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Artigos

Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural: o impossível realizável

Ilustração realizada para a Exposição de Cartazes Anti-Imperialistas. “Capitalismo: ciclo interminável de exploração”, do Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista).

 

Este texto faz parte do Concurso de Ensaios Tricontinental | Nada será como antes.

 

Por Helena Antunes

 

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

Conceição Evaristo

O convite era para fechar os olhos por alguns minutos. Não deu. Até tentei, mas duvido que tenha sido por tempo suficiente. Melhor desistir, pensei. Acho difícil imaginar o futuro quando se é privado de sonhar. No auge da minha primeira tentativa – cuja duração não excedeu 3 minutos – o chamado: “Mãe, tô com fome”. O exercício da paciência é mais um desafio para quem educa um ser humano, acostumado a não esperar mais do que o tempo de um clique para fazer escolhas. Para evitar mais interrupções e voltar ao exercício, vou até a dispensa, faço uma tapioca. Aliás, mudança de planos, acabou a goma. No tempo em que preparo o cuscuz, elaboro qual será a próxima estratégia para fazer as compras. Nunca imaginei que 100 dias de confinamento, sozinha com uma criança de 5 anos, iriam me privar de comprar o papel higiênico quando faltasse. Quem poderá ir ao mercado por mim? Depois que decretaram “a proibição da entrada de pessoas acompanhadas, independentemente de laços familiares fecha”, me vi obrigada a recorrer aos aplicativos de entrega, aqueles que não quebram às custas da expropriação secundária dos entregadores, amotoadxs nos estacionamentos dos mercados , sem ter o direito a um EPI. É, parece que a tecnologia não resolveu todos os nossos problemas. A não ser que sua casa não caiba o mínimo de solidariedade de classe. Falando em espaço, o síndico daqui rejeitou minha proposta de deixar uma das duas portas de acesso a entrada do prédio aberta, evitando, assim, que tenhamos que manuseá-la. São as normas do prédio. Controverso. Sobretudo depois que os lixos voltaram para as escadas, atendendo ao pastor do 803, ainda que tal mudança contrarie instruções do corpo de bombeiros e implique em fazer Sr. Bernardo, o senhor que trabalha nos serviços gerais, subir 12 andares para recolhê-los. Falando em descer, o interfone sona: meu antidepressivo chegou, como não entregam, pois a receita é controlada, pedi a minha mãe que o comprasse para mim. Já estava sem tomar há um dia. Antes da pandemia até que eu tinha um respiro. Ela ficava com Lis uma noite na semana, mas agora não mais. É muito arriscado. Seu esposo tem histórico de atleta, sai bastante: precisa pescar, encontrar com os amigos, ir ao mercado todos os dias, esse tipo de coisa. Nesse movimento, quase me esqueço de limpar o chão. Antes, uma olhada no WhatsApp, estou aguardando a aprovação do conteúdo que fiz, mas minha chefe respondeu solicitando algumas alterações. Faço antes ou depois de passar o pano? Melhor fazer logo. Sento na cadeira. Percebo o movimento das bonecas que se aproximam com um animado convite para brincadeira. É, não tem jeito, hora das telas. YouTube não, adianto. Na negociação, “Quintal da Cultura” venceu, ou melhor dizendo, a minimização do meu sentimento de culpa por não estar oferecendo as brincadeiras lúdicas das várias listas que me enviaram no Instagram. Alcanço 1h30 de trabalho com um saldo de 7 interrupções. Não foi o suficiente para terminar o serviço, mas e o almoço, hein? Vou botar um macarrão no fogo. Algo rápido para entregar logo esse material. Uma vez alimentadas e a louça lavada, mereço uma pausa. 20 minutos para ler os noticiários enquanto faço a indigestão da realidade. Hoje a TV mostrava o caso de um menino que caiu de um prédio, enquanto a mãe trabalhava. Dilacerada fecho os olhos. O que você vê quando sente dor? Assino a petição pedindo a prisão da patroa, a qual economizava o salário de “sua” empregada para comprar sua futura liberdade. Mal sabia que não precisava de tanto: R$ 20.000,00 seria o suficiente para um pequeno corpo preto cheio de vida pela frente. Preciso voltar ao trabalho e repetir tudo que fiz pela manhã, sem esquecer da tarefa da escola de Lis, claro. Transcrever as atividades que enviam para imprimir exige um certo tempo. Talvez uma impressora ajudasse. Na verdade, não. 21h. Hora de dormir. Não para mim. Lamento não ter feito a yoga que tinha planejado, preferi varrer a casa nesses 20 minutos. Mas amanhã eu faço. Hora de pensar a tarefa de formação que assumi no coletivo feminista no qual milito. Para o dia de São João, escolhemos o tema “crise e capitalismo”. Separei várias leituras, mulheres e homens que se dedicam a pensar a crise estrutural da civilização do capital. Estruturo minha fala entre otimistas e pessimistas, cujo futuro tentam decifrar. Nessa hora lembro que no início do dia me propus a fechar os olhos por alguns minutos e fazer minha aposta. Poderia citar Lowy, Zizek ou Byung-Chul Han, mas não considero apropriado. Prefiro ceder esse espaço ao retrato da vivência concreta das vidas negligenciadas, silenciadas, roubadas, mercantilizadas. Se a história é constituída por uma sequência de fatos, não consigo imaginar o amanhã, senão como um lugar no qual as angústias do presente serão aprofundadas. O desafio consiste em cumprir o combinado de não morrer, e, paralelo a isso, organizar as necessidades históricas, concebidas a partir da nossa realidade objetiva, como fundamento para elaboração da vontade política coletiva. Hoje, um mundo onde Helenas, Bernardos, Miguéis, Mirtes e Marielles possam ter domínio sobre o abrir e fechar de seus olhos não é uma alternativa. Façamos, pois, do futuro a nossa revolução.