g12.br/. Acesso 19 de junho de 2020.

A Traição das Imagens de René Magritte (Isto Não é um Cachimbo). Arte & Artistas. 8 de outubro de 2017. Disponível em https://arteeartistas.com.br/a-traicao-das-imagens-de-rene-magritte/. Acesso 18 de junho de 2020. Acesso 18 de junho de 2020.

BERGERON Réjean. Ceci n’est pas une école. Le Devoir. 1 de abril de 2020. Disponível em https://www.ledevoir.com/opinion/libre-opinion/576162/ceci-n-est-pas-une-ecole. Acesso 18 de junho de 2020.

CATINI, Carolina. O trabalho de educar numa sociedade sem futuro. Blog da Boitempo. 5 de junho de 2020. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2020/06/05/o-trabalho-de-educar-numa-sociedade-sem-futuro/. Acesso 25 de junho de 2020.

DI DIO, Júlia. Isso não é uma escola. Quilombo Groove. Disponível em https://quilombogroove.com.br/speaker/isso-nao-e-uma-escola/. Acesso 18 de junho de 2020.

DUSSEL, Inês. Isto não é uma escola ou é? Reflexões sobre o escolar em tempos de pandemia. Anped Nacional. Youtube. 29 de abril de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?time_continue=2303&v=7qRxFsuN4AA&feature=emb_title. Acesso 23 de junho de 2020.

ETESC contra o sistema EAD. Isso não é uma escola. Change. Org. Disponível emhttps://www.change.org/p/dire%C3%A7%C3%A3o-da-etesc-etesc-contra-o-sistema- ead-isso-n%C3%A3o-%C3%A9-uma-escola. Acesso 19 de junho de 2020.

GARCÍA, Sérgio Goméz. Ceci n ́est pas une école. El. Diário. 10 de abril de 2020. Disponível em https://www.eldiario.es/aragon/elprismatico/Ceci-nest-pas-une-ecole_6_1015308462.html. Acesso 18 de junho de 2020.

GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em Perspectiva., São Paulo, v.14, n.2, p.03-11, Junho 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 19 de junho de 2020.

NÓVOA, Antônio. A Educação em tempos de pandemia (Covid-19 / Coronavírus), 06/04/2020. Sindicato dos Professores Municipais de Novo Hamburgo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FNF7i_DpfIo. Acesso 26 de junho de 2020.

VIDAL, Diana Gonçalves. “Zoom meeting” e tempo escolar. Jornal da USP. 7 de maio de 2020. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/zoom-meeting-e-tempo-escolar/. Acesso 25 de junho de 2020.