Malditos cabos de cobre!
Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.
Por Vinicius Coppi
“Entendo que a situação está complicada
Mas aqui somos do Hospital
Assim não conseguimos atender!”
Esse é o aviso que coloquei em frente ao quadro de energia do local que trabalho depois de roubarem os fios de cobre, pela terceira semana seguida, deixando-nos sem eletricidade.
Trabalho na parte administrativa de um Hospital Público, mais especificamente no atendimento ambulatorial. Desde meados de março, com a já tardia oficialização da pandemia pela OMS, as consultas que preenchiam nossa recheada agenda vêm sendo sistematicamente desmarcadas, mantendo apenas os casos de maior gravidade, os quais desmarcar, ou mesmo prorrogar, não são uma opção.
Os quarenta, as vezes cinquenta pacientes que eram atendidos diariamente, agora não passam de quatro, cinco. O “zero à direita”, ao contrário de seu irmão mais famoso, revela a crueza de sua relevância.
“Vá em algum banco privado!
Têm aos montes por aí!”
Essas linhas, que expressam uma indignação para muito além do roubo dos cabos, apesar de minha vontade, não entraram no aviso. Caso entrassem, gerariam um constrangimento, um desconforto. Não a mim, mas aos colegas de trabalho, à chefia, aos pedestres que as vissem. Um constrangimento que talvez a baixa hierarquia de meu cargo não suportasse.
Isso não cabe ao decoro de um Assistente Administrativo. Aqui, neste ensaio, menos exposto ao brilho da canonizada propriedade privada, posso expeli-las.
Essas linhas, não eleitas, que divergem das redigidas no aviso, buscam o quadro mais amplo. Não o quadro de energia do ambulatório, agora sem suas entranhas de cobre, mas a figura da qual as molduras cercam a todos nós, o quadro social.Elas miram o todo, não seus reflexos turvos. O reflexo, quando incômodo, pode ser coberto, embaçado, até redirecionado, mas nada disso perturba a imagem que o gera. Esta intrépida imagem, que reflete as coisas mais terríveis, das quais nossos sensíveis olhos se afugentam, permanece. Assombrosa.
O que chamamos de “fazer justiça”, ou melhor, a punição de “crimes” – como um roubo de fios de cobre – tem pouco efeito prático. O bater do martelo das condenações penais não faz com que quadros de energias sejam automaticamente reparados. O fechar das algemas em pulsos criminosos também não sacia a motivação do roubo.
Na prática, essa “justiça” atende apenas aos anseios do exemplo, do castigo à perturbação da ordem. É a criminalização da pobreza embalada em leis e códigos judiciais. Tratamos sintomas como causas, reflexos como fontes.
Alguns diriam que devemos aparar essas arestas que deformam o equilíbrio social. Nada deve abalar o perfeito andamento de nossa sociedade civil liberal. Uns têm, outros não. Ou melhor, poucos têm, muitos não. Se esses muitos, que não têm, quiserem passar a ter, precisam conquistar, batalhar, fazer por merecer, sofrer (“nada vem de graça”).
Pois então trabalhemos! Esforcemo-nos! Esse desavisado que rouba cabos de cobre não entende isso?
Preciso reformular meu aviso:
“Caro cidadão, não faça isso, não precisa disso!
Trabalhe, procure um emprego!
Não desista! Você conseguirá o que quer!
Enquanto isso, não roube de quem já conquistou!”
Pronto. Certamente agora este desviado irá se recompor e, em breve, terá seu sustento. Depende só dele. Algo que ele conquistará por si próprio, assim como todos os outros que vivem dentro da lei!
A dezena de milhão de desempregados que o Brasil possui, já anteriores à pandemia, precisam seguir pelo mesmo caminho. Têm que trabalhar, acreditar que vai dar certo. Têm que acreditar! Isso é muito importante. Se não acreditarmos não fazemos nada!
As outras dezenas de milhões que trabalham na informalidade (sem quaisquer direitos trabalhistas), o contingente terceirizado, os sub-remunerados, os que já desistiram de procurar alguma ocupação. Todos esses precisam…. É…. Acreditar!
Devem entulhar seus estômagos famintos com promessas redentoras! Que o som do despertador na madrugada, convocando ao serviço, seja mais estridente que o choro dos filhos. Que o transporte público, cheio, comprima seus sentimentos – os bons e os maus. Não há tempo para eles.
Devemos esgotar nossas energias, corroer nossos corpos.
O batente, ou a procura dele, aguarda.
Basta. Usar ironia cansa.
Deparar-se com esse discurso despido de qualquer ironia mas trajado de convicção e prepotência, é ainda pior. Revolta, consome.
Cinicamente, varrem toda a história de exploração e opressão de nossa sociedade para debaixo do florido tapete da meritocracia. Esse tapete curto, esfarrapado, cheio de furos.
A História do Brasil embrulha o mais resiliente dos estômagos. Genocídio, colonização, escravização, concentração fundiária, mercantilização, ditadura, militarização, patriarcalismo, policiamento. São alguns momentos que atravessam insistentemente nossa História, deixando rastros e cicatrizes. Momentos que compõem a argamassa da qual nossas louvadas instituições foram erguidas.
Nós, naturalmente, nascemos e crescemos nessas terras regadas de suor e sangue. Boletos aguardam que deixemos a maternidade. É preciso pagar pelo lugar que se mora, pelo comida que se alimenta, pela água que se bebe, pela luz, pelas roupas.
Em suma, não se vive sem pagar pelas coisas.
A realidade, concreta, desaba sobre nossas cabeças.
Eu, nesse momento, sem energia elétrica no trabalho, despejo esse desabafo à tinta em forma de letras em um velho caderno. Irritado por não poder trabalhar, frustrado por não ter computador, internet, nem mesmo uma tomada para carregar meu celular, não deposito toda essa indignação na conta de quem roubou aqueles malditos fios de cobre. Sinto um mal estar mais profundo.
É difícil falar sobre o que sentimos. Para isso, nada melhor que os poetas. E dentre esses, os poetas do samba ainda são mais especiais. Um dos maiores foi Nelson Antonio da Silva, mais conhecido como “Nelson Cavaquinho”.
Em “Notícia”, uma de suas mais famosas canções, ao perceber astutamente que seu grande amigo fumava o cigarro que ele, Nelson, possuía em seu quarto, o poeta deduz que ele o traíra com sua mulher. Diante dessa dupla traição, ele diz:
“Vingança, meu amigo, eu não quero vingança
Os meus cabelos brancos me obrigam, a perdoar uma criança”
Nosso poeta, mesmo desapontado com o desfecho, não nutre rancor ou ódio ao novo casal. Seus anos de vida lhe renderam outra visão sobre os caprichos do amor. Nelson mostra ponderação, transigência. O novo casal já se formou, queira ele ou não.
Eu, mero mortal, diferente de Nelson, ainda não tenho cabelos brancos. Tampouco sustentava amor ou ternura pelos fios de cobre. Na verdade, nossa relação era um tanto fria, utilitária. Enquanto forneciam a tão necessária eletricidade, o fetiche que nos cerca se encarregava de ocultar sua existência.
Eis que, no meio desse relacionamento abusivo, sem consentimento de qualquer das partes, desfez-se nossa relação. Os fios de cobre são tomados por um terceiro, um estranho.
Este estranho precisa desses fios, não para usá-los como condutores de energia, mas para se desfazer deles, vendê-los. Ninguém se enriquece vendendo fios de cobre roubados, a questão é outra. O pouco dinheiro obtido na venda dos cabos certamente não ficará nas mãos desse alguém por muito tempo. Será atendida alguma necessidade imediata, alguma carência instantânea, ao menos provisoriamente.
Seres humanos que somos, históricos, temos muitas necessidades, carências, cada vez mais. Um roubar de cabos de cobre garante muito pouco, a quantia é ínfima para estancar qualquer insuficiência. Seu efeito é evanescente, mal se concretiza, se dissipa. Brevemente, o sujeito que rouba cabos de cobre se desvencilha de seu ponto de origem, para imediatamente desabar nele novamente. É um circuito curto, com poucas curvas, mas muitas voltas.
O tempo ensinou sobre o amor ao Nelson Cavaquinho. Seus cabelos se embranqueceram à custa de muitas experiências, desilusões, sucessos, fracassos. Seu entendimento sobre a vida está mais apurado, refletido, distante de reações instintivas. De modo similar, uma relativa compreensão da formação histórica e social de nossa sociedade nos orienta para onde devemos direcionar nossa indignação. Ainda tenho raiva, frustração, insatisfação, porém não exatamente sobre alguém que rouba cabos, mas pela circunstância, a conjuntura.
Ninguém precisaria roubar cabos de cobre, ou de prata, ou de ouro, ou do que quer que seja. A flagrante e lamacenta desigualdade que nos envolve, que nos retém, propicia esses episódios.
Como se já não bastasse essa coleção de tragédias, o ano de 2020 nos reservou mais um revés, fragmentos genéticos hostis aos pulmões humanos.
A pandemia despiu por completo um sistema disfuncional, falido. Sistemas de saúde não conseguem atender plenamente os que necessitam, Chefes de Estado minimizam mortes, planos de saúde privados se negam a ofertar seus leitos disponíveis, pacotes de socorro do governo ao sistema financeiro e às favas com a população!
É de se esperar que em um país da periferia do sistema capitalista, como é o nosso, essas contradições tendam a se agudizar ainda mais. Isso de fato acontece, contudo, no Brasil vêm acompanhadas de um requinte pernicioso.
Eleito em 2018, o governo de extrema direita no Brasil está em marcha. Passada uma reforma da previdência, o projeto neoliberal segue a tona, ampliando o desmatamento da floresta amazônica, realizando privatizações, sucateando o ensino, desmantelando a saúde pública.
Infelizmente, nada disso é de agora, já vinha de antes. O que mudou é o discurso, agora desavergonhado, e a brutal intensidade da aplicação do projeto. Sob a pandemia, vidas são tidas como descartáveis, passíveis de serem queimadas na roda da economia. A burguesia é previsível.
As instituições, juntamente à mídia hegemônica – depois de sordidamente consentirem com este projeto, alimentando fantasmas e interditando projetos alternativos – hoje afligem-se. Ao se verem como alvos do poder que auxiliaram a triunfar, batem cabeça, contorcendo códigos legais e recorrendo a baluartes morais que nunca tiveram. Nada de novo sob o sol.
As Forças Armadas, ao contrário, se sentem aconchegadas. Por detrás de uma figura destemperada na cadeira do Executivo, se vendem como ponderados, centrados, enquanto avalizam o projeto genocida que se implanta.
Ficamos em polvorosa na expectativa de se suceder ou não um golpe capitaneado por coturnos, enquanto o que os sapatos vêm fazendo não desperta a mesma inquietação.
O velho dramaturgo alemão já dizia: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. No Brasil, ela sempre esteve presente, dando as caras sob outras máscaras, outros nomes. Mesmo que durante alguns períodos ela tenha se recolhido, perambulando pelas vielas, ela nunca nos deixou. Hoje, nutrida, revigorada, alastra suas garras e suas crias. E continua sedenta.
À população, o governo ensaia conceder pacotes pífios de auxílio emergencial, com valores escandalosamente insuficientes e o acesso dificultado. Às pequenas empresas (que empregam a maior parte da população brasileira) a peça é similar. O limitado crédito ofertado – via bancos privados – é contido, deficiente, liberado à conta gotas, para conter um incêndio.
Aos bancos, para “garantir a liquidez”, o pacote emergencial veio farto, chegou à bagatela do trilhão de reais. Sim, TRILHÃO. Virtualmente, o valor de toda a produção do país no 1° trimestre desse ano foi para socorro do sistema bancário. Um montante que o povo jamais vai sentir o cheiro.
O Capital não pode parar.
Talvez devesse mesmo colocar aquelas malditas linhas no aviso.
Fabricam-se dilemas entre CPFs e CNPJs, onde os primeiros devem ser levados ao sacrifício, no altar de adoração aos segundos. Cheios de confiança, munidos com televisores e microfones, uivam pelo retorno das atividades, convocando trabalhadores às ruas, pensando no “bem maior”. Alguns ainda o fazem voluntariamente. O poder da ideologia é impressionante.
Enquanto a escumalha engravatada esperneia pela queda das taxas de lucro, a população é jogada ao escanteio. A máquina de moer carne negra, pobre, opera inescrupulosa, implacável. Elza tinha razão, é a carne mais barata do mercado.Os olhos neoliberais, banhados de sangue humano, enxergam as oportunidades nas crises. A morte de milhares de pessoas serão um alívio para a Previdência. Que maravilha!
São tempos difíceis.
Mergulhados neste mar de lodo, há espaço para alguma esperança?
Para mim, a resposta é um redondo e franco “Depende”.
Podemos nos enraivecer, nos entristecer, nos compadecer pela perda dos entes queridos, sobreviver precariamente e aguardar o próximo Outubro, quando as urnas eleitorais nos convocarão para escolhermos nossos próximos governantes.
Enquanto ele não chega, o Outubro, podemos nos indignar, reagir aos ataques, demandar que o governo conceda direitos, brigar por melhores condições de trabalho, e, enfim, quando o bendito mês chegar, escolhermos o melhor candidato. Ou o menos pior.
Atualmente, no Brasil, as principais vozes contrárias ao atual governo esbravejam suas discordâncias, criticam ferozmente sua postura, e…. formam alianças para quando ele, o Outubro, chegar. Esquecem-se dos meses restantes, compridos, que demandam de nós o aluguel, o alimento. A fome não espera o próximo pleito, o vírus não aguarda as urnas.
Essas vozes canalizam suas ações em notas de repúdio, petições, pedidos de impeachment, requerimentos de cassação de chapa. Recorrem a institucionalidade, a mesma que dispôs suas bênçãos a esse governo.
Será essa a melhor saída? Acredito que não.
Marcar presença na institucionalidade é importante, ela é o principal palco da política na nossa sociedade, por isso, um poderoso canal de comunicação e alcance. Mas se contentar com a atuação parlamentar é pouco, raso. Os jogos palacianos estão descolados das demandas populares. Atrás das cortinas, nas coxias, a classe dominante produz o espetáculo. Cabe a nós adentrar no alçapão, junto à maioria – à revelia.
É urgente uma atuação robusta nas ruas, casas, obras, hospitais, bares, restaurantes, escritórios, lojas, oficinas, padarias, supermercados, delegacias. Ouvir, ouvir e ouvir. Entender suas demandas, debatê-las, construir pontes. A frustração de um padeiro certamente tem aspectos muito próximos às de um mecânico, às de um assistente administrativo, mesmo não parecendo à primeira vista. É fundamental que essas sutis diferenças se encontrem no que as une: a exploração.
Esse processo de conscientização social ampla não se faz do dia para noite. Demanda tempo, dedicação, diligência, paciência.
Uma vez feita, o aguardado Outubro eleitoral, será consequência. Ou quem sabe, melhor ainda, ocupados com nossas demandas, esqueçamos do Outubro. Em meio a solidárias construções e ações colaborativas, passam-se Outubro, Novembro, Dezembro… não importa. Importa a busca por uma transformação de fato, efetiva. Mas de novo, leva tempo, entrega, e muita luta.
Um outro Outubro, famoso, histórico, pode servir de exemplo: o Outubro Russo de 1917. Para que a Revolução Russa de Outubro pudesse irromper, antes tivera que haver a de Fevereiro. Para que 1917 apresentasse essas condições, antes viria o categórico 1905, ensaiando a tomada do poder. Não de forma determinista, cabal, mas como partes de um todo, indicando uma finalidade.
O Brasil já teve momentos de se fazer ouvir, que faziam brilhar os olhos que ansiavam por mudanças. O mais recente e barulhento deles foi Junho de 2013, onde ruas foram enchidas, palavras de ordem foram proferidas. Contudo, a realidade é dura, não se faz encaixar no que pensamos só porque queremos. A falta de coordenação e organização foram amplas. A ampla indignação das ruas, legítima, foi cooptada, se convertendo em despolitização, deslocada para a agenda ultra conservadora.
Décadas de desmobilização e alienação formam um cenário como o de hoje, onde em plena escalada reacionária, estamos desorganizados, girando no próprio eixo.
Devemos revigorar nossas formas e conteúdos, libertar nossa castrada imaginação.
“Trabalhar!”, “Se empenhar!”, “Se esforçar!”, todos esses imperativos agem como tranquilizantes funcionais, anestesiando mentes e corpos exauridos, derrotados, despojados de qualquer dignidade. A retórica meritocrática vislumbra um belo firmamento, um horizonte onde todos esses percalços seriam, enfim, superados. Enquanto olhamos, individualmente, para essa linda paisagem que nunca chega, deixamos de olhar para os lados e ver os outros, os demais, que assim como nós, buscam seu cantinho na terra prometida. Somos muitos querendo se tornar poucos.
A luz desse mágico paradeiro ofusca nosso entorno, embriaga nossa percepção. Encarar tão obcecadamente esse encantador desfecho onde um dia, talvez, quem sabe, nosso esforço será finalmente recompensado, nos impede de olharmos para baixo e vermos os grilhões que nos prendem.
Talvez eu deva colocar outra folha sulfite embaixo daquele primeiro aviso, com uma fração de uma velha canção, lamentavelmente hoje pouco entoada:
“Paz entre nós, guerra aos senhores!
(…) Somos irmãos trabalhadores!”.