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Capitalismo ContemporâneoObservatório da Questão Agrária

O agronegócio como elemento potencializador das desigualdades no campo no Brasil

Observatório da Questão Agrária e Observatório Forças da Desigualdade

Apesar dos anos, a concentração fundiária permaneceu e continuou a ter uma função econômica para o desenvolvimento capitalista brasileiro. Crédito: Reprodução

 

Por Matheus Gringo de Assunção[2] e Marcelo Alvares de Lima Depieri[3]

 

A concentração de terras é um dos fatores que leva o Brasil a ser um dos países mais desiguais do mundo. A situação da estrutura fundiária brasileira remete aos tempos coloniais. No período colonial, essa concentração atendia aos interesses da produção monocultora voltada para exportação. De 1500 até 1822, o acesso a terras era restrito a colonos escolhidos pela Coroa portuguesa. A partir de 1823 foi abolida essa prática, e o que se viu até 1850 foi uma ocupação de terras violenta e anárquica (LEVY, 1994).

No ano de 1850, foi instaurada a Lei de Terras, que na prática mercantilizava o acesso a terras e é precedida da Lei Eusébio de Queiroz, que pôs fim ao tráfico transatlântico de escravos.  A Lei de Terras acabou respondendo a uma necessidade de reposição da mão de obra, que em breve deixaria de ser escravizada (ainda assim, levou-se 38 anos até a Abolição). Mais do que legalizar a terra e instituir a forma jurídica burguesa da propriedade privada, a Lei de Terras está condicionada à lógica de substituir o cativeiro do ser humano pelo cativeiro da terra (colocar cerca sobre a terra significava impedir o livre acesso aos futuros homens livres. E para acessar a terra, seria necessário alguém disposto a vendê-la e dinheiro por parte do comprador).

A histórica espoliação dos povos do campo ensejou diversas formas de resistência popular. Estas lutas mobilizaram diferentes temas da questão fundiária brasileira, tais como: territoriais, a busca pela sobrevivência das comunidades camponesas, as diversas formas de expropriação dos territórios, a superexploração da força de trabalho e do próprio desenvolvimento do capital industrial na agricultura. Dentre as formas de resistência, destacam-se as lutas dos Quilombos e Mocambos, Canudos (1896 a 1897), Contestado (1912 a 1916), Trombas e Formoso (1950 a 1957), as Ligas Camponesas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Estas lutas cumpriram um papel fundamental para alguns avanços institucionais ao longo do século XX, como o Estatuto da Terra, em 1964, a Constituição de 1988 e a Lei Agrária de 1993 (que regulamenta os artigos da Constituição de 1988 que tratam do cumprimento da função social da terra). Porém, muitas das diretrizes contidas nestas legislações não foram colocadas em prática, na forma de políticas efetivas para uma melhor distribuição de terras no país.

Muitos anos se passaram e a concentração fundiária permaneceu e continuou a ter uma função econômica para o desenvolvimento capitalista brasileiro. Mesmo entre 1930 e 1980, período no qual o país passou por um profundo processo de industrialização, o setor agropecuário tinha como principal papel produzir produtos primários exportáveis para que se acumulassem reservas cambias que financiassem as importações necessárias para dar continuidade à produção industrial. Além disso, a não extensão dos direitos trabalhistas para os trabalhadores do campo, até meados da década de 1960, foi importante instrumento de rebaixamento do valor da força de trabalho não só no setor rural, como no urbano-industrial.

No final da década de 1990 e início dos anos 2000 é que se consolida o agronegócio no Brasil, com a mudança da base técnica, iniciada com a Revolução Verde. As transformações estruturais que liberalizaram os fluxos de capitais financeiros e as reformas neoliberais aprofundaram o controle transnacional sobre as cadeias produtivas no campo brasileiro, reforçando o papel agroexportador da economia.

No século XXI, o setor agropecuário apresentou um crescimento acumulado, entre 2001 e 2020, de 93,97% (IBGE). O agronegócio, no mesmo período, representou, em média, 23,08% do PIB nacional (CEPEA-Esalq). Desde meados da década de 1990, mudanças institucionais já vinham sendo realizadas e influenciavam a produção agroexportadora. Cabe destacar a mudança na Lei de Patentes (1996) e a Lei de Cultivares (1997), que criou as condições jurídico-institucionais para a entrada das sementes transgênicas, por exemplo. A partir de 1999 houve uma alteração na política macroeconômica, que vinha sendo seguida desde o início do Plano Real. No que diz respeito à política cambial, passou para um câmbio flutuante, que, como efeito, levou a uma desvalorização cambial interessante para os setores exportadores. Somado a esses processos, o contexto de aumento da demanda mundial por commodities, principalmente puxado pela China, explica o crescimento da produção agropecuária e dos setores ligados diretamente a ela.

Nesse contexto, a produção de soja apresentou um crescimento significativo. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab, 2021-a), entre as safras de 2001/2002 e de 2019/2020, a produção de soja teve um crescimento acumulado de 197,84%. Esse crescimento veio acompanhado do avanço do cultivo do produto em diversas regiões do país, em que se destacam: o Centro-Oeste e o Matopiba, sigla que se refere a região dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. O crescimento da sojicultura é explicado também pela mudança na base técnica de produção. No caso, o plantio de sementes transgênicas, que aumentou significativamente a produtividade física da soja e do milho, o que implicou também em um intenso uso de herbicidas.

A região Centro-Oeste, onde se concentra a maior porção do Cerrado [4], é atualmente o principal polo produtor de grãos, em especial de soja e de milho. Esta grande região registra os maiores índices de concentração fundiária, segundo o último Censo Agropecuário, de 2017.

O Matopiba, em que a maior parte do território faz parte do bioma Cerrado, representa a principal expansão da fronteira agrícola. Esta região abrange 337 municípios e 31 microrregiões, que ocupam um total de 73 milhões de hectares, e  uma população de 25 milhões de pessoas. Há na região 28 áreas indígenas, 42 unidades de conservação ambiental, 865 assentamentos rurais e 34 territórios quilombolas, além de muitas pessoas em acampamentos sem terras e outras em comunidades indígenas e quilombolas que ainda não foram reconhecidas legalmente (ACTIONAID, 2017).

A análise da região do Matopiba contribui para a compreensão das dinâmicas de expansão do agronegócio e de suas contradições em termos de aprofundamento da concentração fundiária e das desigualdades sociais e econômicas inerentes a esse modelo. Ademais, nessa região há grande predominância do capital transnacional, e um dos efeitos da presença desse capital é a utilização das terras como ativos especulativos. Na atualidade, é muito comum constatar movimentos de estrangeirização do controle das propriedades agropecuárias e da produção das commodities agrícolas que sustentam o modelo exportador.

O presente capítulo analisa a evolução da concentração de terras no Brasil, a partir de dados dos Censos Agropecuários de 2006 e de 2017. Além disso, examina  como se movimentou a posse do terreno, se está sendo utilizado por locatário ou pelos próprios proprietários. A análise traz um recorte territorial para as regiões do Centro-Oeste brasileiro e do Matopiba.

Além desta introdução, o texto conta com mais duas seções e as considerações finais. Na primeira parte, foi apresentada a dinâmica de consolidação do agronegócio e seus reflexos em termos de concentração fundiária. Ainda, foi investigada a expansão da fronteira agrícola no chamado Matopiba e suas contradições. Na segunda parte, foi aprofundada a análise sobre os processos de especulação das terras e de financeirização das commodities, constatando uma acelerada valorização das terras vinculadas aos ciclos das principais commodities exportadas pelo Brasil. Por fim, nas considerações finais, foi realizada uma síntese explicativa do significado do agronegócio brasileiro em termos do desenvolvimento capitalista no Brasil, bem como os efeitos gerais desse processo.

 

O desenvolvimento do agronegócio no Brasil

As transformações advindas da Revolução Verde, entre as décadas de 1960-70 [5], que articulavam, em “pacotes tecnológicos”, a indústria química (agrotóxicos e fertilizantes), a mecanização do trabalho agrícola, o desenvolvimento de variedades vegetais mais produtivas e um sistema de crédito rural e de pesquisa, alteraram significativamente a base técnica da produção agropecuária brasileira.

A “modernização conservadora”, nos termos de Delgado (2011), é o resultado do pacto entre o capital e o latifúndio, que levou a migrações forçadas para centros urbanos ou para zonas de expansão da fronteira agrícola. Aplicando o receituário tecnológico da Revolução Verde buscou-se ampliar a produtividade do setor.

Durante o processo modernizador se ampliou a produção da soja no território nacional, que se tornou, a partir das últimas décadas do século XX, o principal produto de exportação do agronegócio no país. Não obstante, e na esteira das transformações da agricultura, o Estado brasileiro cumpriu papel central nesta expansão. Nas palavras de Schlesinger (2006, p.17):

Além de apoiar o avanço da soja com créditos subsidiados, através da prática de taxas de juros abaixo da inflação, o Estado brasileiro se faz presente também aportando recursos para a infraestrutura e pesquisa. Em 1973, é criada a Embrapa, e em 1975, a Embrapa Soja e a Embrapa Cerrados, que contribuíram em seguida para o desenvolvimento de sementes adaptadas ao clima tropical, viabilizando a extensão da produção às regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste.

No entanto, é no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) que o agronegócio ganha importância decisiva no conjunto da economia brasileira, operando o que Delgado (2010) define como “relançamento do agronegócio” a partir de algumas medidas, tais como:

(a) forte investimento em infraestrutura territorial, formando ou ampliando meios de transporte e corredores comerciais ao agronegócio que favorecessem sua expansão para fora do país; (b) direcionamento do sistema público de pesquisa agropecuária, por meio da reorganização da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), que passou a operar em consonância com as empresas multinacionais do agronegócio; (c) frouxidão da regulação do mercado de terras; (d) mudança na política cambial, eliminando a sobrevalorização, o que tornou o agronegócio competitivo no comércio internacional. (DELGADO, 2010, p. 94)

Uma característica central de tais transformações é a presença expoente de empresas transnacionais controlando a comercialização das commodities agrícolas e minerais no mercado internacional, principalmente a partir das negociações dos produtos nos mercados futuros. Assim, a financeirização possui grande relevância para a análise das transformações na questão agrária brasileira.

A reestruturação produtiva no campo acentuou a subordinação da agricultura, estruturada na produção e exportação de commodities, à lógica da financeirização e ao controle das empresas transnacionais que fabricam os insumos necessários para a produção (como sementes, agrotóxicos e fertilizantes), o processamento (agroindústria e armazenamento) e a comercialização. Estes agentes econômicos, que anteriormente operavam na agricultura, concentraram-se ainda mais como produto do próprio movimento do capital financeiro, acelerando o processo de centralização do capital, que culmina na formação de gigantescas corporações transnacionais.

O agronegócio pode ser entendido enquanto expressão do capitalismo financeirizado no campo brasileiro· Portanto, é fundamental entendê-lo a partir das transformações estruturais levadas a cabo, desde o final da década de 1980 e aprofundadas a partir dos anos 2000, que levaram a uma profunda reestruturação produtiva no campo.

A consolidação do agronegócio trouxe novos condicionantes para as históricas demandas de democratização das terras, como a reforma agrária, a demarcação de terras indígenas, o reconhecimento dos territórios quilombolas, entre outros. Ademais, o modelo do agronegócio se consolidou ampliando a concentração de terras, apropriando-se de terras públicas (grilagem), aumentando a precarização do trabalho e as formas de superexploração, eliminando condições de reprodução social dos povos e comunidades tradicionais e se utilizando das formas históricas de violência das  classes dominantes contra os trabalhadores e os povos do campo, por meio de assassinatos, torturas e massacres.

 

Quadro atual da concentração de terras no Brasil

O aumento da concentração de terras recente no país pode ser constatado por meio da análise comparativa dos dados dos Censos Agropecuários de 2006 e 2017. De 2006 para 2017 ocorreu um incremento de 17,6 milhões de hectares aos estabelecimentos agropecuários no Brasil. Deste montante, mais de 17 milhões foram apropriados por estabelecimentos com mais de 1.000 hectares.

 

Tabela 1 – Brasil: Evolução da concentração de terras – 2006/2017

Fonte: Censos agropecuários 2006 e 2007 – IBGE; Teixeira (2019) Elaboração dos autores

 

A tabela mostra que todos os tipos de imóveis, por tamanho, perderam participação na área total, menos os imóveis de 1.000 hectares ou mais, que passaram de uma participação de 45%, em 2006, para 47,6%, em 2017, representando quase metade da área total.

Na região Centro-Oeste do país, os imóveis com mais de mil hectares cresceram 5,27% entre 2006 e 2017, o que representou um aumento de 8,58% na área ocupada. Em 2006, o total de imóveis maiores do que mil hectares representava 70,09% da área da região e, em 2017, passou para 71,58%.

 

Tabela 2 – Evolução da concentração de terras no Centro-Oeste brasileiro – 2006/2017

Fonte: Censos agropecuários 2006 e 2007 – IBGE; Elaboração dos autores

 

O número de estabelecimentos, de todos os tamanhos, aumentou na região entre 2006 e 2017. A área de ocupação aumentou para todos os tamanhos de imóveis, exceto os de tamanho entre 100 e 1.000 hectares, o que fez com que a ocupação total de imóveis, por área, no Centro-Oeste, aumentasse 6,32% (Tabela 2).

A tabela 2 mostra ainda que mais de 93% da área do Centro-Oeste é ocupada por estabelecimentos maiores do que 100 hectares. Esse resultado é muito similar à participação sobre tipologia dos estabelecimentos, em que apenas 8,90% são utilizados como agricultura familiar [6] e 91,10%, como agricultura não-familiar (CENSO AGROPECUÁRIO, 2017).

O número de estabelecimentos que utilizavam as terras para pastagens aumentou 9,30%, mas houve queda na área de ocupação das pastagens no Centro-Oeste. Por outro lado, a área de ocupação de lavouras temporárias, como a soja, aumentou 63,98% entre 2006 e 2017 (CENSO AGROPECUÁRIO, 2006; CENSO AGROPECUÁRIO, 2017).

Em 2006, a quase totalidade (94,50%) dos produtores na região Centro-Oeste era proprietário da terra. Em 2017, essa taxa continuou alta, em 90,62%. A participação dos arrendatários passou de 3,04%, em 2006, para 6,40%, em 2017.

A estrutura fundiária na região do Matopiba não teve alterações substanciais entre 2006 e 2017. A concentração de terras se manteve. Os estabelecimentos de mil hectares ou mais, em 2006, representavam 53,16% da área do local e, em 2017, essa taxa foi de 53,05%.

 

Tabela 3 – Evolução da concentração de terras no Matopiba – 2006/2017

Fonte: Censos agropecuários 2006 e 2007 – IBGE. Elaboração dos autores

 

O número total de estabelecimentos agropecuários diminuiu consideravelmente no Matopiba (-15,09%), entre 2006 e 2017. No entanto, os estabelecimentos entre 10 e 100 hectares cresceram 7,01% e os de 1000 hectares ou mais cresceram 2,5% (Tabela 3).

Na região do Matopiba, em 2017, 78,95% da área dos estabelecimentos era utilizada para agricultura não familiar e 21,05%, para agricultura familiar. Em contraste, as taxas de participações relativas ao número total de estabelecimentos se invertem. Enquanto o número de estabelecimentos de agricultura familiar representava 80,03%, a agricultura não-familiar representava 19,97% do total de estabelecimentos da região.

O dado que chama mais atenção na região do Matopiba é o crescimento da área de lavoura temporária, que expandiu em 51,19%, enquanto a área utilizada para a lavoura permanente se retraiu 86,91% e a área para pastagem teve uma diminuição de 77,98%. (CENSO AGROPECUÁRIO, 2006; CENSO AGROPECUÁRIO, 2017).

Em relação à condição do produtor, a participação de proprietários cresceu significativamente, passando de 59,52% em 2006 para 73,34% em 2017. Houve a diminuição, entre 2006 e 2017, de arrendatários e de ocupantes. As taxas passaram de 7,76% para 3,11% e de 10,73% para 7,04%, respectivamente.

Na próxima seção, apresentamos breves análises que auxiliam na compreensão dos processos de concentração de terras no Matopiba, na região do Centro-Oeste, bem como em todo o Brasil. Os destaques são os movimentos de avanço da sojicultura, de estrangeirização das terras e os efeitos sociais negativos desses processos.

 

A perversidade de um modelo de desenvolvimento 

O agronegócio brasileiro se destaca, entre outras commodities, pela grande expansão da produção de grãos, sendo a soja a principal cultura de exportação do país. O processo de consolidação da sojicultura no Brasil  se inicia na década de 1970 no estado do Rio Grande do Sul, e se expande para Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e para o Centro-Oeste.

O grande volume de soja produzido e exportado pelo país ocorre principalmente através da expansão da área cultivada, em que pese os ganhos de produtividade pela implementação de novas tecnologias aplicadas a essa cultura. É na constante expansão territorial que está parte relevante da explicação para os volumes produzidos, com as contradições sociais e ambientais de tal impulso.

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em seu Compêndio de Estudo de 2017, intitulado “A Produtividade da Soja: análise e perspectivas”, destaca:

A produção é obtida pela multiplicação entre a área e a produtividade, ou seja, qualquer expansão em produção é explicada ou por um incremento de área ou por um ganho de produtividade. O Brasil, ao longo dos últimos 40 anos, obteve uma forte expansão em área cultivada, ao passo que a produtividade não teve o mesmo comportamento nesse período. Enquanto a área saltou de 6.949 mil hectares na safra 1976/77, para 33.251,9 mil hectares na safra 2015/16, sendo multiplicada por 4,8 em 40 anos, a produtividade avançou de 1,748 mil kg/ha em 1976/77, para 2,870 mil kg/ha na temporada 2015/16, sendo multiplicada por 1,6 em 40 anos. Ou seja, enquanto a área cultivada teve um aumento de cerca de 378,5% nos últimos 40 anos, a produtividade avançou 64,2% ao longo de todo o período. (CONAB, 2017, p. 8).

Conforme apresentado, o crescimento da área de produção de soja ocorreu a partir do deslocamento para a região Centro-Oeste, onde a adaptação do grão  ao bioma Cerrado cumpriu papel fundamental. Para dimensionar o papel desta região na expansão da sojicultura brasileira, vale destacar algumas informações: a produção nacional de soja, na última safra (2020/2021), utilizou uma área de 38,53 milhões de hectares para um total de 135,91 milhões de toneladas do grão; o Centro-Oeste foi o principal produtor, com uma área plantada de 17,22 milhões hectares e 61,33 milhões de toneladas, seguido da região Sul, com uma áreade 12,38 milhões de hectares e produção de 43,03 milhões de toneladas; na região Nordeste, foi utilizada uma área de 3,54 milhões de hectares e produção de 11,32 milhões de toneladas; a produção da última safra de soja do Sudeste, concluída em meados de 2021, utilizou 3,06 milhões de hectares e produziu 11,32 milhões de toneladas; e, por fim, na região Norte foram utilizados 2,33 milhões de hectares para uma produção de 7,38 milhões de toneladas (CONAB, 2021-b). De maneira ilustrativa, o gráfico 1 demonstra a área utilizada pela soja em cada região entre 2000 e 2021.

 

Gráfico 1 – Brasil: Área do cultivo da soja, por região – safras 2000/2001 – 2020/2021 (em mil hectares)

Fonte: Portal de Informações Agropecuárias, CONAB, 2021-b.

 

A expansão da produção de soja no país pressiona para a abertura de novas fronteiras agrícolas, principalmente em áreas do Cerrado brasileiro, como é o caso do Matopiba.

A expansão da fronteira agrícola vem acompanhada da crescente busca pelos capitais transnacionais por apropriação de terras agrícolas. O que explica este processo tão acelerado e profundo é a massa de capitais contidas nas diversas instituições financeiras (fundos de investimento, fundos de pensão, bancos, etc.) que passaram a atuar na agricultura. Além disso, há  novas formas de financiamento das lavouras de grãos, especialmente os títulos de commodities negociados em bolsa de valores, entre outras formas, que vão além do crédito rural oficial. Na atualidade,podemos afirmar que este fenômeno está relacionado a ao menos dois processos. O primeiro é a financeirização, que faz da terra não apenas um ativo produtivo, mas, cada vez mais, preponderantemente, um ativo financeiro. O segundo é o chamado boom das commodities, que eleva os preços dos produtos agrícolas e minerais, acabando por valorizar o preço das terras.

Diversos autores têm buscado explicar a ampliação da busca de terras por capitais transnacionais a partir do termo land grabbing, que busca expressar genericamente a recente explosão de transações comerciais de terras para a produção e exportação de alimentos, biocombustíveis, minérios, entre outras commodities.  (BORRAS e FRANCO, 2012, p. 34, apud SAUER e BORRAS JÚNIOR, 2016, p. 12). O afluxo de capitais na aquisição de terras e produção de commodities também corresponde à busca de alternativas à crise financeira de 2008. Muitos dos capitais, saíram dos títulos de alto risco e migraram para os títulos de commodities, seja agrícola, seja mineral, como também migraram para a compra de terra e ouro – algo mais seguro.

Dias e Lima (2019) ressaltam que a aquisição de terras pelo capital internacional pode ocorrer em parceria com o capital nacional público ou privado, visando lucro ou não, e apontam os objetivos destes investimentos:

visam a acumulação por meio do controle de vastas áreas territoriais e dos recursos associados (como a água, os minerais e as florestas), seja pela aquisição direta ou pela garantia de concessão do direito de uso, com o intuito de dominar os benefícios de sua utilização. (DIAS e LIMA, 2019, p. 57)

O movimento de apropriação e especulação com as terras agrícolas e com as commodities tem como efeito um processo de valorização dos preços das terras, em especial daquelas áreas de expansão da fronteira agrícola. Até meados dos anos 1990, o comportamento dos preços das terras apresentava uma tendência de baixa. No entanto, a partir dos anos 2000 se inicia um movimento de valorização, acelerado a partir dos anos 2007-2008, período de manifestação da crise financeira mundial, indicando também uma corrida por estes ativos em terras. Segundo apontam Flexor e Leite (2016), na década de 2010 há uma expressiva valorização dos preços das terras, que passaria de um valor médio de R$ 4.756,00 por hectare para R$ 10.083,00 em 2015, uma valorização da ordem de 112% em meia década. No entanto, é nas regiões de fronteira agrícola que essa valorização foi mais intensa, segundo os autores,

(…) as variações médias dos preços superaram os 150% e, no caso extremo do Norte, chegaram a 220%. No Sul (+131%) e no Sudeste (+130%) houve também aumentos expressivos das variações médias, mas foram menos intensos.  Esse movimento diferenciado dos preços nas regiões de fronteira agrícola e dos investimentos realizados nessas áreas, cujo exemplo mais significativo e comentado é a região denominada MAPITOBA, é provavelmente a causa do maior crescimento relativo da dispersão de preços no Nordeste e Norte do país. (FLEXOR e LEITE, 2016, p. 7).

 

No Matopiba, ocorreu um intenso avanço do agronegócio nos anos 2000. A área da sojicultura apresentou um crescimento vertiginoso, passando de 1 milhão de hectares plantados, em 2000, para 3,4 milhões em 2014, um aumento de 253%.

O aumento da concentração de terras no Matopiba, como apontado na segunda seção deste texto, possui relação com os processos de estrangeirização das terras no Brasil. Estima-se que ao menos 750 mil hectares de terras tenham sido adquiridos por fundos privados estrangeiros no bioma do Cerrado, com destaque para a joint ventures TIAA-CREF Global Agriculture HoldCo (TCGA), um fundo de pensão de professores universitários com sede nos EUA, que capta dinheiro de fundos de pensão na América do Norte, Europa e no Brasil. O empreendimento atua por meio de parcerias com empresas brasileiras, burlando, desta forma, os limites legais para a aquisição de terras por empresas estrangeiras.

Os efeitos dos processos de estrangeirização de terras para as comunidades situadas no Matopiba têm sido as expropriações, principalmente nos chamados baixões [7]. As ilegalidades que acompanham a expansão da fronteira agrícola no Brasil não são combatidas pelo Estado; ao contrário, todo o esforço realizado tem sido no sentido de criar segurança jurídica na forma da “legalização do ilegal” e permitir a apropriação do público pelo privado.

Em estudo da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) foram realizadas importantes conexões entre os processos de grilagem de terras públicas, o desmatamento e a expropriação de territórios das comunidades tradicionais. As áreas de expansão da fronteira agrícola na região do Matopiba, de acordo com o referido estudo, estão situadas justamente onde antes eram territórios de posse das comunidades tradicionais. Essas áreas são convertidas em propriedade privada das grandes empresas do agronegócio, aumentando a concentração de terras e a vulnerabilidade de povos e comunidades tradicionais da região. (AATR, 2021).

Portanto, algumas das consequências da expansão do agronegócio na região do Matopiba têm sido as expropriações das comunidades tradicionais situadas nos baixões, assim como as comunidades de fecho de pastos, entre outras comunidades tradicionais, que, além dos impactos da expansão da produção de soja, ainda convivem com os constantes assédios e violência para que deixem suas áreas e assim possam servir  como reserva legal para o agronegócio. Adicionados a esses impactos, vale ressaltar: os problemas ambientais que o desmatamento e a monocultura de soja levam para as mudanças nos regimes pluviométricos, a diminuição da fauna e assim a limitação do acesso a caça como forma de sobrevivência das comunidades tradicionais, bem como a contaminação de rios e lençóis freáticos pelo uso de agrotóxicos nas monoculturas do agronegócio, levando ao adoecimento dessas populações. No relatório “Os custos ambientais e humanos do negócio de terras – o caso do Matopiba, Brasil” são trazidas informações sobre relatos das denúncias, feitas por moradores da região, de problemas ambientais causados pela expansão agrícola. Muitos deles alertam para a poluição das águas de rios e lagos pelo despejo de agrotóxicos, o que inclusive levou a uma escassez de água potável de qualidade. De acordo com alguns moradores, matar todos os peixes e impossibilitar sua reprodução é parte de uma estratégia deliberada para expulsá-los (FIAN INTERNATIONAL et. al, 2018, p. 52).

 

Considerações finais

O avanço do agronegócio verificado nas últimas décadas tem implicado no aprofundamento da histórica concentração de terras no país, marca da questão agrária brasileira. Não obstante, a expansão da fronteira agrícola desnuda a sanha do capital, em especial do capital transnacional, para a conversão das terras públicas e de posse dos camponeses e das comunidades tradicionais em propriedades privadas sob o controle direto ou indireto das gigantes corporações que atuam na agropecuária brasileira.

É neste contexto que caminham diversas iniciativas legislativas para avançar na apropriação dos bens da natureza, como nos projetos de lei do chamado “Pacote da Destruição”, que  buscam anistiar grandes desmatadores e invasores de terras públicas, além de possibilitar a regularização de terras “griladas” (projetos de lei 2.633/2020 e 510/2020). Em ataque aos territórios indígenas também caminham projetos de lei que possibilitam a exploração de minérios, recursos hídricos e orgânicos em suas terras, até então protegidas (Projeto de lei 190/2020) e alteram regras para limitar a demarcação de novas áreas, com potencial de impactar 440 mil hectares e ameaçar cerca de 70 mil indígenas.

Esta expansão agrícola para o Centro-Oeste brasileiro, destacadamente para a produção de grãos, tendo a soja como principal lavoura, leva consigo velhas e novas formas de espoliação dos bens naturais e a expropriação dos povos do campo de seus territórios. Seja nas ainda presentes formas de violência e coerção, pelas quais essas comunidades são expulsas, mas, também, nas formas em que a terra e os bens da natureza são mercantilizados para cumprirem a função da valorização do capital, implicando nos mecanismos de financeirização pela qual opera atualmente o agronegócio.

Verifica-se que nestas zonas de expansão do agronegócio ocorrem maiores conflitos por terras. Entre 2003 e 2018 ocorreram conflitos em 7.353 localidades no Brasil, sendo que no Cerrado  40,5% desses conflitos. Não obstante, o desmatamento também acompanhou a expansão das fronteiras da exploração dos territórios. Somente entre 2000 e 2019 o Matopiba registrou desmatamento de 12,23 milhões de hectares, devastação maior do que as registradas nos 500 anos anteriores [8] (AGUIAR, PÉREZ e SANTOS, 2021).

O Matopiba, como zona de expansão da fronteira agrícola brasileira, revela as profundas contradições do modelo atual de exploração agropecuária, em que as comunidades rurais, além de terem suas áreas de exploração tradicional e de uso comum transformadas em fazendas para a exploração do agronegócio, ainda sentem os impactos deste modelo destrutivo de produção, levando a contaminações por agrotóxicos, desmatamentos e perda da biodiversidade natural, expulsão de trabalhadores agrícolas, entre outras.

 

Referências bibliográficas

AATR. Legalizando o ilegal: legislação fundiária e ambiental e a expansão da fronteira agrícola no Matopiba. Disponível em: https://www.aatr.org.br/post/matopiba-estudo-sobre-institucionaliza%C3%A7%C3%A3o-da-grilagem-%C3%A9-lan%C3%A7ado. Acesso em 5 de agosto de 2021.

ACTIONAID. Impactos da expansão do agronegócio no MATOPIBA: comunidades e meio ambiente. Rio de Janeiro, 2017.

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Notas

[1] Os autores agradecem as leituras atentas e as sugestões de Divina Lopes e Adalberto Floriano Greco Martins, que certamente serviram para aprimorar o trabalho, eximindo-os de qualquer tipo de equívoco da versão aqui apresentada.

[2] Economista, mestre em economia política mundial e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

[3] Economista, mestre em economia política, doutor em ciências sociais e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

[4] O Cerrado brasileiro é o segundo maior bioma da América do Sul, representando 5% da biodiversidade do planeta, com quase 12 mil espécies de plantas. Conta ainda com três grandes aquíferos, Guarani, Bambuí e Urucuia.

[5] Somente a partir das décadas de 1960/70 podemos falar de trabalho assalariado e de mercado de trabalho no campo, como forma dominante de geração da riqueza.

[6] Segundo a Lei 11.326/2006, é considerado agricultor ou agricultora familiar aqueles que exercem atividade rural, tenham imóveis menores que 4 módulos fiscais, utilize força de trabalho da própria família e em que a gestão e a renda são oriundas da atividade em estabelecimento ou empreendimento da própria família. Para os fins deste levantamento, inclui-se no conceito de agricultura familiar os pequenos agricultores, povos e comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, entre outras atividades.

[7] Os posseiros, que viviam nas terras devolutas, habitavam (e habitam ainda hoje) as áreas dos chamados baixões, por onde corriam os rios nascidos nas chapadas, de onde podiam se suprir de água e de pesca e onde podiam construir suas casas, produzir a roça (mandioca, arroz, milho, feijão), ter criação de porcos, galinhas e aves. As chapadas faziam parte daquelas áreas devolutas não ocupadas, com regime intermitente de chuvas e hídrico, que não permitiam a moradia, mas sim a criação de gado, a caça, a coleta de frutas e raízes medicinais. Ou seja, a relação entre as terras comuns da chapada e a posse nos baixões era o que permitia a vida desses camponeses posseiros. (ACTIONAID, 2017, p. 21).

[8] Vale destacar que os processos de invasão de terras públicas e dos processos de desmatamento ilegal tem funcionalidade no ciclo de incorporação de terras públicas como ativo financeiro, sejam elas devolutas, terras indígenas, assentamentos ou parques nacionais. Logo, este setor é orgânico ao capital financeiro, pois tal capital não poderá existir no caso dos países com fronteiras agrícolas abertas (coisa rara atualmente no mundo) sem o vínculo estreito com estes agentes “destrutivos”.